Luiz Antonio de Assis Brasil reúne lições de escrita criativa em livro


'Escrever Ficção' é um compêndio das aulas do escritor que formou autores como Daniel Galera e Luisa Geisler

Por Rodrigo Petrônio

Os cursos de Escrita Criativa, destinados a quem quer se formar como um escritor profissional, são muito prestigiados na Europa e em todos os países anglófonos. Nos EUA, a tradição de escritores mais experientes orientarem trabalhos de iniciantes existe desde o começo do século 19. Por isso essa nova área do conhecimento assumiu uma expressão em inglês para sua denominação internacional: Creative Writing. 

Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor e professor de escrita criativa Foto: Evelson de Freitas/Estadão

Há décadas escritores brasileiros ministram oficinas de escrita criativa. Entretanto, a despeito desse costume, essa ainda era uma área pouco conhecida no Brasil. Felizmente esse cenário tem mudado. O surgimento de instituições de ensino voltadas para essa demanda mundial tem crescido. E a formalização de uma abordagem criativa da literatura tem adquirido cada vez mais espaço dentro de universidades públicas e privadas. 

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Em consonância com esse movimento, o leitor de língua portuguesa agora tem acesso a uma excelente obra que reúne as principais ferramentas da escrita criativa. Trata-se de Escrever Ficção: um Manual de Criação Literária, de Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos pioneiros e um dos mestres da Escrita Criativa no Brasil. Publicada pela Companhia das Letras, a obra foi escrita em colaboração com o escritor Luís Roberto Amabile, um dos integrantes antigos das oficinas de Assis. 

A obra de Assis é fruto de 34 anos ininterruptos orientando trabalhos criativos na Oficina de Criação Literária da Escola de Humanidades da PUC-RS. Ademais, Assis possui mais de vinte livros de ficção e de teoria.

Como sou professor de Escrita Criativa, além de ler o livro de Assis linha a linha com lupa e lápis, decidi fazer um teste. Adotei-o na Oficina de Criação, disciplina da Pós-Graduação em Escrita Criativa da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), onde sou professor-coordenador, e também nas duas oficinas livres de Escrita Criativa que coordeno. 

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Escrito em uma linguagem fluida e cotidiana, em constante conversa com o leitor, o livro é dividido em nove capítulos que abordam a condição do escritor (1), o papel e a função da personagem (2 e 3), trama, enredo e estrutura (4), focalização (5), espaço (6), tempo (7), estilo (8) e, por fim, propõe um roteiro de escrita de um romance linear (9).

Desde Aristóteles, há um longo dilema para definir a prioridade das formas narrativas, oscilando entre duas matrizes: a trama e a personagem. Haveria narrativas eminentemente construídas a partir da trama, que o Estagirita chama de fábula (mythos). Haveria outras cujos alicerces seriam a caracterização das personagens (éthos). 

Desde as preceptivas (manuais de instrução das artes) dos antigos gregos e latinos às modernas semiologias e narratologias do século 20, essa divisão persiste. Os manuais de roteiro para audiovisual, por exemplo, seguem linha a linha essa antiga matriz grega. Robert McKee, autor de um dos mais abrangentes manuais da atualidade, considera este um falso problema: personagem é trama e trama é personagem.

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Assis não minimiza o papel da trama. Mas sustenta uma tese que permeia toda obra: a personagem é o vetor de toda criação ficcional. A trama emerge da “questão essencial” da personagem, não o inverso. E o ficcionista precisaria aprofundar todas as categorias ficcionais do conflito, da tensão, do arco, do drama, das ações e da seleção dos eventos, ou seja, da trama, a partir do campo disruptiva das camadas virtuais das personagens. Esse é um dos pontos conceituais fortes de Assis. E ele chega a reconstruir o enredo de clássicos como Madame Bovary, do fim para o começo, para demonstrar como todos os eventos do romance estavam embutidos e se desdobraram da questão essencial de Emma. 

Essa questão essencial precisa ser aprofundada. E Assis, em uma acertada intuição teórica, recorre aos conceitos de mitologia pessoal e de metáfora obsessiva de Charles Mauron, autor fundamental para escritores e ainda não traduzido no Brasil. Para Mauron, criador da psicocrítica, uma teoria da literatura na fronteira com a psicanálise, todos os escritores têm obsessões. Essas obsessões se manifestam como metáforas recorrentes. São os sintomas da escrita. Contudo, em vez de evitar essas repetições, o escritor precisa aprofundar seus usos. Transformar as imagens repetitivas em mitologia pessoal. Essa mitologia do escritor pode ser transposta para as personagens e auxiliar o aprofundamento de seus conflitos, externos e inteiros, ou seja, estruturar sua questão essencial. 

Quanto mais tensão entre as motivações internas e externas, maior a progressão dramática. Quanto maior a inadequação entre desejo inconsciente e vontade consciente, maior a abertura entre a ordem e o caos. Em outras palavras: mais orgânica será a relação entre acaso e necessidade dos eventos. Assis chama essas aberturas de frestas. McKee as chama de brechas. De qualquer forma, essa organicidade entre necessidade e contingência confere qualidade à estrutura ficcional, fato que Assis analisa no capítulo dedicado à trama. 

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Que histórias devo narrar em terceira pessoa? E em primeira? Por quê? Quais os ganhos e perdas dessa decisão? Em caso de terceira pessoa, qual a melhor focalização, externa ou interna? Quando colocar as informações na voz do narrador? Quando abri-las em diálogos? Quais as melhores aplicações do discurso direto, do discurso indireto, do discurso indireto livre, do monólogo interior e do fluxo de consciência? Qual a melhor maneira de distribuir as informações complexas e detalhadas de meu universo ficcional? Estes são outros pontos abordados por Assim e que tiram o sono de escritores experientes e iniciantes: o narrador e a focalização. Quem disser que são questões impertinentes estará mentindo. 

