Cinema, cultura & afins

Opinião|Cine Ceará 2024: 'Brasiliana', ou a imagem do Brasil lá fora


Por Luiz Zanin Oricchio
 

 

Diário crítico (1)

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FORTALEZA - Começou o 34º Cine Ceará com a cerimônia de abertura no Cine São Luiz e exibição do primeiro longa em competição - Brasiliana, o musical negro que apresentou o Brasil ao Mundo, de Joel Zito Araújo. Foi muito aplaudido no final da sessão.

O filme resgata a história da companhia de revista Brasiliana, que percorreu mais de 90 países ao longo de seus 25 anos de atividade - entre 1949 e 1974. É um doc de depoimentos, com alguns dos organizadores do grupo, músicos e dançarinas e cenas de suas atuações, muitas delas garimpadas no exterior.

No debate, Araújo retomou a queixa recorrente de documentaristas sobre o valor exorbitante cobrado pelas imagens de arquivos. Preços, diga-se, em geral incompatíveis com o valor de mercado dos documentários. Muitos deles se inviabilizam em razão dessa desproporção.

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Algumas dessas imagens são fundamentais para o fluxo da narrativa. Tais como um programa com a jovem Sophia Loren dançando com os bailarinos brasileiros; a outra é um evento da UNICEF do qual participam juntamente com Marlon Brando, Elizabeth Taylor, Beatles, etc. "Fazer um documentário apenas com depoimentos não daria a ordem de grandeza da experiência que tiveram", diz o cineasta. "Era preciso as imagens". E elas estão lá, apesar do alto custo. 

 Mas, enfim, trata-se de falar das personagens. Algumas se estabeleceram no exterior e fizeram fama, como Watusi, que atuou no Moulin Rouge em Paris. Lembram casos, que hoje são engraçados, mas na época... Um dos criadores (ou o criador) do grupo, o múltiplo Haroldo Costa, hoje com 93, lembra de uma excursão pela América do Sul, quando, na Colômbia, o empresário fugiu com o dinheiro e deixou os artistas a ver navios. Atravessavam o rio Magdalena a remo e tentavam vender o espetáculo em pequenas localidades ribeirinhas. Após a função, literalmente passavam o chapéu e recolhiam os trocados. 

Lembram-se, também, de perrengues na Europa. Como não tinham dinheiro para comer em restaurantes, eram obrigadas a cozinhar às escondidas nos quartos de hotel. Um dia o corpo de bombeiros foi chamado porque se pensava haver um incêndio em um dos quartos. Era apenas o rango da trupe cozinhando nos fogõezinhos a gás improvisados. 

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No entanto, diz Joel Zito, apesar das dificuldades, durante as entrevistas jamais ouviu queixas desses artistas, agora na maturidade. Para eles e elas, foi uma época áurea em suas vidas. De baixa renda, vítimas do racismo em seu país de origem, encontravam, em particular na Europa do pós-guerra, o reconhecimento que não tinham no Brasil, o tal país do carnaval. Algumas se casaram no exterior. E muitas conseguiram ajuntar algum pecúlio que as sustenta até hoje. 

Nem tudo eram flores. Havia contradições, na verdade pouco exploradas no filme. Por exemplo, "O movimento negro criticava o Brasiliana pela erotização dos corpos femininos", diz Joel Zito.

Com tudo isso, por que foram esquecidos?  

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Quando se fala em "resgate", pensa-se em algo esquecido ou oculto pelo fluir da História. E, de fato, é isso mesmo que aconteceu com o Brasiliana. No entanto, o paradoxo é que foram bastante famosos em sua época de atuação, a partir dos anos 1960. Prova são os recortes de jornal e revistas dando conta de suas apresentações na época. Outro ponto é que alguns de seus membros, como a já citada Watusi, tornaram-se pessoas muito conhecidas - aliás, o depoimento dela sobre sua carreira é um dos pontos altos do filme. 

