JOÃO PESSOA - O recém-encerrado Fest Aruanda 2024 teve como vencedor A Queda do Céu (RJ), de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha.
É um excelente exemplo de obra bem construída, chamando seu conteúdo na exatidão da forma. A partir do testemunho do xamã yanomami Davi Kopenawa, acompanha o ritual Reahu, no qual a comunidade Watoriki faz um esforço coletivo para segurar o céu que ameaça desabar sobre sua cabeça.
A ideia é oportuna, em especial num momento em que cada ser humano com um mínimo de consciência sabe que existe uma espada constantemente erguida sobre sua cabeça, prestes a cair, seja na forma política da extrema-direita, seja nos distúrbios climáticos frutos da depredação do meio ambiente.
Estamos nessa e, portanto, é muito útil ouvir quem denomina os brancos como os "homens da mercadoria" como faz Kopenawa. Porque tudo passa por aí, pelo fetiche da mercadoria, pela ilusão do crescimento infinito da economia, pelo erro de supor a falta de limites dos recursos planetários.
Tudo vem à tela numa obra de beleza ímpar, anunciada já no plano-sequência inicial, com uma comunidade avançando em direção à câmera em tomada única. A partir desse plano já está garantido que não veremos imagens ou ideias banais pelo resto do filme. Além do troféu principal, A Queda do Céu venceu nas categorias de montagem e som.
Outro bastante premiado foi Kasa Branca (RJ), de Luciano Vidigal, veterano de outros festivais. Um rapaz cuida de sua avó, que sofre de Alzheimer e está próxima da morte. Em companhia de dois amigos e da idosa, ele vai tocando sua vida entre festas, tentativa de reaproximação com o pai e envolvimentos amorosos. Tudo poderia confluir para um melô clichê, mas Vidigal dosa emoção e naturalismo em dose que promete contato com o público. Ganhou o júri popular, o Prêmio Especial do Júri e atriz coadjuvante (Teca Pereira).
Baby (SP), de Marcelo Caetano, é um filme excepcional. Põe em cena o relacionamento entre dois homens, um jovem michê e seu gigolô com o dobro da idade. O que poderia ser uma relação de exploração, revela-se simplesmente um caso de amor - nada óbvio e filmado com muita inspiração. Ganhou vários troféus, entre os quais o de melhor ator (João Pedro Mariano) e roteiro.
Manas (PE), de Marianna Brennand, é outro desses veteranos de festivais. Fala de pedofilia no interior das famílias, tomando um caso na ilha de Marajó. Uma garota de 13 anos, assediada e sem perspectivas, tenta uma saída desesperada para escapar da engrenagem em relação à qual a mãe é cúmplice e a polícia, impotente. Prêmio de direção para a cineasta e Prêmio Especial do Júri para o conjunto das intérpretes.
O original Lispectorante (PE), de Renata Pinheiro, ficou com os troféus de atriz (Marcélia Cartaxo) e coadjuvante (Pedro Wagner), e me pareceu bastante interessante. Tira a atriz Marcélia Cartaxo do seu habitat artístico habitual e faz da sua personagem uma artista plástica tão sofisticada como angustiada. Ela tenta se (re)encontrar através do labirinto existencial proposto pela literatura de Clarice Lispector.
Na mostra nacional, apenas um longa foi ignorado e, a meu ver, de forma injusta. De formato convencional, é verdade, Os Afro-Sambas, o Brasil de Baden e Vinícius, traz no entanto momentos de beleza e informação acerca dos bastidores da gravação de uma obra-prima da música brasileira, o LP Os Afro-Sambas, de 1966. O cinema de pesquisa não é lá muito valorizado entre nós.
Foi também criado este ano o Prêmio Vladimir Carvalho para o melhor documentário em qualquer das mostras. Venceu o cearense Lampião - o Governador do Sertão, de Wolney Oliveira.
LONGA-METRAGEM BRASILEIRO:
. "A Queda do Céu", de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha (RJ) - melhor filme, montagem (Renato Vallone), som (Guile Martins, Marcos Lopes e Toco Cerqueira)
. "Kasa Branca", de Luciano Vidigal (RJ) - melhor filme pelo júri popular e pela Crítica (Abraccine), Prêmio Especial do Júri, atriz coadjuvante (Teca Pereira)
. "Baby", de Marcelo Caetano (SP): melhor ator (João Pedro Mariano), roteiro (Marcelo Caetano e Gabriel Domingues), fotografia (Joana Luz e Pedro Sotero), trilha sonora: (Bruno Prado e Caê Rolfsen), direção de arte (Thales Junqueira), figurino (Gabriela Campos)
. "Manas", de Marianna Brennand (PE) - melhor direção, prêmio especial do Júri para o coletivo de atores.
. "Lispectorante", de Renata Pinheiro (PE) - melhor atriz (Marcélia Cartaxo), melhor coadjuvante (Pedro Wagner)
LONGAS-METRAGENS
(Mostra Sob o Céu do Nordeste):
. "Ainda Não É Amanhã", de Milena Times (PE) - melhor filme, direção, atriz (Mayara Santos), coadjuvante (Bárbara Vitória), fotografia (Linga Acácio), direção de arte (Lia Letícia), figurino (Libra Lima),
. "Lampião, o Governador do Sertão", de Wolney Oliveira (CE) - melhor roteiro (Wolney Oliveira e Margarita Hernandez), montagem (Mair Tavares e Daniel Garcia), som (Leo Oliveira e Lenio Oliveira).
. "Centro ilusão", de Pedro Diógenes (CE): melhor ator (Fernando Catatau), coadjuvante (Bruno Kunk), trilha sonora (Cozilos Vitor)
. "Quem é Essa Mulher?", de Mariana Jaspe (BA): Júri popular, menção honrosa do Júri oficial