Uma das originalidades de sua abordagem é a descrição de um novo tipo de narrador: o onisciente contemporâneo. Diferente do tradicional, esse narrador onisciente contemporâneo consegue produzir um efeito de aparente neutralidade em relação às informações e ao conhecimento global que possui do universo narrado. Isso é eficiente por dois motivos. Primeiro: livra o escritor de certo artificialismo da onisciência tradicional, cujo narrador, como em um passe de mágica, sabe de todos os meandros insondáveis do cosmos ficcional. Segundo: libera o escritor da obrigação de inserir esses conhecimentos do universo na mente das personagens ou em diálogos, em falas expositivas. Esse narrador onisciente contemporâneo também nos auxilia em um recurso bastante importante: a sumarização. Para Assis, a sumarização é o melhor meio de distribuir as informações do universo ficcional ao longo da narrativa, sem soar pedante ou explicativo. 

E o espaço e o tempo? Devido ao truísmo de que a literatura é uma arte temporal, muitas categorias e reflexões importantes sobre o espaço ficcional foram negligenciadas. Desde a fenomenologia de Husserl e Bachelard às teorias das esferas de animação e às atmosferas (Stimmung) nas artes e na literatura, desenvolvidas por Peter Sloterdijk e Hans Ulrich Gumbrecht, o espaço passou a ser redimensionado na literatura. Assis fornece uma contribuição valiosa ao repensar a importância do espaço como correlato objetivo da personagem. Segue um axioma: não existe espaço inocente na narrativa. Tudo o que existe, que é referido ou que se insere no espaço ficcional precisa ter algum valor para as personagens ou para a trama. 

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Não se trata de um determinismo causal, como a famosa Lei de Chekhov: se um revólver aparecer no primeiro ato, deve disparar no terceiro. O que Assis sugere é que o espaço possa ser explorado em todas as suas dimensões. E utilizados todos os sentidos, desde os fundamentais (audição, visão, tato, paladar, olfato) a sensações dispersas pela fisiologia das personagens. Quanto mais sentidos e sensações, mais real a personagem. E, por conseguinte, mais convincentes as suas ações. 

Quanto ao tempo, haveria alguns recursos para dispô-lo em função da narrativa. Pode-se ordenar o timing dos eventos em cronologia como uma forma de ganhar na ordem das ações e do drama. Pode-se aprofundar as ações e o tempo internos das personagens de modo a dilatar uma das esferas narrativas em detrimento de outras. Essas assincronias deliberadas potencializam as diversas outras dimensões da narrativa e os outros tipos de tempo, gerando contrastes e reviravoltas de expectativas por parte do leitor. Assis trata também do lugar e do papel dos flashbacks e dos flashforwards, da retrospecção e da prospeção narrativas, suas virtudes e seus perigos. 

Toda obra de Assis é pontilhada por exemplos detalhados de clássicos e modernos: Shakespeare, Balzac, Novalis, Flaubert, Proust, Camus, Schnitzler, Joyce, dentre outros. E concentra-se em autores contemporâneos bastante diversos como Kundera, Murakami, McEwan, Ishiguro, Fuentes, Cortázar, em uma perspectiva pluralista e rica da literatura. Um dos pontos altos entretanto é a quantidade de referências a escritores brasileiros em atividade: Michel Laub, Carol Bensimon, João Anzanello Carrascoza e outros. 

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Como o campo da Escrita Criativa ainda é novo e movediço, não poderia deixar de haver algumas discordâncias. Embora as caixas de destaque de alguns pontos sejam um recurso excelente, o excesso de subdivisões dos capítulos às vezes mais embaralha o conteúdo do que o elucida. O conceito de sistema se confunde com o de estrutura e permanece amolando do livro sem uma explicação satisfatória.

O capítulo sobre o tempo e sobre a estrutura não conversam entre si. Além disso, ignoram muitas formalizações de teorias narrativas antigas e modernas que precisariam ser pelo menos mencionadas. O “quadrilátero do tempo” não funciona. E, por fim, a proposta final de criação de um romance linear fica aquém de toda riqueza explorada ao longo da obra. 

ESCREVER FICÇÃO  AUTOR: LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 400 PÁGINAS R$ 79,90

*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR, DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA (UERJ) E PROFESSOR TITULAR DA FAAP

Os cursos de Escrita Criativa, destinados a quem quer se formar como um escritor profissional, são muito prestigiados na Europa e em todos os países anglófonos. Nos EUA, a tradição de escritores mais experientes orientarem trabalhos de iniciantes existe desde o começo do século 19. Por isso essa nova área do conhecimento assumiu uma expressão em inglês para sua denominação internacional: Creative Writing. 

Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor e professor de escrita criativa Foto: Evelson de Freitas/Estadão

Há décadas escritores brasileiros ministram oficinas de escrita criativa. Entretanto, a despeito desse costume, essa ainda era uma área pouco conhecida no Brasil. Felizmente esse cenário tem mudado. O surgimento de instituições de ensino voltadas para essa demanda mundial tem crescido. E a formalização de uma abordagem criativa da literatura tem adquirido cada vez mais espaço dentro de universidades públicas e privadas. 

Em consonância com esse movimento, o leitor de língua portuguesa agora tem acesso a uma excelente obra que reúne as principais ferramentas da escrita criativa. Trata-se de Escrever Ficção: um Manual de Criação Literária, de Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos pioneiros e um dos mestres da Escrita Criativa no Brasil. Publicada pela Companhia das Letras, a obra foi escrita em colaboração com o escritor Luís Roberto Amabile, um dos integrantes antigos das oficinas de Assis. 

A obra de Assis é fruto de 34 anos ininterruptos orientando trabalhos criativos na Oficina de Criação Literária da Escola de Humanidades da PUC-RS. Ademais, Assis possui mais de vinte livros de ficção e de teoria.

Como sou professor de Escrita Criativa, além de ler o livro de Assis linha a linha com lupa e lápis, decidi fazer um teste. Adotei-o na Oficina de Criação, disciplina da Pós-Graduação em Escrita Criativa da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), onde sou professor-coordenador, e também nas duas oficinas livres de Escrita Criativa que coordeno. 

Escrito em uma linguagem fluida e cotidiana, em constante conversa com o leitor, o livro é dividido em nove capítulos que abordam a condição do escritor (1), o papel e a função da personagem (2 e 3), trama, enredo e estrutura (4), focalização (5), espaço (6), tempo (7), estilo (8) e, por fim, propõe um roteiro de escrita de um romance linear (9).

