Cinema, cultura & afins

Opinião|Aruanda 2024: Lispectorante, a liberação através do sonho


Por Luiz Zanin Oricchio
 

Diário crítico (2)

JOÃO PESSOA - Lispectorante, de Renata Pinheiro, estabelece um diálogo interessante com a obra de Clarice Lispector, como sugere o título. Como se sabe, Clarice, uma das principais escritoras do Brasil, nasceu na Ucrânia e veio menina para o Recife, sua primeira morada no país tropical.

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Renata Pinheiro, que é pernambucana, constrói uma personagem ficcional para adentrar o universo clariciano. Marcélia Cartaxo (de A Hora da Estrela e Pacarrete), interpreta Glória Hartman, artista plástica que vive no exterior e se encontra em crise financeira e existencial. A casa de sua família encontra-se em disputa judicial entre os herdeiros.

Glória visita no centro do Recife, a casa onde Clarice morou anos atrás. Agora é um museu. Mas um museu estranho porque contém um buraco, uma espécie de portal que dá a Glória acesso a certas "alucinações", certas iluminações típicas Clarice, escritora que buscava alumbramentos e epifanias através da sua escrita.

É assim: Glória precisa se reencontrar, e tenta fazê-lo através de Clarice. Não apenas. Em suas andanças, ela conhece um vendedor de bijuterias na rua, Guitar, e acaba engatando uma amizade e mais que isso com ele. É como se, numa dicotomia, Clarice cuidasse do seu espírito e Guitar do seu corpo. Distinções apenas teóricas. Apenas, já que corpo e espírito dificilmente se separam. O ser é uma coisa só.

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Renata Pinheiro (de Carro Rei) é uma diretora criativa, que sabe escapar de forma convincente do realismo dominante do cinema. Vai ao existencial, o onírico, à transfiguração. Sobre o filme disse, em entrevista, que "Lispectorante não nasceu de um algoritmo, ou de uma comoção, não é sobre um problema social, não é sobre uma estatística assustadora. É um filme sobre o esquecido, ignorado, inexistente. Sobre a alma, sobre a alma de uma mulher de quase 60 anos, uma cidade abandonada, um sobrado em ruínas e um andarilho romântico."

Duas observações ainda sobre o filme. Marcélia Cartaxo é uma atriz consagrada, vencedora de um Urso de Prata em Berlim por A Hora da Estrela, tem experiência na direção e ao longo da vida ganhou uma penca de vezes os troféus de melhor atriz. No entanto, em Lispectorante, ela tem, talvez pela primeira vez, um papel muito físico, que ama e deseja. É um corpo desejante e pulsional.

Segundo que, em muitos momentos, sua personagem me pareceu dialogar com Giulietta Masina, em especial no filme de Fellini Julieta dos Espíritos. Julieta e Glória são mulheres que buscam se emancipar, e o fazem através dos sonhos, da fantasia, do resgate da memória. Não são dimensões escapistas dessas mulheres, como se poderia supor numa visão limitada, mas caminhos para se encontrar com o mundo e consigo mesmas.

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Por falar nisso, a história se passa a poucos dias do carnaval de rua, quando grupos musicais e foliões, "tomam o poder" nesse mundo às avessas, que existe por tempo determinado. O carnaval é outra maneira de sonhar, e sonho pode ser visto como via de liberação. "Somos da mesma matéria da qual são feitos os sonhos", dizia Shakespeare.

 

Diário crítico (2)

JOÃO PESSOA - Lispectorante, de Renata Pinheiro, estabelece um diálogo interessante com a obra de Clarice Lispector, como sugere o título. Como se sabe, Clarice, uma das principais escritoras do Brasil, nasceu na Ucrânia e veio menina para o Recife, sua primeira morada no país tropical.

Renata Pinheiro, que é pernambucana, constrói uma personagem ficcional para adentrar o universo clariciano. Marcélia Cartaxo (de A Hora da Estrela e Pacarrete), interpreta Glória Hartman, artista plástica que vive no exterior e se encontra em crise financeira e existencial. A casa de sua família encontra-se em disputa judicial entre os herdeiros.

Glória visita no centro do Recife, a casa onde Clarice morou anos atrás. Agora é um museu. Mas um museu estranho porque contém um buraco, uma espécie de portal que dá a Glória acesso a certas "alucinações", certas iluminações típicas Clarice, escritora que buscava alumbramentos e epifanias através da sua escrita.

É assim: Glória precisa se reencontrar, e tenta fazê-lo através de Clarice. Não apenas. Em suas andanças, ela conhece um vendedor de bijuterias na rua, Guitar, e acaba engatando uma amizade e mais que isso com ele. É como se, numa dicotomia, Clarice cuidasse do seu espírito e Guitar do seu corpo. Distinções apenas teóricas. Apenas, já que corpo e espírito dificilmente se separam. O ser é uma coisa só.