No entanto, como boa parte da trajetória do Brasiliana se deu no exterior, parece que o grupo não teve aderência na memória nacional. É quase como se não tivesse existido, ou fosse uma pálida lembrança, mesmo para as gerações mais velhas, suas contemporâneas. No entanto, o Brasiliana foi visto em espetáculos globais, como apresentação da delegação brasileira na Copa de 1974, na Alemanha, já então televisada para o mundo, Brasil inclusive. Para os mais jovens, simplesmente não existiram. 

Daí a importância do filme, fazer reviver algo que, por algum motivo, parece ter sido enterrado no passado. Eles percorriam o mundo vendendo um estereótipo do Brasil, com seu coquetel de música, ritmo, mulheres bonitas e sensualidade. Talvez fosse interessante examinar mais de perto as raízes desse tipo de apagamento. E também de contextualizar melhor sua época de atuação, de 1949, ano de sua criação no Rio de Janeiro, a 1974, já em um Brasil dominado pela ditadura, mas que pretendia vender ao mundo a ideia de uma economia pujante, um povo alegre, festeiro e trabalhador, um país "que vai prá frente", como dizia uma marchinha popular da época. 

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De qualquer forma, esse grupo de música, teatro e dança afro-brasileiro contribuiu para formar uma imagem de Brasil no exterior. Qual seria ela, exatamente, é a questão. De qualquer forma, apesar de ser um diretor convidado neste caso,  Brasiliana é mais uma peça no tabuleiro de Joel Zito Araújo, cineasta empenhado em prospectar a densidade da presença negra na cultura brasileira em documentários como A Negação do Brasil ou ficções como Filhas do Vento e O Pai da Rita. 

O Cine Ceará, festival de recorte ibero-americano, traz outros cinco longas-metragens em sua mostra competitiva principal para concorrer com Brasiliana. Além disso, oferece competições de curtas-metragens nacionais (de vários Estados da federação) e uma amostra da produção local sob o título de Olhar do Ceará. Apresenta, também, uma seleção de filmes online na plataforma Itaú Cultural. 

Longas Cine Ceará 2024

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Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo (BRA). Joel Zito Araújo

En la caliente - Contos de um guerreiro do Reggaeton (Cuba-EUA). Fabien Pisani

A Bachata do Biônico (Rep. Dominicana). Yoel Morales

Linda (ARG), Mariana Wainstein

Milonga (URU-ARG). Laura González

Um lobo entre os cisnes (BRA). Marcos Schechtman e Helena Varvaki

 

MOSTRA CINE CEARÁ NA ITAÚ CULTURAL PLAY 

(https://www.itauculturalplay.com.br/)

O Verbo de Juliana Craveiro e Lucas Souto. Ficção. 20'. Brasil. 2024.

Raposa de Margot Leitão e João Fontenele. Ficção. 15'. Brasil. 2024.

Juzé de Raquel Garcia. Animação. 11'. Brasil. 2023.

Neblina de Milene Coroado. Ficção. 9'. Portugal. 2023.

Almadia de Mariana Medina. Animação. 8'. Brasil. 2024.

Kila & Mauna de Ella Monstra. Ficção. 19'. Brasil. 2023.

Topera de Rodrigo Gadelha. Documentário. 17'. Brasil. 2023-2024.

Crayon de Juno e Becca Lutz. Ficção/Animação.13'. Brasil. 2022.

Ponte Metálica de Felipe Bruno e Wes Maria. Ficção. 17'. Brasil. 2024.

Filhos do Vento de Euziane Bastos e Rogério Bié. Documentário. 69'. Brasil. 2024.

 

 

 

Diário crítico (1)

FORTALEZA - Começou o 34º Cine Ceará com a cerimônia de abertura no Cine São Luiz e exibição do primeiro longa em competição - Brasiliana, o musical negro que apresentou o Brasil ao Mundo, de Joel Zito Araújo. Foi muito aplaudido no final da sessão.

O filme resgata a história da companhia de revista Brasiliana, que percorreu mais de 90 países ao longo de seus 25 anos de atividade - entre 1949 e 1974. É um doc de depoimentos, com alguns dos organizadores do grupo, músicos e dançarinas e cenas de suas atuações, muitas delas garimpadas no exterior.