Desde Aristóteles, há um longo dilema para definir a prioridade das formas narrativas, oscilando entre duas matrizes: a trama e a personagem. Haveria narrativas eminentemente construídas a partir da trama, que o Estagirita chama de fábula (mythos). Haveria outras cujos alicerces seriam a caracterização das personagens (éthos). 

Desde as preceptivas (manuais de instrução das artes) dos antigos gregos e latinos às modernas semiologias e narratologias do século 20, essa divisão persiste. Os manuais de roteiro para audiovisual, por exemplo, seguem linha a linha essa antiga matriz grega. Robert McKee, autor de um dos mais abrangentes manuais da atualidade, considera este um falso problema: personagem é trama e trama é personagem.

Assis não minimiza o papel da trama. Mas sustenta uma tese que permeia toda obra: a personagem é o vetor de toda criação ficcional. A trama emerge da “questão essencial” da personagem, não o inverso. E o ficcionista precisaria aprofundar todas as categorias ficcionais do conflito, da tensão, do arco, do drama, das ações e da seleção dos eventos, ou seja, da trama, a partir do campo disruptiva das camadas virtuais das personagens. Esse é um dos pontos conceituais fortes de Assis. E ele chega a reconstruir o enredo de clássicos como Madame Bovary, do fim para o começo, para demonstrar como todos os eventos do romance estavam embutidos e se desdobraram da questão essencial de Emma. 

Essa questão essencial precisa ser aprofundada. E Assis, em uma acertada intuição teórica, recorre aos conceitos de mitologia pessoal e de metáfora obsessiva de Charles Mauron, autor fundamental para escritores e ainda não traduzido no Brasil. Para Mauron, criador da psicocrítica, uma teoria da literatura na fronteira com a psicanálise, todos os escritores têm obsessões. Essas obsessões se manifestam como metáforas recorrentes. São os sintomas da escrita. Contudo, em vez de evitar essas repetições, o escritor precisa aprofundar seus usos. Transformar as imagens repetitivas em mitologia pessoal. Essa mitologia do escritor pode ser transposta para as personagens e auxiliar o aprofundamento de seus conflitos, externos e inteiros, ou seja, estruturar sua questão essencial. 

Quanto mais tensão entre as motivações internas e externas, maior a progressão dramática. Quanto maior a inadequação entre desejo inconsciente e vontade consciente, maior a abertura entre a ordem e o caos. Em outras palavras: mais orgânica será a relação entre acaso e necessidade dos eventos. Assis chama essas aberturas de frestas. McKee as chama de brechas. De qualquer forma, essa organicidade entre necessidade e contingência confere qualidade à estrutura ficcional, fato que Assis analisa no capítulo dedicado à trama. 

Que histórias devo narrar em terceira pessoa? E em primeira? Por quê? Quais os ganhos e perdas dessa decisão? Em caso de terceira pessoa, qual a melhor focalização, externa ou interna? Quando colocar as informações na voz do narrador? Quando abri-las em diálogos? Quais as melhores aplicações do discurso direto, do discurso indireto, do discurso indireto livre, do monólogo interior e do fluxo de consciência? Qual a melhor maneira de distribuir as informações complexas e detalhadas de meu universo ficcional? Estes são outros pontos abordados por Assim e que tiram o sono de escritores experientes e iniciantes: o narrador e a focalização. Quem disser que são questões impertinentes estará mentindo. 

Uma das originalidades de sua abordagem é a descrição de um novo tipo de narrador: o onisciente contemporâneo. Diferente do tradicional, esse narrador onisciente contemporâneo consegue produzir um efeito de aparente neutralidade em relação às informações e ao conhecimento global que possui do universo narrado. Isso é eficiente por dois motivos. Primeiro: livra o escritor de certo artificialismo da onisciência tradicional, cujo narrador, como em um passe de mágica, sabe de todos os meandros insondáveis do cosmos ficcional. Segundo: libera o escritor da obrigação de inserir esses conhecimentos do universo na mente das personagens ou em diálogos, em falas expositivas. Esse narrador onisciente contemporâneo também nos auxilia em um recurso bastante importante: a sumarização. Para Assis, a sumarização é o melhor meio de distribuir as informações do universo ficcional ao longo da narrativa, sem soar pedante ou explicativo. 

E o espaço e o tempo? Devido ao truísmo de que a literatura é uma arte temporal, muitas categorias e reflexões importantes sobre o espaço ficcional foram negligenciadas. Desde a fenomenologia de Husserl e Bachelard às teorias das esferas de animação e às atmosferas (Stimmung) nas artes e na literatura, desenvolvidas por Peter Sloterdijk e Hans Ulrich Gumbrecht, o espaço passou a ser redimensionado na literatura. Assis fornece uma contribuição valiosa ao repensar a importância do espaço como correlato objetivo da personagem. Segue um axioma: não existe espaço inocente na narrativa. Tudo o que existe, que é referido ou que se insere no espaço ficcional precisa ter algum valor para as personagens ou para a trama. 

Não se trata de um determinismo causal, como a famosa Lei de Chekhov: se um revólver aparecer no primeiro ato, deve disparar no terceiro. O que Assis sugere é que o espaço possa ser explorado em todas as suas dimensões. E utilizados todos os sentidos, desde os fundamentais (audição, visão, tato, paladar, olfato) a sensações dispersas pela fisiologia das personagens. Quanto mais sentidos e sensações, mais real a personagem. E, por conseguinte, mais convincentes as suas ações. 

Quanto ao tempo, haveria alguns recursos para dispô-lo em função da narrativa. Pode-se ordenar o timing dos eventos em cronologia como uma forma de ganhar na ordem das ações e do drama. Pode-se aprofundar as ações e o tempo internos das personagens de modo a dilatar uma das esferas narrativas em detrimento de outras. Essas assincronias deliberadas potencializam as diversas outras dimensões da narrativa e os outros tipos de tempo, gerando contrastes e reviravoltas de expectativas por parte do leitor. Assis trata também do lugar e do papel dos flashbacks e dos flashforwards, da retrospecção e da prospeção narrativas, suas virtudes e seus perigos. 

