Cinema, cultura & afins

Opinião|Brasília 2023 (2): Documentário 'No Céu da Pátria nesse Instante', sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro, põe fogo no Festival de Brasília


Por Luiz Zanin Oricchio
 

 

BRASÍLIA - O festival pegou fogo com a exibição do documentário No Céu da Pátria nesse Instante, de Sandra Kogut. O ponto de combustão veio da temática - o transe brasileiro entre as eleições de 2022 e a tentativa de golpe de 8 de janeiro, quando as sedes dos três poderes foram invadidas e depredadas por bolsonaristas inconformados com o resultado do pleito. 

continua após a publicidade

A plateia reagiu como nos melhores dias do festival, comportando-se como num campo de futebol, intervindo, aplaudindo, vaiando. Vibrando. Quase 100% era de gente de esquerda. Uma ou outra voz dissonante era logo acolhida com vaias e esse desacordo virava estopim de novas manifestações, até que o filme ganhasse um patamar emocional que não mais baixou, até os créditos finais. 

De certa forma, essa reação expressa, em modo catártico, o atual estágio da democracia brasileira. Alívio pela interrupção da escalada neofascista do governo anterior, apreensão pela exígua diferença de votos entre o candidato da oposição vencedor e o incumbente. Lula venceu, mas o bolsonarismo segue forte, ainda que com Bolsonaro inelegível. Como pode manter popularidade depois do governo que fez, é um dos mais insondáveis mistérios da vida nacional. 

Um dos grandes méritos do filme é ter seguido personagens não apenas do lado lulista mas também do bolsonarista. Não os trata como personagens folclóricos, mas tenta entender suas razões, ainda que estas pareçam inacessiveis ao entendimento racional. Eles são vistos em família, mas também nos acampamentos golpistas formados após a derrota nas urnas. O filme conta também com imagens e sons dos bastidores de um desses acampamentos, aquele formado diante do Quartel-General do Exército, em Brasília. As imagens foram captadas por um cinegrafista infiltrado. Que, aliás, foi descoberto pelos bolsonaristas e passou maus bocados, sendo submetido a interrogatório, sofrendo pressões e ameaças de represália.

continua após a publicidade

O filme tem mesmo esse caráter de guerrilha, filmando em diversas localidades do país, ouvindo gente dos dois lados e buscando, de qualquer forma, captar a intensidade daquele abalo sísmico permanente que nos acostumamos a chamar de transe brasileiro. Em meio a essa cacofonia de vozes, encontra seu eixo na montagem inteligente, que dá certa coerência à obra. Pode-se objetar uma e outra coisa. Por exemplo, o tempo excessivo dedicado às urnas eletrônicas, questionadas por Bolsonaro. Sandra Kogut diz que fez questão de manter a sequência por uma razão até didática, evidenciar  a complexidade técnica que garante a confiabilidade do equipamento, aliás reconhecida pelo próprio Exército. 

O filme tem lado, obviamente, mas, como já disse, é respeitoso com o lado oposto, mesmo porque parece sinceramente movido por um desejo de compreensão. O Brasil pós 2013 virou uma ameaçadora esfinge, difícil de ser decifrada e prestes a nos devorar. Este documentário, somado a vários outros recentes, representa esse intenso esforço de compreensão nacional diante de uma realidade tão difícil de ser analisada pelas ferramentas teóricas convencionais. No mesmo momento em que está sendo lançado um livro chamado Biografia do Abismo, de Felipe Nunes e Thomas Traumann, cuja tese central é a da "polarização calcificada", o filme nos traz o impressionante depoimento de um caminhoneiro bolsonarista, o paranaense Ferreirinha. A diretora tenta argumentar defendendo a validade das eleições, e ele responde, incrédulo: "Não adianta, Sandra, vamos acabar esse gravação e parar por aqui. Nós moramos em países diferentes, você vê as coisas de um jeito e eu, do outro. Não adiante continuar". 

