Diário crítico (2)
BRASÍLIA - Logo em sua abertura, o festival começa com o nível lá no alto. O primeiro competidor da mostra de longas, o mineiro Suçuarana, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges, põe em cena Dora (Sinara Teles), moça que anda pelas estradas de Minas, à procura...de quê?
Bem, em todo canto ela busca trabalho. Mas está atrás, mesmo, é de um pedaço de terra deixado por sua mãe. Suçuarana - é esse o nome - pode ser uma espécie de Eldorado, um País de São Saruê, uma terra da promissão. Tudo isso, talvez, e também algum ponto remoto de referência que justifique a deambulação, a vida na rota, o pé na estrada, o movimento. A história é lacônica. Afora o que foi dito, sabemos pouco da personagem.
Em entrevista, a dupla de diretores diz se inspirar na novela de Henry James, A Fera na Selva (filmada em 2017 por Paulo Betti, Eliane Giardini e Lauro Escorel). Se não contassem, eu não adivinharia. Em todo caso, há aí uma ideia geral bem interessante. No texto de James, o personagem perde sua vida justamente porque se coloca numa posição de expectativa - algo extraordinário, talvez trágico, há de acontecer. Ele sente como se uma fera o espreitasse e estivesse sempre prestes a dar o bote.
No debate, Clarissa disse que o livro de James se situa na crise do romantismo. Em que crise situaria uma versão brasileira, ainda que longínqua, desse texto? Bem, crises não nos faltam, mas há uma, fundamental, primordial e que, estranhamente, parece preocupar pouco os cineastas - a crise das transformações do mundo do trabalho, gerando uma multidão de precários que tentam sobreviver de qualquer modo, fazendo bicos ou trabalhando para aplicativos.
Não é por acaso que outro filme mineiro, Arábia, de 2017, se debruça justamente sobre esse tema. E nem que um dos diretores de Arábia, João Dumans, tenha entrado como consultor numa fase do roteiro de Suçuarana.
O título é o nome do lugar na mitologia pessoal de Dora, e a sua procura faz com que ela tope qualquer tipo de trabalho que se apresente. No fundo, ela é uma sem-teto, alguém sem domicílio fixo - o que faz com que o projeto se aproxime de outra das referências, uma das obras-primas de Agnès Varda, Sans Toit Ni Loi (Sem Teto nem Lei, que, no Brasil, ficou sendo Os Renegados).
Em suas andanças, Dora enfrenta desafios de percurso como a falta de comida e abrigo, tentativa de estupro, etc. Mas, por um golpe de sorte, acaba encontrando uma comunidade quilombola, que vive de uma maneira que se poderia quase chamar de utópica, não fosse o caráter precário de sua atividade. Vivem do desmanche de peças de uma fábrica que foi desativada e abandonada. Dora se junta a eles, que convivem numa comunidade harmoniosa e, em aparência, feliz.
Parecem não se preocupar com o efêmero daquele modo de vida. Um dos personagens pergunta a outro: o que fazer quando isso terminar? "Bem, quando tudo terminar, estaremos livres", responde o outro. Entenda como quiser, leitor/leitora, mas a frase soou, em mim, como uma epifania. Algo como a terceira margem de algum rio.
Há um certo sentido alegórico, não apenas nessa resposta, mas permeando o conjunto da obra. Uma espécie de realismo fantástico, bem leve, sutil. Um cão chamado Encrenca se junta à andarilha e reaparece em situações inesperadas. Quando termos a formação de um par - a sem rumo e seu cachorro - eis que o animal parece ter outros planos. Não existe permanência em Suçuarana.
O conjunto estético da obra parece muito bem pensado. Do registro fotográfico (de Ivo Lopes Araújo) à concepção da trilha sonora, montagem e figurinos - tudo denota rigor e inventividade. Coloca esse elevado patamar técnico a serviço de uma ideia, ou de algumas ideias.
O título remete a um lugar mítico no imaginário da protagonista, mas também à canção linda de Hekel Tavares e Luiz Peixoto - na trilha, em gravação de Inezita Barroso, acompanhada pelo mago da viola, Roberto Corrêa.
Não poderia se passar em outro lugar senão em Minas Gerais. O Estado não tem esse nome por acaso. Foi assim batizado, em tempos coloniais, pela riqueza do seu subsolo. A derrama, a Inconfidência, o sacrifício de Tiradentes estão no centro da História do Brasil. A riqueza mineral, que fez a glória de Minas, foi também a sua desgraça - o estado espoliado até o osso pelas mineradoras, como se lê na poesia de Carlos Drummond de Andrade, ao lamentar a destruição do pico do Cauê em sua Itabira natal. Ou nos desastres contemporâneos de Mariana e Sobradinho. É o emblema do extrativismo num país de história extrativista, este que não cuida do futuro, do meio ambiente, de sua população. Essa atualidade histórica toca em cheio a estética de Suçuarana.
Nesse modo, na leitura mineira da nossa crise infinita, há que tomar nota da observação roseana do ator Carlos Francisco, num repente notável durante o debate. Ao comentar que Dora queima a fotografia de que dispõe do suposto legado da mãe: "Agora Suçuarana está em todo lugar". Impossível não lembrar do Guimarães Rosa de Grande Sertão: Veredas - "O sertão está em toda parte". Travessia.
Curtas
Dois bons curtas deram início à mostra competitiva.
Maremoto (RN), de Cristina Lima e Juliana Bezerra. Léo (Eloísa Ferreira). Uma mergulhadora desilude-se com a profissão e tenta ganhar a vida como mecânica de motocicletas. Um irmão procura convencê-la a fazer um último mergulho, em busca de um tesouro perdido, supostamente deixado pelo pai. Capta bem o ambiente de São Miguel do Gostoso, uma bucólica comunidade de pescadores que enfrenta mudanças graças ao afluxo de turistas estrangeiros.
Chibo (RS), de Gabriela Poester e Henrique Lahude. Não por acaso, aproxima-se de forma temática ao longa da noite. Na fronteira do Brasil com a Argentina, a população ribeirinha sobrevive do "chibo", travessia clandestina da fronteira. Nesse híbrido de documentário e ficção, Dani (Daniela Schmitz), uma adolescente, enfrenta a dúvida de se deve permanecer ali ou tentar a vida em outra parte. Filme de ambientação e convivência com moradores locais, paciente, e feito em camadas. Na verdade, um retrato de mulheres submetidas a uma existência precária e incerta. Tanto quanto Suçuarana, testemunha a instabilidade vital de grande parcela da população brasileira, condição normalizada geração após geração.