Toda obra de Assis é pontilhada por exemplos detalhados de clássicos e modernos: Shakespeare, Balzac, Novalis, Flaubert, Proust, Camus, Schnitzler, Joyce, dentre outros. E concentra-se em autores contemporâneos bastante diversos como Kundera, Murakami, McEwan, Ishiguro, Fuentes, Cortázar, em uma perspectiva pluralista e rica da literatura. Um dos pontos altos entretanto é a quantidade de referências a escritores brasileiros em atividade: Michel Laub, Carol Bensimon, João Anzanello Carrascoza e outros. 

Como o campo da Escrita Criativa ainda é novo e movediço, não poderia deixar de haver algumas discordâncias. Embora as caixas de destaque de alguns pontos sejam um recurso excelente, o excesso de subdivisões dos capítulos às vezes mais embaralha o conteúdo do que o elucida. O conceito de sistema se confunde com o de estrutura e permanece amolando do livro sem uma explicação satisfatória.

O capítulo sobre o tempo e sobre a estrutura não conversam entre si. Além disso, ignoram muitas formalizações de teorias narrativas antigas e modernas que precisariam ser pelo menos mencionadas. O “quadrilátero do tempo” não funciona. E, por fim, a proposta final de criação de um romance linear fica aquém de toda riqueza explorada ao longo da obra. 

ESCREVER FICÇÃO  AUTOR: LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 400 PÁGINAS R$ 79,90

*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR, DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA (UERJ) E PROFESSOR TITULAR DA FAAP

Os cursos de Escrita Criativa, destinados a quem quer se formar como um escritor profissional, são muito prestigiados na Europa e em todos os países anglófonos. Nos EUA, a tradição de escritores mais experientes orientarem trabalhos de iniciantes existe desde o começo do século 19. Por isso essa nova área do conhecimento assumiu uma expressão em inglês para sua denominação internacional: Creative Writing. 

Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor e professor de escrita criativa Foto: Evelson de Freitas/Estadão

Há décadas escritores brasileiros ministram oficinas de escrita criativa. Entretanto, a despeito desse costume, essa ainda era uma área pouco conhecida no Brasil. Felizmente esse cenário tem mudado. O surgimento de instituições de ensino voltadas para essa demanda mundial tem crescido. E a formalização de uma abordagem criativa da literatura tem adquirido cada vez mais espaço dentro de universidades públicas e privadas. 

Em consonância com esse movimento, o leitor de língua portuguesa agora tem acesso a uma excelente obra que reúne as principais ferramentas da escrita criativa. Trata-se de Escrever Ficção: um Manual de Criação Literária, de Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos pioneiros e um dos mestres da Escrita Criativa no Brasil. Publicada pela Companhia das Letras, a obra foi escrita em colaboração com o escritor Luís Roberto Amabile, um dos integrantes antigos das oficinas de Assis. 

A obra de Assis é fruto de 34 anos ininterruptos orientando trabalhos criativos na Oficina de Criação Literária da Escola de Humanidades da PUC-RS. Ademais, Assis possui mais de vinte livros de ficção e de teoria.

Como sou professor de Escrita Criativa, além de ler o livro de Assis linha a linha com lupa e lápis, decidi fazer um teste. Adotei-o na Oficina de Criação, disciplina da Pós-Graduação em Escrita Criativa da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), onde sou professor-coordenador, e também nas duas oficinas livres de Escrita Criativa que coordeno. 

Escrito em uma linguagem fluida e cotidiana, em constante conversa com o leitor, o livro é dividido em nove capítulos que abordam a condição do escritor (1), o papel e a função da personagem (2 e 3), trama, enredo e estrutura (4), focalização (5), espaço (6), tempo (7), estilo (8) e, por fim, propõe um roteiro de escrita de um romance linear (9).

Desde Aristóteles, há um longo dilema para definir a prioridade das formas narrativas, oscilando entre duas matrizes: a trama e a personagem. Haveria narrativas eminentemente construídas a partir da trama, que o Estagirita chama de fábula (mythos). Haveria outras cujos alicerces seriam a caracterização das personagens (éthos). 

Desde as preceptivas (manuais de instrução das artes) dos antigos gregos e latinos às modernas semiologias e narratologias do século 20, essa divisão persiste. Os manuais de roteiro para audiovisual, por exemplo, seguem linha a linha essa antiga matriz grega. Robert McKee, autor de um dos mais abrangentes manuais da atualidade, considera este um falso problema: personagem é trama e trama é personagem.

Assis não minimiza o papel da trama. Mas sustenta uma tese que permeia toda obra: a personagem é o vetor de toda criação ficcional. A trama emerge da “questão essencial” da personagem, não o inverso. E o ficcionista precisaria aprofundar todas as categorias ficcionais do conflito, da tensão, do arco, do drama, das ações e da seleção dos eventos, ou seja, da trama, a partir do campo disruptiva das camadas virtuais das personagens. Esse é um dos pontos conceituais fortes de Assis. E ele chega a reconstruir o enredo de clássicos como Madame Bovary, do fim para o começo, para demonstrar como todos os eventos do romance estavam embutidos e se desdobraram da questão essencial de Emma. 

Essa questão essencial precisa ser aprofundada. E Assis, em uma acertada intuição teórica, recorre aos conceitos de mitologia pessoal e de metáfora obsessiva de Charles Mauron, autor fundamental para escritores e ainda não traduzido no Brasil. Para Mauron, criador da psicocrítica, uma teoria da literatura na fronteira com a psicanálise, todos os escritores têm obsessões. Essas obsessões se manifestam como metáforas recorrentes. São os sintomas da escrita. Contudo, em vez de evitar essas repetições, o escritor precisa aprofundar seus usos. Transformar as imagens repetitivas em mitologia pessoal. Essa mitologia do escritor pode ser transposta para as personagens e auxiliar o aprofundamento de seus conflitos, externos e inteiros, ou seja, estruturar sua questão essencial. 

Quanto mais tensão entre as motivações internas e externas, maior a progressão dramática. Quanto maior a inadequação entre desejo inconsciente e vontade consciente, maior a abertura entre a ordem e o caos. Em outras palavras: mais orgânica será a relação entre acaso e necessidade dos eventos. Assis chama essas aberturas de frestas. McKee as chama de brechas. De qualquer forma, essa organicidade entre necessidade e contingência confere qualidade à estrutura ficcional, fato que Assis analisa no capítulo dedicado à trama. 