De certa forma, o documentário é a negação dessa desistência e afirmação do desejo de compreender e dialogar, mesmo que essas metas pareçam agora tão distantes, senão utópicas. 

continua após a publicidade

 

 

 

BRASÍLIA - O festival pegou fogo com a exibição do documentário No Céu da Pátria nesse Instante, de Sandra Kogut. O ponto de combustão veio da temática - o transe brasileiro entre as eleições de 2022 e a tentativa de golpe de 8 de janeiro, quando as sedes dos três poderes foram invadidas e depredadas por bolsonaristas inconformados com o resultado do pleito. 

A plateia reagiu como nos melhores dias do festival, comportando-se como num campo de futebol, intervindo, aplaudindo, vaiando. Vibrando. Quase 100% era de gente de esquerda. Uma ou outra voz dissonante era logo acolhida com vaias e esse desacordo virava estopim de novas manifestações, até que o filme ganhasse um patamar emocional que não mais baixou, até os créditos finais. 

De certa forma, essa reação expressa, em modo catártico, o atual estágio da democracia brasileira. Alívio pela interrupção da escalada neofascista do governo anterior, apreensão pela exígua diferença de votos entre o candidato da oposição vencedor e o incumbente. Lula venceu, mas o bolsonarismo segue forte, ainda que com Bolsonaro inelegível. Como pode manter popularidade depois do governo que fez, é um dos mais insondáveis mistérios da vida nacional. 

Um dos grandes méritos do filme é ter seguido personagens não apenas do lado lulista mas também do bolsonarista. Não os trata como personagens folclóricos, mas tenta entender suas razões, ainda que estas pareçam inacessiveis ao entendimento racional. Eles são vistos em família, mas também nos acampamentos golpistas formados após a derrota nas urnas. O filme conta também com imagens e sons dos bastidores de um desses acampamentos, aquele formado diante do Quartel-General do Exército, em Brasília. As imagens foram captadas por um cinegrafista infiltrado. Que, aliás, foi descoberto pelos bolsonaristas e passou maus bocados, sendo submetido a interrogatório, sofrendo pressões e ameaças de represália.

O filme tem mesmo esse caráter de guerrilha, filmando em diversas localidades do país, ouvindo gente dos dois lados e buscando, de qualquer forma, captar a intensidade daquele abalo sísmico permanente que nos acostumamos a chamar de transe brasileiro. Em meio a essa cacofonia de vozes, encontra seu eixo na montagem inteligente, que dá certa coerência à obra. Pode-se objetar uma e outra coisa. Por exemplo, o tempo excessivo dedicado às urnas eletrônicas, questionadas por Bolsonaro. Sandra Kogut diz que fez questão de manter a sequência por uma razão até didática, evidenciar  a complexidade técnica que garante a confiabilidade do equipamento, aliás reconhecida pelo próprio Exército. 

O filme tem lado, obviamente, mas, como já disse, é respeitoso com o lado oposto, mesmo porque parece sinceramente movido por um desejo de compreensão. O Brasil pós 2013 virou uma ameaçadora esfinge, difícil de ser decifrada e prestes a nos devorar. Este documentário, somado a vários outros recentes, representa esse intenso esforço de compreensão nacional diante de uma realidade tão difícil de ser analisada pelas ferramentas teóricas convencionais. No mesmo momento em que está sendo lançado um livro chamado Biografia do Abismo, de Felipe Nunes e Thomas Traumann, cuja tese central é a da "polarização calcificada", o filme nos traz o impressionante depoimento de um caminhoneiro bolsonarista, o paranaense Ferreirinha. A diretora tenta argumentar defendendo a validade das eleições, e ele responde, incrédulo: "Não adianta, Sandra, vamos acabar esse gravação e parar por aqui. Nós moramos em países diferentes, você vê as coisas de um jeito e eu, do outro. Não adiante continuar". 