No debate, Araújo retomou a queixa recorrente de documentaristas sobre o valor exorbitante cobrado pelas imagens de arquivos. Preços, diga-se, em geral incompatíveis com o valor de mercado dos documentários. Muitos deles se inviabilizam em razão dessa desproporção.

Algumas dessas imagens são fundamentais para o fluxo da narrativa. Tais como um programa com a jovem Sophia Loren dançando com os bailarinos brasileiros; a outra é um evento da UNICEF do qual participam juntamente com Marlon Brando, Elizabeth Taylor, Beatles, etc. "Fazer um documentário apenas com depoimentos não daria a ordem de grandeza da experiência que tiveram", diz o cineasta. "Era preciso as imagens". E elas estão lá, apesar do alto custo. 

 Mas, enfim, trata-se de falar das personagens. Algumas se estabeleceram no exterior e fizeram fama, como Watusi, que atuou no Moulin Rouge em Paris. Lembram casos, que hoje são engraçados, mas na época... Um dos criadores (ou o criador) do grupo, o múltiplo Haroldo Costa, hoje com 93, lembra de uma excursão pela América do Sul, quando, na Colômbia, o empresário fugiu com o dinheiro e deixou os artistas a ver navios. Atravessavam o rio Magdalena a remo e tentavam vender o espetáculo em pequenas localidades ribeirinhas. Após a função, literalmente passavam o chapéu e recolhiam os trocados. 

Lembram-se, também, de perrengues na Europa. Como não tinham dinheiro para comer em restaurantes, eram obrigadas a cozinhar às escondidas nos quartos de hotel. Um dia o corpo de bombeiros foi chamado porque se pensava haver um incêndio em um dos quartos. Era apenas o rango da trupe cozinhando nos fogõezinhos a gás improvisados. 

No entanto, diz Joel Zito, apesar das dificuldades, durante as entrevistas jamais ouviu queixas desses artistas, agora na maturidade. Para eles e elas, foi uma época áurea em suas vidas. De baixa renda, vítimas do racismo em seu país de origem, encontravam, em particular na Europa do pós-guerra, o reconhecimento que não tinham no Brasil, o tal país do carnaval. Algumas se casaram no exterior. E muitas conseguiram ajuntar algum pecúlio que as sustenta até hoje. 

Nem tudo eram flores. Havia contradições, na verdade pouco exploradas no filme. Por exemplo, "O movimento negro criticava o Brasiliana pela erotização dos corpos femininos", diz Joel Zito.

Com tudo isso, por que foram esquecidos?  

Quando se fala em "resgate", pensa-se em algo esquecido ou oculto pelo fluir da História. E, de fato, é isso mesmo que aconteceu com o Brasiliana. No entanto, o paradoxo é que foram bastante famosos em sua época de atuação, a partir dos anos 1960. Prova são os recortes de jornal e revistas dando conta de suas apresentações na época. Outro ponto é que alguns de seus membros, como a já citada Watusi, tornaram-se pessoas muito conhecidas - aliás, o depoimento dela sobre sua carreira é um dos pontos altos do filme. 

No entanto, como boa parte da trajetória do Brasiliana se deu no exterior, parece que o grupo não teve aderência na memória nacional. É quase como se não tivesse existido, ou fosse uma pálida lembrança, mesmo para as gerações mais velhas, suas contemporâneas. No entanto, o Brasiliana foi visto em espetáculos globais, como apresentação da delegação brasileira na Copa de 1974, na Alemanha, já então televisada para o mundo, Brasil inclusive. Para os mais jovens, simplesmente não existiram. 

Daí a importância do filme, fazer reviver algo que, por algum motivo, parece ter sido enterrado no passado. Eles percorriam o mundo vendendo um estereótipo do Brasil, com seu coquetel de música, ritmo, mulheres bonitas e sensualidade. Talvez fosse interessante examinar mais de perto as raízes desse tipo de apagamento. E também de contextualizar melhor sua época de atuação, de 1949, ano de sua criação no Rio de Janeiro, a 1974, já em um Brasil dominado pela ditadura, mas que pretendia vender ao mundo a ideia de uma economia pujante, um povo alegre, festeiro e trabalhador, um país "que vai prá frente", como dizia uma marchinha popular da época. 