Que histórias devo narrar em terceira pessoa? E em primeira? Por quê? Quais os ganhos e perdas dessa decisão? Em caso de terceira pessoa, qual a melhor focalização, externa ou interna? Quando colocar as informações na voz do narrador? Quando abri-las em diálogos? Quais as melhores aplicações do discurso direto, do discurso indireto, do discurso indireto livre, do monólogo interior e do fluxo de consciência? Qual a melhor maneira de distribuir as informações complexas e detalhadas de meu universo ficcional? Estes são outros pontos abordados por Assim e que tiram o sono de escritores experientes e iniciantes: o narrador e a focalização. Quem disser que são questões impertinentes estará mentindo. 

Uma das originalidades de sua abordagem é a descrição de um novo tipo de narrador: o onisciente contemporâneo. Diferente do tradicional, esse narrador onisciente contemporâneo consegue produzir um efeito de aparente neutralidade em relação às informações e ao conhecimento global que possui do universo narrado. Isso é eficiente por dois motivos. Primeiro: livra o escritor de certo artificialismo da onisciência tradicional, cujo narrador, como em um passe de mágica, sabe de todos os meandros insondáveis do cosmos ficcional. Segundo: libera o escritor da obrigação de inserir esses conhecimentos do universo na mente das personagens ou em diálogos, em falas expositivas. Esse narrador onisciente contemporâneo também nos auxilia em um recurso bastante importante: a sumarização. Para Assis, a sumarização é o melhor meio de distribuir as informações do universo ficcional ao longo da narrativa, sem soar pedante ou explicativo. 

E o espaço e o tempo? Devido ao truísmo de que a literatura é uma arte temporal, muitas categorias e reflexões importantes sobre o espaço ficcional foram negligenciadas. Desde a fenomenologia de Husserl e Bachelard às teorias das esferas de animação e às atmosferas (Stimmung) nas artes e na literatura, desenvolvidas por Peter Sloterdijk e Hans Ulrich Gumbrecht, o espaço passou a ser redimensionado na literatura. Assis fornece uma contribuição valiosa ao repensar a importância do espaço como correlato objetivo da personagem. Segue um axioma: não existe espaço inocente na narrativa. Tudo o que existe, que é referido ou que se insere no espaço ficcional precisa ter algum valor para as personagens ou para a trama. 

Não se trata de um determinismo causal, como a famosa Lei de Chekhov: se um revólver aparecer no primeiro ato, deve disparar no terceiro. O que Assis sugere é que o espaço possa ser explorado em todas as suas dimensões. E utilizados todos os sentidos, desde os fundamentais (audição, visão, tato, paladar, olfato) a sensações dispersas pela fisiologia das personagens. Quanto mais sentidos e sensações, mais real a personagem. E, por conseguinte, mais convincentes as suas ações. 

Quanto ao tempo, haveria alguns recursos para dispô-lo em função da narrativa. Pode-se ordenar o timing dos eventos em cronologia como uma forma de ganhar na ordem das ações e do drama. Pode-se aprofundar as ações e o tempo internos das personagens de modo a dilatar uma das esferas narrativas em detrimento de outras. Essas assincronias deliberadas potencializam as diversas outras dimensões da narrativa e os outros tipos de tempo, gerando contrastes e reviravoltas de expectativas por parte do leitor. Assis trata também do lugar e do papel dos flashbacks e dos flashforwards, da retrospecção e da prospeção narrativas, suas virtudes e seus perigos. 

Toda obra de Assis é pontilhada por exemplos detalhados de clássicos e modernos: Shakespeare, Balzac, Novalis, Flaubert, Proust, Camus, Schnitzler, Joyce, dentre outros. E concentra-se em autores contemporâneos bastante diversos como Kundera, Murakami, McEwan, Ishiguro, Fuentes, Cortázar, em uma perspectiva pluralista e rica da literatura. Um dos pontos altos entretanto é a quantidade de referências a escritores brasileiros em atividade: Michel Laub, Carol Bensimon, João Anzanello Carrascoza e outros. 

Como o campo da Escrita Criativa ainda é novo e movediço, não poderia deixar de haver algumas discordâncias. Embora as caixas de destaque de alguns pontos sejam um recurso excelente, o excesso de subdivisões dos capítulos às vezes mais embaralha o conteúdo do que o elucida. O conceito de sistema se confunde com o de estrutura e permanece amolando do livro sem uma explicação satisfatória.

O capítulo sobre o tempo e sobre a estrutura não conversam entre si. Além disso, ignoram muitas formalizações de teorias narrativas antigas e modernas que precisariam ser pelo menos mencionadas. O “quadrilátero do tempo” não funciona. E, por fim, a proposta final de criação de um romance linear fica aquém de toda riqueza explorada ao longo da obra. 

ESCREVER FICÇÃO  AUTOR: LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 400 PÁGINAS R$ 79,90

*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR, DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA (UERJ) E PROFESSOR TITULAR DA FAAP

Os cursos de Escrita Criativa, destinados a quem quer se formar como um escritor profissional, são muito prestigiados na Europa e em todos os países anglófonos. Nos EUA, a tradição de escritores mais experientes orientarem trabalhos de iniciantes existe desde o começo do século 19. Por isso essa nova área do conhecimento assumiu uma expressão em inglês para sua denominação internacional: Creative Writing. 

Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor e professor de escrita criativa Foto: Evelson de Freitas/Estadão

Há décadas escritores brasileiros ministram oficinas de escrita criativa. Entretanto, a despeito desse costume, essa ainda era uma área pouco conhecida no Brasil. Felizmente esse cenário tem mudado. O surgimento de instituições de ensino voltadas para essa demanda mundial tem crescido. E a formalização de uma abordagem criativa da literatura tem adquirido cada vez mais espaço dentro de universidades públicas e privadas. 

Em consonância com esse movimento, o leitor de língua portuguesa agora tem acesso a uma excelente obra que reúne as principais ferramentas da escrita criativa. Trata-se de Escrever Ficção: um Manual de Criação Literária, de Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos pioneiros e um dos mestres da Escrita Criativa no Brasil. Publicada pela Companhia das Letras, a obra foi escrita em colaboração com o escritor Luís Roberto Amabile, um dos integrantes antigos das oficinas de Assis. 

