BRASÍLIA - Com o doc Criaturas da Mente, de Marcelo Gomes, dedicado ao neurocientista Sidarta Ribeiro, começou no sábado o Festival de Brasília. O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro é o mais antigo do país. Criado em 1965 por Paulo Emílio e equipe, abriu sua 57ª edição honrando uma tradição de dedicar-se, de forma exclusiva, à produção nacional.
O filme de Marcelo Gomes, exibido fora de competição, foi precedido por uma série de tributos póstumos e uma homenagem. Os tributos lembraram três personalidades do mundo do cinema ligadas ao Distrito Federal e falecidas ao longo deste ano: o documentarista Vladimir Carvalho, o diretor Pedro Anísio e a atriz Mallu Moraes. O espaço de exibição principal do Cine Brasília passa a chamar-se Sala Vladimir Carvalho.
O Cine Brasília foi remodelado para o festival deste ano. Além da sala de exibição principal, terá uma sala secundária, ocupada pelas mostras paralelas do festival. O espaço gastronômico, que ferve à noite após a sessão principal, continua lá - lotado e barulhento como sempre. Anexas ao cinema desenhado por Oscar Niemeyer, foram montadas algumas dependências provisórias que abrigarão salas de debates, mesas-redondas e sessões de pitching, para turbinar a parte de mercado.
Diário crítico (1)
Criaturas da mente fala da aproximação entre Marcelo Gomes e Sidarta Ribeiro. Durante a pandemia Gomes notou que não sonhava mais e isso o perturbava. Procurou Sidarta, um pesquisador do sono e do sonho de renome internacional, autor do best-seller O Oráculo da Noite - a história e a ciência dos sonhos, entre vários outros livros.
O filme nos propõe uma viagem que mescla o rigor da ciência com práticas ancestrais, transe, capoeira, ayahuasca, cultura indígena e candomblé. Uma visão multifacetada, que coloca o ser humano em patamar complexo, além daquele em que ele supõe esteja depositada sua maior conquista - a razão.
O próprio cineasta se submete a uma experiência com ayahuasca, que "não recomenda a ninguém", apesar de iluminadora. Mas é, como ele diz, uma viagem sem volta, e que pode mudar o eixo da existência de uma pessoa.
Sonhos, drogas, consciência expandida - nada disso é novidade. Freud interpretou os sonhos como realizações disfarçadas de desejos inconscientes. O dissidente Jung expandiu conceitos, abrangendo um inconsciente coletivo que se exprime de várias maneiras, entre as quais o sonho. Muitos artistas o seguiram nesse caminho que associa o trabalho do sonho à criatividade, dos surrealistas ao grande Federico Fellini, que também embarcou em viagens de LSD, sob supervisão médica.
No animado debate que se seguiu à exibição, vários temas foram explorados, como os limites de uma ciência eurocêntrica, colocada a serviço da exploração colonial. Mas não se caiu no simplismo. A ciência, afinal, fornece uma base de reflexão até mesmo a quem a contesta. Mas não é algo de absoluto. Sidarta lembra de alguns impasses lógicos da matemática e das dissidências mesmo no seio de uma ciência "dura" por definição, com a física, em que relativistas e adeptos da mecânica quântica falam "idiomas" diferentes na descrição do real.
Enfim, Criaturas da Mente é um filme intrigante, que discute questões amplas, sem cair no didatismo e nem no facilitário. Com sua proposta de pôr em contato conhecimento científico e os saberes dos povos originários e africanos, coloca-se em sintonia com os movimentos "decoloniais" contemporâneos, mas sem compactuar com seus clichês. É filme digno de todo interesse.
Hoje o festival tem seguimento com a abertura da mostra competitiva. Nessa, que é a mostra principal, seis longas disputam os Troféus Candango, entre os quais o esperado A Fúria, do grande Ruy Guerra, de 93 anos, um dos mestres do Cinema Novo. O primeiro concorrente a bater na tela no Cine Brasília será o mineiro Suçuarana, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges
Também na programação do festival, teremos a Mostra Brasília, para produções locais, além de debates e masterclasses, inclusive a aguardada aula de Petra Costa, autora de Apocalipse Tropical, sobre a atual influência da religião na política brasileira.
Suçuarana (MG), de Clarissa Campolina e Sérgio Borges
Pacto da viola (DF), de Guilherme Bacalhao
Meu pai, Kaiowá (MG), de Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna
Enquanto o céu não me espera (AM), de Christiane Garcia
Salomé (PE), de André Antonio
A Fúria (SP), de Ruy Guerra e Luciana Mazzotti