De qualquer forma, esse grupo de música, teatro e dança afro-brasileiro contribuiu para formar uma imagem de Brasil no exterior. Qual seria ela, exatamente, é a questão. De qualquer forma, apesar de ser um diretor convidado neste caso,  Brasiliana é mais uma peça no tabuleiro de Joel Zito Araújo, cineasta empenhado em prospectar a densidade da presença negra na cultura brasileira em documentários como A Negação do Brasil ou ficções como Filhas do Vento e O Pai da Rita. 

O Cine Ceará, festival de recorte ibero-americano, traz outros cinco longas-metragens em sua mostra competitiva principal para concorrer com Brasiliana. Além disso, oferece competições de curtas-metragens nacionais (de vários Estados da federação) e uma amostra da produção local sob o título de Olhar do Ceará. Apresenta, também, uma seleção de filmes online na plataforma Itaú Cultural. 

Longas Cine Ceará 2024

Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo (BRA). Joel Zito Araújo

En la caliente - Contos de um guerreiro do Reggaeton (Cuba-EUA). Fabien Pisani

A Bachata do Biônico (Rep. Dominicana). Yoel Morales

Linda (ARG), Mariana Wainstein

Milonga (URU-ARG). Laura González

Um lobo entre os cisnes (BRA). Marcos Schechtman e Helena Varvaki

 

MOSTRA CINE CEARÁ NA ITAÚ CULTURAL PLAY 

(https://www.itauculturalplay.com.br/)

O Verbo de Juliana Craveiro e Lucas Souto. Ficção. 20'. Brasil. 2024.

Raposa de Margot Leitão e João Fontenele. Ficção. 15'. Brasil. 2024.

Juzé de Raquel Garcia. Animação. 11'. Brasil. 2023.

Neblina de Milene Coroado. Ficção. 9'. Portugal. 2023.

Almadia de Mariana Medina. Animação. 8'. Brasil. 2024.

Kila & Mauna de Ella Monstra. Ficção. 19'. Brasil. 2023.

Topera de Rodrigo Gadelha. Documentário. 17'. Brasil. 2023-2024.

Crayon de Juno e Becca Lutz. Ficção/Animação.13'. Brasil. 2022.

Ponte Metálica de Felipe Bruno e Wes Maria. Ficção. 17'. Brasil. 2024.

Filhos do Vento de Euziane Bastos e Rogério Bié. Documentário. 69'. Brasil. 2024.

 

 

 

Diário crítico (1)

FORTALEZA - Começou o 34º Cine Ceará com a cerimônia de abertura no Cine São Luiz e exibição do primeiro longa em competição - Brasiliana, o musical negro que apresentou o Brasil ao Mundo, de Joel Zito Araújo. Foi muito aplaudido no final da sessão.

O filme resgata a história da companhia de revista Brasiliana, que percorreu mais de 90 países ao longo de seus 25 anos de atividade - entre 1949 e 1974. É um doc de depoimentos, com alguns dos organizadores do grupo, músicos e dançarinas e cenas de suas atuações, muitas delas garimpadas no exterior.

No debate, Araújo retomou a queixa recorrente de documentaristas sobre o valor exorbitante cobrado pelas imagens de arquivos. Preços, diga-se, em geral incompatíveis com o valor de mercado dos documentários. Muitos deles se inviabilizam em razão dessa desproporção.

Algumas dessas imagens são fundamentais para o fluxo da narrativa. Tais como um programa com a jovem Sophia Loren dançando com os bailarinos brasileiros; a outra é um evento da UNICEF do qual participam juntamente com Marlon Brando, Elizabeth Taylor, Beatles, etc. "Fazer um documentário apenas com depoimentos não daria a ordem de grandeza da experiência que tiveram", diz o cineasta. "Era preciso as imagens". E elas estão lá, apesar do alto custo. 