Renata Pinheiro (de Carro Rei) é uma diretora criativa, que sabe escapar de forma convincente do realismo dominante do cinema. Vai ao existencial, o onírico, à transfiguração. Sobre o filme disse, em entrevista, que "Lispectorante não nasceu de um algoritmo, ou de uma comoção, não é sobre um problema social, não é sobre uma estatística assustadora. É um filme sobre o esquecido, ignorado, inexistente. Sobre a alma, sobre a alma de uma mulher de quase 60 anos, uma cidade abandonada, um sobrado em ruínas e um andarilho romântico."

Duas observações ainda sobre o filme. Marcélia Cartaxo é uma atriz consagrada, vencedora de um Urso de Prata em Berlim por A Hora da Estrela, tem experiência na direção e ao longo da vida ganhou uma penca de vezes os troféus de melhor atriz. No entanto, em Lispectorante, ela tem, talvez pela primeira vez, um papel muito físico, que ama e deseja. É um corpo desejante e pulsional.

Segundo que, em muitos momentos, sua personagem me pareceu dialogar com Giulietta Masina, em especial no filme de Fellini Julieta dos Espíritos. Julieta e Glória são mulheres que buscam se emancipar, e o fazem através dos sonhos, da fantasia, do resgate da memória. Não são dimensões escapistas dessas mulheres, como se poderia supor numa visão limitada, mas caminhos para se encontrar com o mundo e consigo mesmas.

Por falar nisso, a história se passa a poucos dias do carnaval de rua, quando grupos musicais e foliões, "tomam o poder" nesse mundo às avessas, que existe por tempo determinado. O carnaval é outra maneira de sonhar, e sonho pode ser visto como via de liberação. "Somos da mesma matéria da qual são feitos os sonhos", dizia Shakespeare.

 

Diário crítico (2)

JOÃO PESSOA - Lispectorante, de Renata Pinheiro, estabelece um diálogo interessante com a obra de Clarice Lispector, como sugere o título. Como se sabe, Clarice, uma das principais escritoras do Brasil, nasceu na Ucrânia e veio menina para o Recife, sua primeira morada no país tropical.

Renata Pinheiro, que é pernambucana, constrói uma personagem ficcional para adentrar o universo clariciano. Marcélia Cartaxo (de A Hora da Estrela e Pacarrete), interpreta Glória Hartman, artista plástica que vive no exterior e se encontra em crise financeira e existencial. A casa de sua família encontra-se em disputa judicial entre os herdeiros.

Glória visita no centro do Recife, a casa onde Clarice morou anos atrás. Agora é um museu. Mas um museu estranho porque contém um buraco, uma espécie de portal que dá a Glória acesso a certas "alucinações", certas iluminações típicas Clarice, escritora que buscava alumbramentos e epifanias através da sua escrita.

É assim: Glória precisa se reencontrar, e tenta fazê-lo através de Clarice. Não apenas. Em suas andanças, ela conhece um vendedor de bijuterias na rua, Guitar, e acaba engatando uma amizade e mais que isso com ele. É como se, numa dicotomia, Clarice cuidasse do seu espírito e Guitar do seu corpo. Distinções apenas teóricas. Apenas, já que corpo e espírito dificilmente se separam. O ser é uma coisa só.

Renata Pinheiro (de Carro Rei) é uma diretora criativa, que sabe escapar de forma convincente do realismo dominante do cinema. Vai ao existencial, o onírico, à transfiguração. Sobre o filme disse, em entrevista, que "Lispectorante não nasceu de um algoritmo, ou de uma comoção, não é sobre um problema social, não é sobre uma estatística assustadora. É um filme sobre o esquecido, ignorado, inexistente. Sobre a alma, sobre a alma de uma mulher de quase 60 anos, uma cidade abandonada, um sobrado em ruínas e um andarilho romântico."

Duas observações ainda sobre o filme. Marcélia Cartaxo é uma atriz consagrada, vencedora de um Urso de Prata em Berlim por A Hora da Estrela, tem experiência na direção e ao longo da vida ganhou uma penca de vezes os troféus de melhor atriz. No entanto, em Lispectorante, ela tem, talvez pela primeira vez, um papel muito físico, que ama e deseja. É um corpo desejante e pulsional.

Segundo que, em muitos momentos, sua personagem me pareceu dialogar com Giulietta Masina, em especial no filme de Fellini Julieta dos Espíritos. Julieta e Glória são mulheres que buscam se emancipar, e o fazem através dos sonhos, da fantasia, do resgate da memória. Não são dimensões escapistas dessas mulheres, como se poderia supor numa visão limitada, mas caminhos para se encontrar com o mundo e consigo mesmas.

Por falar nisso, a história se passa a poucos dias do carnaval de rua, quando grupos musicais e foliões, "tomam o poder" nesse mundo às avessas, que existe por tempo determinado. O carnaval é outra maneira de sonhar, e sonho pode ser visto como via de liberação. "Somos da mesma matéria da qual são feitos os sonhos", dizia Shakespeare.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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