A obra de Assis é fruto de 34 anos ininterruptos orientando trabalhos criativos na Oficina de Criação Literária da Escola de Humanidades da PUC-RS. Ademais, Assis possui mais de vinte livros de ficção e de teoria.

Como sou professor de Escrita Criativa, além de ler o livro de Assis linha a linha com lupa e lápis, decidi fazer um teste. Adotei-o na Oficina de Criação, disciplina da Pós-Graduação em Escrita Criativa da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), onde sou professor-coordenador, e também nas duas oficinas livres de Escrita Criativa que coordeno. 

Escrito em uma linguagem fluida e cotidiana, em constante conversa com o leitor, o livro é dividido em nove capítulos que abordam a condição do escritor (1), o papel e a função da personagem (2 e 3), trama, enredo e estrutura (4), focalização (5), espaço (6), tempo (7), estilo (8) e, por fim, propõe um roteiro de escrita de um romance linear (9).

Desde Aristóteles, há um longo dilema para definir a prioridade das formas narrativas, oscilando entre duas matrizes: a trama e a personagem. Haveria narrativas eminentemente construídas a partir da trama, que o Estagirita chama de fábula (mythos). Haveria outras cujos alicerces seriam a caracterização das personagens (éthos). 

Desde as preceptivas (manuais de instrução das artes) dos antigos gregos e latinos às modernas semiologias e narratologias do século 20, essa divisão persiste. Os manuais de roteiro para audiovisual, por exemplo, seguem linha a linha essa antiga matriz grega. Robert McKee, autor de um dos mais abrangentes manuais da atualidade, considera este um falso problema: personagem é trama e trama é personagem.

Assis não minimiza o papel da trama. Mas sustenta uma tese que permeia toda obra: a personagem é o vetor de toda criação ficcional. A trama emerge da “questão essencial” da personagem, não o inverso. E o ficcionista precisaria aprofundar todas as categorias ficcionais do conflito, da tensão, do arco, do drama, das ações e da seleção dos eventos, ou seja, da trama, a partir do campo disruptiva das camadas virtuais das personagens. Esse é um dos pontos conceituais fortes de Assis. E ele chega a reconstruir o enredo de clássicos como Madame Bovary, do fim para o começo, para demonstrar como todos os eventos do romance estavam embutidos e se desdobraram da questão essencial de Emma. 

Essa questão essencial precisa ser aprofundada. E Assis, em uma acertada intuição teórica, recorre aos conceitos de mitologia pessoal e de metáfora obsessiva de Charles Mauron, autor fundamental para escritores e ainda não traduzido no Brasil. Para Mauron, criador da psicocrítica, uma teoria da literatura na fronteira com a psicanálise, todos os escritores têm obsessões. Essas obsessões se manifestam como metáforas recorrentes. São os sintomas da escrita. Contudo, em vez de evitar essas repetições, o escritor precisa aprofundar seus usos. Transformar as imagens repetitivas em mitologia pessoal. Essa mitologia do escritor pode ser transposta para as personagens e auxiliar o aprofundamento de seus conflitos, externos e inteiros, ou seja, estruturar sua questão essencial. 

Quanto mais tensão entre as motivações internas e externas, maior a progressão dramática. Quanto maior a inadequação entre desejo inconsciente e vontade consciente, maior a abertura entre a ordem e o caos. Em outras palavras: mais orgânica será a relação entre acaso e necessidade dos eventos. Assis chama essas aberturas de frestas. McKee as chama de brechas. De qualquer forma, essa organicidade entre necessidade e contingência confere qualidade à estrutura ficcional, fato que Assis analisa no capítulo dedicado à trama. 

Que histórias devo narrar em terceira pessoa? E em primeira? Por quê? Quais os ganhos e perdas dessa decisão? Em caso de terceira pessoa, qual a melhor focalização, externa ou interna? Quando colocar as informações na voz do narrador? Quando abri-las em diálogos? Quais as melhores aplicações do discurso direto, do discurso indireto, do discurso indireto livre, do monólogo interior e do fluxo de consciência? Qual a melhor maneira de distribuir as informações complexas e detalhadas de meu universo ficcional? Estes são outros pontos abordados por Assim e que tiram o sono de escritores experientes e iniciantes: o narrador e a focalização. Quem disser que são questões impertinentes estará mentindo. 

Uma das originalidades de sua abordagem é a descrição de um novo tipo de narrador: o onisciente contemporâneo. Diferente do tradicional, esse narrador onisciente contemporâneo consegue produzir um efeito de aparente neutralidade em relação às informações e ao conhecimento global que possui do universo narrado. Isso é eficiente por dois motivos. Primeiro: livra o escritor de certo artificialismo da onisciência tradicional, cujo narrador, como em um passe de mágica, sabe de todos os meandros insondáveis do cosmos ficcional. Segundo: libera o escritor da obrigação de inserir esses conhecimentos do universo na mente das personagens ou em diálogos, em falas expositivas. Esse narrador onisciente contemporâneo também nos auxilia em um recurso bastante importante: a sumarização. Para Assis, a sumarização é o melhor meio de distribuir as informações do universo ficcional ao longo da narrativa, sem soar pedante ou explicativo. 

E o espaço e o tempo? Devido ao truísmo de que a literatura é uma arte temporal, muitas categorias e reflexões importantes sobre o espaço ficcional foram negligenciadas. Desde a fenomenologia de Husserl e Bachelard às teorias das esferas de animação e às atmosferas (Stimmung) nas artes e na literatura, desenvolvidas por Peter Sloterdijk e Hans Ulrich Gumbrecht, o espaço passou a ser redimensionado na literatura. Assis fornece uma contribuição valiosa ao repensar a importância do espaço como correlato objetivo da personagem. Segue um axioma: não existe espaço inocente na narrativa. Tudo o que existe, que é referido ou que se insere no espaço ficcional precisa ter algum valor para as personagens ou para a trama. 

