Malle, ainda e de novo. Cássio me pergunta, num post anterior, o que penso de 'Atlantic City' e acrescenta que se trata do único filme que viu do diretor... Um Malle norte-americano, com Burt Lancaster e a jovem Susan Sarandon. Sempre que tento me lembrar desse filme o que vem é o começo, o velho Lancaster que observa pela janela a vizinha (Susan), que espreme um limão nas axilas, a título de desodorante. Logo depois vem outra cena, um hippie já meio fora de época que rouba cocaína de um traficante. 'Atlantic City' ganhou uma mídia extra no Brasil, no começo dos anos 80, porque dividiu com 'Glória', de John Cassavetes, o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1980, no qual Glauber Rocha concorria com 'A Idade da Terra'. Glauber ficou tão fora de si com a decisão do júri que, em vez de agredir os jurados, chamou Malle para brigar. Lembro-me, porque foi uma coisa que me marcou, que Malle, ao deixar a França para se radicar nos EUA, disse que havia começado a ver o mundo de forma diferente. Uma cultura do efêmero - ele se impressionava por ver prédios em construção que seriam demolidos em 20 anos e objetos feitos para não durar, para se tornar obsoletos num par de anos. Dessa ausência de presente, dessa rota direta do passado com o futuro, nasce justamente 'Atlantic City', no qual a cidade ressurge como Fênix das cinzas de sua decadência, com a aprovação do jogo e a construção de novos cassinos. O filme é todo feito de contrastes - a decadente passarela de madeira que abriga todo tipo de derrotado ou esquecido pela sorte, tratando-se de uma cidade que vive de jogos de azar, e a vulgaridade dos luminosos que anunciam os novos tempos. Nesse quadro, Malle antecipou, de quase 30 anos, uma tendência do cinema atual - a ficção nas bordas do documentário, e vice-versa. Malle escreveu 'Atlantic City' com John Guare, o dramaturgo que roteirizou 'Procura Insaciável' (Taking Off), primeiro filme norte-americano de Milos Forman, e o mesmo com quem ele trabalhava, ao morrer, no projeto nunca concretizado sobre Marlene Dietrich. 'Atlantic City' é um filme europeu, na mise-en-scène, mas profundamente enraizado na 'América' pela paisagem e pelos personagens. O velho jogador mitômano, a crupiê ambiciosa, o pistoleiro que recobra a coragem, ganha o dinheiro e a mocinha... Tento entender a raiva de Glauber, anunciando a estética do sonho de 'A Idade da Terra' e vendo lhe escapar o Leão, que foi para uma dupla celebração do cinema de gênero à 'americana', que ele odiava, o thriller de Cassavetes e o filme noir (revisitado) de Malle. Não tenho uma grande lembrança de 'Atlantic City', exceto por fragmentos, a velha Kate Reid que se liga à hippie grávida, por exemplo. Meus filmes favoritos de Malle são 'O Ladrão Aventureiro' e 'Tio Vânia em Nova York', mas também gosto - muito - de 'Adeus, Meninos' e 'Loucuras de Primavera' (Milou en Mai). Já que falei em Malle e Veneza, ele sempre teve uma relação muito estreita conm o Lido. Acho que poucos diretores foram tão premiados num só festival. 'Os Amantes' ganhou sei lá que prêmio, acho que especial do júri, em 1958; '30 Anos' também foi premiado em 1963, mas foi nos 80 que Malle ganhou seus Leões - o primeiro por 'Atlantic City', ex-aequo, e o outro, solitário, por 'Au Revoir, les Enfants', em 1980 e 87. Susan Sarandon já havia feito a mãe de Brooke Shield em 'Pretty Baby'. Malle e ela chegaram a ter um affair, antes que ele se casasse com Candice Bergen. Mas o filme 'Atlantic City' vé dominado pela persona de Burt Lancaster. Alguém escreveu que seu velho jogador poderia ser o Sueco de 'Os Assassinos', de Robert Siodmak, se não tivesse sido morto na abertura do clássico adaptado do conto de Ernest Hemingway. Lancaster foi um grande ator em Hollywood. Ele tem papéis inesquecíveis em filmes de Robert Aldrich, John Frankenheimer, Richard Brooks, John Sturges e o já citado Siodmak ('O Pirata Sangrento'!). Mas Lancaster é ainda melhor com Visconti, 'O Leopardo' e 'Violência e Paixão', com Bertolucci, 'Novecento', e com Malle, justamente 'Atlantic City'. Maravilhoso!
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