 Mas, enfim, trata-se de falar das personagens. Algumas se estabeleceram no exterior e fizeram fama, como Watusi, que atuou no Moulin Rouge em Paris. Lembram casos, que hoje são engraçados, mas na época... Um dos criadores (ou o criador) do grupo, o múltiplo Haroldo Costa, hoje com 93, lembra de uma excursão pela América do Sul, quando, na Colômbia, o empresário fugiu com o dinheiro e deixou os artistas a ver navios. Atravessavam o rio Magdalena a remo e tentavam vender o espetáculo em pequenas localidades ribeirinhas. Após a função, literalmente passavam o chapéu e recolhiam os trocados. 

Lembram-se, também, de perrengues na Europa. Como não tinham dinheiro para comer em restaurantes, eram obrigadas a cozinhar às escondidas nos quartos de hotel. Um dia o corpo de bombeiros foi chamado porque se pensava haver um incêndio em um dos quartos. Era apenas o rango da trupe cozinhando nos fogõezinhos a gás improvisados. 

No entanto, diz Joel Zito, apesar das dificuldades, durante as entrevistas jamais ouviu queixas desses artistas, agora na maturidade. Para eles e elas, foi uma época áurea em suas vidas. De baixa renda, vítimas do racismo em seu país de origem, encontravam, em particular na Europa do pós-guerra, o reconhecimento que não tinham no Brasil, o tal país do carnaval. Algumas se casaram no exterior. E muitas conseguiram ajuntar algum pecúlio que as sustenta até hoje. 

Nem tudo eram flores. Havia contradições, na verdade pouco exploradas no filme. Por exemplo, "O movimento negro criticava o Brasiliana pela erotização dos corpos femininos", diz Joel Zito.

Com tudo isso, por que foram esquecidos?  

Quando se fala em "resgate", pensa-se em algo esquecido ou oculto pelo fluir da História. E, de fato, é isso mesmo que aconteceu com o Brasiliana. No entanto, o paradoxo é que foram bastante famosos em sua época de atuação, a partir dos anos 1960. Prova são os recortes de jornal e revistas dando conta de suas apresentações na época. Outro ponto é que alguns de seus membros, como a já citada Watusi, tornaram-se pessoas muito conhecidas - aliás, o depoimento dela sobre sua carreira é um dos pontos altos do filme. 

No entanto, como boa parte da trajetória do Brasiliana se deu no exterior, parece que o grupo não teve aderência na memória nacional. É quase como se não tivesse existido, ou fosse uma pálida lembrança, mesmo para as gerações mais velhas, suas contemporâneas. No entanto, o Brasiliana foi visto em espetáculos globais, como apresentação da delegação brasileira na Copa de 1974, na Alemanha, já então televisada para o mundo, Brasil inclusive. Para os mais jovens, simplesmente não existiram. 

Daí a importância do filme, fazer reviver algo que, por algum motivo, parece ter sido enterrado no passado. Eles percorriam o mundo vendendo um estereótipo do Brasil, com seu coquetel de música, ritmo, mulheres bonitas e sensualidade. Talvez fosse interessante examinar mais de perto as raízes desse tipo de apagamento. E também de contextualizar melhor sua época de atuação, de 1949, ano de sua criação no Rio de Janeiro, a 1974, já em um Brasil dominado pela ditadura, mas que pretendia vender ao mundo a ideia de uma economia pujante, um povo alegre, festeiro e trabalhador, um país "que vai prá frente", como dizia uma marchinha popular da época. 

De qualquer forma, esse grupo de música, teatro e dança afro-brasileiro contribuiu para formar uma imagem de Brasil no exterior. Qual seria ela, exatamente, é a questão. De qualquer forma, apesar de ser um diretor convidado neste caso,  Brasiliana é mais uma peça no tabuleiro de Joel Zito Araújo, cineasta empenhado em prospectar a densidade da presença negra na cultura brasileira em documentários como A Negação do Brasil ou ficções como Filhas do Vento e O Pai da Rita. 