Não se trata de um determinismo causal, como a famosa Lei de Chekhov: se um revólver aparecer no primeiro ato, deve disparar no terceiro. O que Assis sugere é que o espaço possa ser explorado em todas as suas dimensões. E utilizados todos os sentidos, desde os fundamentais (audição, visão, tato, paladar, olfato) a sensações dispersas pela fisiologia das personagens. Quanto mais sentidos e sensações, mais real a personagem. E, por conseguinte, mais convincentes as suas ações. 

Quanto ao tempo, haveria alguns recursos para dispô-lo em função da narrativa. Pode-se ordenar o timing dos eventos em cronologia como uma forma de ganhar na ordem das ações e do drama. Pode-se aprofundar as ações e o tempo internos das personagens de modo a dilatar uma das esferas narrativas em detrimento de outras. Essas assincronias deliberadas potencializam as diversas outras dimensões da narrativa e os outros tipos de tempo, gerando contrastes e reviravoltas de expectativas por parte do leitor. Assis trata também do lugar e do papel dos flashbacks e dos flashforwards, da retrospecção e da prospeção narrativas, suas virtudes e seus perigos. 

Toda obra de Assis é pontilhada por exemplos detalhados de clássicos e modernos: Shakespeare, Balzac, Novalis, Flaubert, Proust, Camus, Schnitzler, Joyce, dentre outros. E concentra-se em autores contemporâneos bastante diversos como Kundera, Murakami, McEwan, Ishiguro, Fuentes, Cortázar, em uma perspectiva pluralista e rica da literatura. Um dos pontos altos entretanto é a quantidade de referências a escritores brasileiros em atividade: Michel Laub, Carol Bensimon, João Anzanello Carrascoza e outros. 

Como o campo da Escrita Criativa ainda é novo e movediço, não poderia deixar de haver algumas discordâncias. Embora as caixas de destaque de alguns pontos sejam um recurso excelente, o excesso de subdivisões dos capítulos às vezes mais embaralha o conteúdo do que o elucida. O conceito de sistema se confunde com o de estrutura e permanece amolando do livro sem uma explicação satisfatória.

O capítulo sobre o tempo e sobre a estrutura não conversam entre si. Além disso, ignoram muitas formalizações de teorias narrativas antigas e modernas que precisariam ser pelo menos mencionadas. O “quadrilátero do tempo” não funciona. E, por fim, a proposta final de criação de um romance linear fica aquém de toda riqueza explorada ao longo da obra. 

ESCREVER FICÇÃO  AUTOR: LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 400 PÁGINAS R$ 79,90

*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR, DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA (UERJ) E PROFESSOR TITULAR DA FAAP

Os cursos de Escrita Criativa, destinados a quem quer se formar como um escritor profissional, são muito prestigiados na Europa e em todos os países anglófonos. Nos EUA, a tradição de escritores mais experientes orientarem trabalhos de iniciantes existe desde o começo do século 19. Por isso essa nova área do conhecimento assumiu uma expressão em inglês para sua denominação internacional: Creative Writing. 

Luiz Antonio de Assis Brasil, escritor e professor de escrita criativa Foto: Evelson de Freitas/Estadão

Há décadas escritores brasileiros ministram oficinas de escrita criativa. Entretanto, a despeito desse costume, essa ainda era uma área pouco conhecida no Brasil. Felizmente esse cenário tem mudado. O surgimento de instituições de ensino voltadas para essa demanda mundial tem crescido. E a formalização de uma abordagem criativa da literatura tem adquirido cada vez mais espaço dentro de universidades públicas e privadas. 

Em consonância com esse movimento, o leitor de língua portuguesa agora tem acesso a uma excelente obra que reúne as principais ferramentas da escrita criativa. Trata-se de Escrever Ficção: um Manual de Criação Literária, de Luiz Antonio de Assis Brasil, um dos pioneiros e um dos mestres da Escrita Criativa no Brasil. Publicada pela Companhia das Letras, a obra foi escrita em colaboração com o escritor Luís Roberto Amabile, um dos integrantes antigos das oficinas de Assis. 

A obra de Assis é fruto de 34 anos ininterruptos orientando trabalhos criativos na Oficina de Criação Literária da Escola de Humanidades da PUC-RS. Ademais, Assis possui mais de vinte livros de ficção e de teoria.

Como sou professor de Escrita Criativa, além de ler o livro de Assis linha a linha com lupa e lápis, decidi fazer um teste. Adotei-o na Oficina de Criação, disciplina da Pós-Graduação em Escrita Criativa da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), onde sou professor-coordenador, e também nas duas oficinas livres de Escrita Criativa que coordeno. 

Escrito em uma linguagem fluida e cotidiana, em constante conversa com o leitor, o livro é dividido em nove capítulos que abordam a condição do escritor (1), o papel e a função da personagem (2 e 3), trama, enredo e estrutura (4), focalização (5), espaço (6), tempo (7), estilo (8) e, por fim, propõe um roteiro de escrita de um romance linear (9).

Desde Aristóteles, há um longo dilema para definir a prioridade das formas narrativas, oscilando entre duas matrizes: a trama e a personagem. Haveria narrativas eminentemente construídas a partir da trama, que o Estagirita chama de fábula (mythos). Haveria outras cujos alicerces seriam a caracterização das personagens (éthos). 

Desde as preceptivas (manuais de instrução das artes) dos antigos gregos e latinos às modernas semiologias e narratologias do século 20, essa divisão persiste. Os manuais de roteiro para audiovisual, por exemplo, seguem linha a linha essa antiga matriz grega. Robert McKee, autor de um dos mais abrangentes manuais da atualidade, considera este um falso problema: personagem é trama e trama é personagem.

Assis não minimiza o papel da trama. Mas sustenta uma tese que permeia toda obra: a personagem é o vetor de toda criação ficcional. A trama emerge da “questão essencial” da personagem, não o inverso. E o ficcionista precisaria aprofundar todas as categorias ficcionais do conflito, da tensão, do arco, do drama, das ações e da seleção dos eventos, ou seja, da trama, a partir do campo disruptiva das camadas virtuais das personagens. Esse é um dos pontos conceituais fortes de Assis. E ele chega a reconstruir o enredo de clássicos como Madame Bovary, do fim para o começo, para demonstrar como todos os eventos do romance estavam embutidos e se desdobraram da questão essencial de Emma. 