De certa forma, o documentário é a negação dessa desistência e afirmação do desejo de compreender e dialogar, mesmo que essas metas pareçam agora tão distantes, senão utópicas. 

 

 

 

BRASÍLIA - O festival pegou fogo com a exibição do documentário No Céu da Pátria nesse Instante, de Sandra Kogut. O ponto de combustão veio da temática - o transe brasileiro entre as eleições de 2022 e a tentativa de golpe de 8 de janeiro, quando as sedes dos três poderes foram invadidas e depredadas por bolsonaristas inconformados com o resultado do pleito. 

A plateia reagiu como nos melhores dias do festival, comportando-se como num campo de futebol, intervindo, aplaudindo, vaiando. Vibrando. Quase 100% era de gente de esquerda. Uma ou outra voz dissonante era logo acolhida com vaias e esse desacordo virava estopim de novas manifestações, até que o filme ganhasse um patamar emocional que não mais baixou, até os créditos finais. 

De certa forma, essa reação expressa, em modo catártico, o atual estágio da democracia brasileira. Alívio pela interrupção da escalada neofascista do governo anterior, apreensão pela exígua diferença de votos entre o candidato da oposição vencedor e o incumbente. Lula venceu, mas o bolsonarismo segue forte, ainda que com Bolsonaro inelegível. Como pode manter popularidade depois do governo que fez, é um dos mais insondáveis mistérios da vida nacional. 

Um dos grandes méritos do filme é ter seguido personagens não apenas do lado lulista mas também do bolsonarista. Não os trata como personagens folclóricos, mas tenta entender suas razões, ainda que estas pareçam inacessiveis ao entendimento racional. Eles são vistos em família, mas também nos acampamentos golpistas formados após a derrota nas urnas. O filme conta também com imagens e sons dos bastidores de um desses acampamentos, aquele formado diante do Quartel-General do Exército, em Brasília. As imagens foram captadas por um cinegrafista infiltrado. Que, aliás, foi descoberto pelos bolsonaristas e passou maus bocados, sendo submetido a interrogatório, sofrendo pressões e ameaças de represália.

O filme tem mesmo esse caráter de guerrilha, filmando em diversas localidades do país, ouvindo gente dos dois lados e buscando, de qualquer forma, captar a intensidade daquele abalo sísmico permanente que nos acostumamos a chamar de transe brasileiro. Em meio a essa cacofonia de vozes, encontra seu eixo na montagem inteligente, que dá certa coerência à obra. Pode-se objetar uma e outra coisa. Por exemplo, o tempo excessivo dedicado às urnas eletrônicas, questionadas por Bolsonaro. Sandra Kogut diz que fez questão de manter a sequência por uma razão até didática, evidenciar  a complexidade técnica que garante a confiabilidade do equipamento, aliás reconhecida pelo próprio Exército. 

O filme tem lado, obviamente, mas, como já disse, é respeitoso com o lado oposto, mesmo porque parece sinceramente movido por um desejo de compreensão. O Brasil pós 2013 virou uma ameaçadora esfinge, difícil de ser decifrada e prestes a nos devorar. Este documentário, somado a vários outros recentes, representa esse intenso esforço de compreensão nacional diante de uma realidade tão difícil de ser analisada pelas ferramentas teóricas convencionais. No mesmo momento em que está sendo lançado um livro chamado Biografia do Abismo, de Felipe Nunes e Thomas Traumann, cuja tese central é a da "polarização calcificada", o filme nos traz o impressionante depoimento de um caminhoneiro bolsonarista, o paranaense Ferreirinha. A diretora tenta argumentar defendendo a validade das eleições, e ele responde, incrédulo: "Não adianta, Sandra, vamos acabar esse gravação e parar por aqui. Nós moramos em países diferentes, você vê as coisas de um jeito e eu, do outro. Não adiante continuar". 

De certa forma, o documentário é a negação dessa desistência e afirmação do desejo de compreender e dialogar, mesmo que essas metas pareçam agora tão distantes, senão utópicas. 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.