Essa questão essencial precisa ser aprofundada. E Assis, em uma acertada intuição teórica, recorre aos conceitos de mitologia pessoal e de metáfora obsessiva de Charles Mauron, autor fundamental para escritores e ainda não traduzido no Brasil. Para Mauron, criador da psicocrítica, uma teoria da literatura na fronteira com a psicanálise, todos os escritores têm obsessões. Essas obsessões se manifestam como metáforas recorrentes. São os sintomas da escrita. Contudo, em vez de evitar essas repetições, o escritor precisa aprofundar seus usos. Transformar as imagens repetitivas em mitologia pessoal. Essa mitologia do escritor pode ser transposta para as personagens e auxiliar o aprofundamento de seus conflitos, externos e inteiros, ou seja, estruturar sua questão essencial. 

Quanto mais tensão entre as motivações internas e externas, maior a progressão dramática. Quanto maior a inadequação entre desejo inconsciente e vontade consciente, maior a abertura entre a ordem e o caos. Em outras palavras: mais orgânica será a relação entre acaso e necessidade dos eventos. Assis chama essas aberturas de frestas. McKee as chama de brechas. De qualquer forma, essa organicidade entre necessidade e contingência confere qualidade à estrutura ficcional, fato que Assis analisa no capítulo dedicado à trama. 

Que histórias devo narrar em terceira pessoa? E em primeira? Por quê? Quais os ganhos e perdas dessa decisão? Em caso de terceira pessoa, qual a melhor focalização, externa ou interna? Quando colocar as informações na voz do narrador? Quando abri-las em diálogos? Quais as melhores aplicações do discurso direto, do discurso indireto, do discurso indireto livre, do monólogo interior e do fluxo de consciência? Qual a melhor maneira de distribuir as informações complexas e detalhadas de meu universo ficcional? Estes são outros pontos abordados por Assim e que tiram o sono de escritores experientes e iniciantes: o narrador e a focalização. Quem disser que são questões impertinentes estará mentindo. 

Uma das originalidades de sua abordagem é a descrição de um novo tipo de narrador: o onisciente contemporâneo. Diferente do tradicional, esse narrador onisciente contemporâneo consegue produzir um efeito de aparente neutralidade em relação às informações e ao conhecimento global que possui do universo narrado. Isso é eficiente por dois motivos. Primeiro: livra o escritor de certo artificialismo da onisciência tradicional, cujo narrador, como em um passe de mágica, sabe de todos os meandros insondáveis do cosmos ficcional. Segundo: libera o escritor da obrigação de inserir esses conhecimentos do universo na mente das personagens ou em diálogos, em falas expositivas. Esse narrador onisciente contemporâneo também nos auxilia em um recurso bastante importante: a sumarização. Para Assis, a sumarização é o melhor meio de distribuir as informações do universo ficcional ao longo da narrativa, sem soar pedante ou explicativo. 

E o espaço e o tempo? Devido ao truísmo de que a literatura é uma arte temporal, muitas categorias e reflexões importantes sobre o espaço ficcional foram negligenciadas. Desde a fenomenologia de Husserl e Bachelard às teorias das esferas de animação e às atmosferas (Stimmung) nas artes e na literatura, desenvolvidas por Peter Sloterdijk e Hans Ulrich Gumbrecht, o espaço passou a ser redimensionado na literatura. Assis fornece uma contribuição valiosa ao repensar a importância do espaço como correlato objetivo da personagem. Segue um axioma: não existe espaço inocente na narrativa. Tudo o que existe, que é referido ou que se insere no espaço ficcional precisa ter algum valor para as personagens ou para a trama. 

Não se trata de um determinismo causal, como a famosa Lei de Chekhov: se um revólver aparecer no primeiro ato, deve disparar no terceiro. O que Assis sugere é que o espaço possa ser explorado em todas as suas dimensões. E utilizados todos os sentidos, desde os fundamentais (audição, visão, tato, paladar, olfato) a sensações dispersas pela fisiologia das personagens. Quanto mais sentidos e sensações, mais real a personagem. E, por conseguinte, mais convincentes as suas ações. 

Quanto ao tempo, haveria alguns recursos para dispô-lo em função da narrativa. Pode-se ordenar o timing dos eventos em cronologia como uma forma de ganhar na ordem das ações e do drama. Pode-se aprofundar as ações e o tempo internos das personagens de modo a dilatar uma das esferas narrativas em detrimento de outras. Essas assincronias deliberadas potencializam as diversas outras dimensões da narrativa e os outros tipos de tempo, gerando contrastes e reviravoltas de expectativas por parte do leitor. Assis trata também do lugar e do papel dos flashbacks e dos flashforwards, da retrospecção e da prospeção narrativas, suas virtudes e seus perigos. 

Toda obra de Assis é pontilhada por exemplos detalhados de clássicos e modernos: Shakespeare, Balzac, Novalis, Flaubert, Proust, Camus, Schnitzler, Joyce, dentre outros. E concentra-se em autores contemporâneos bastante diversos como Kundera, Murakami, McEwan, Ishiguro, Fuentes, Cortázar, em uma perspectiva pluralista e rica da literatura. Um dos pontos altos entretanto é a quantidade de referências a escritores brasileiros em atividade: Michel Laub, Carol Bensimon, João Anzanello Carrascoza e outros. 

Como o campo da Escrita Criativa ainda é novo e movediço, não poderia deixar de haver algumas discordâncias. Embora as caixas de destaque de alguns pontos sejam um recurso excelente, o excesso de subdivisões dos capítulos às vezes mais embaralha o conteúdo do que o elucida. O conceito de sistema se confunde com o de estrutura e permanece amolando do livro sem uma explicação satisfatória.

O capítulo sobre o tempo e sobre a estrutura não conversam entre si. Além disso, ignoram muitas formalizações de teorias narrativas antigas e modernas que precisariam ser pelo menos mencionadas. O “quadrilátero do tempo” não funciona. E, por fim, a proposta final de criação de um romance linear fica aquém de toda riqueza explorada ao longo da obra. 

ESCREVER FICÇÃO  AUTOR: LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS 400 PÁGINAS R$ 79,90

*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR, DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA (UERJ) E PROFESSOR TITULAR DA FAAP

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