O Cine Ceará, festival de recorte ibero-americano, traz outros cinco longas-metragens em sua mostra competitiva principal para concorrer com Brasiliana. Além disso, oferece competições de curtas-metragens nacionais (de vários Estados da federação) e uma amostra da produção local sob o título de Olhar do Ceará. Apresenta, também, uma seleção de filmes online na plataforma Itaú Cultural. 

Longas Cine Ceará 2024

Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo (BRA). Joel Zito Araújo

En la caliente - Contos de um guerreiro do Reggaeton (Cuba-EUA). Fabien Pisani

A Bachata do Biônico (Rep. Dominicana). Yoel Morales

Linda (ARG), Mariana Wainstein

Milonga (URU-ARG). Laura González

Um lobo entre os cisnes (BRA). Marcos Schechtman e Helena Varvaki

 

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O Verbo de Juliana Craveiro e Lucas Souto. Ficção. 20'. Brasil. 2024.

Raposa de Margot Leitão e João Fontenele. Ficção. 15'. Brasil. 2024.

Juzé de Raquel Garcia. Animação. 11'. Brasil. 2023.

Neblina de Milene Coroado. Ficção. 9'. Portugal. 2023.

Almadia de Mariana Medina. Animação. 8'. Brasil. 2024.

Kila & Mauna de Ella Monstra. Ficção. 19'. Brasil. 2023.

Topera de Rodrigo Gadelha. Documentário. 17'. Brasil. 2023-2024.

Crayon de Juno e Becca Lutz. Ficção/Animação.13'. Brasil. 2022.

Ponte Metálica de Felipe Bruno e Wes Maria. Ficção. 17'. Brasil. 2024.

Filhos do Vento de Euziane Bastos e Rogério Bié. Documentário. 69'. Brasil. 2024.

 

 

 

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FORTALEZA - Começou o 34º Cine Ceará com a cerimônia de abertura no Cine São Luiz e exibição do primeiro longa em competição - Brasiliana, o musical negro que apresentou o Brasil ao Mundo, de Joel Zito Araújo. Foi muito aplaudido no final da sessão.

O filme resgata a história da companhia de revista Brasiliana, que percorreu mais de 90 países ao longo de seus 25 anos de atividade - entre 1949 e 1974. É um doc de depoimentos, com alguns dos organizadores do grupo, músicos e dançarinas e cenas de suas atuações, muitas delas garimpadas no exterior.

No debate, Araújo retomou a queixa recorrente de documentaristas sobre o valor exorbitante cobrado pelas imagens de arquivos. Preços, diga-se, em geral incompatíveis com o valor de mercado dos documentários. Muitos deles se inviabilizam em razão dessa desproporção.

Algumas dessas imagens são fundamentais para o fluxo da narrativa. Tais como um programa com a jovem Sophia Loren dançando com os bailarinos brasileiros; a outra é um evento da UNICEF do qual participam juntamente com Marlon Brando, Elizabeth Taylor, Beatles, etc. "Fazer um documentário apenas com depoimentos não daria a ordem de grandeza da experiência que tiveram", diz o cineasta. "Era preciso as imagens". E elas estão lá, apesar do alto custo. 

 Mas, enfim, trata-se de falar das personagens. Algumas se estabeleceram no exterior e fizeram fama, como Watusi, que atuou no Moulin Rouge em Paris. Lembram casos, que hoje são engraçados, mas na época... Um dos criadores (ou o criador) do grupo, o múltiplo Haroldo Costa, hoje com 93, lembra de uma excursão pela América do Sul, quando, na Colômbia, o empresário fugiu com o dinheiro e deixou os artistas a ver navios. Atravessavam o rio Magdalena a remo e tentavam vender o espetáculo em pequenas localidades ribeirinhas. Após a função, literalmente passavam o chapéu e recolhiam os trocados. 

Lembram-se, também, de perrengues na Europa. Como não tinham dinheiro para comer em restaurantes, eram obrigadas a cozinhar às escondidas nos quartos de hotel. Um dia o corpo de bombeiros foi chamado porque se pensava haver um incêndio em um dos quartos. Era apenas o rango da trupe cozinhando nos fogõezinhos a gás improvisados. 

No entanto, diz Joel Zito, apesar das dificuldades, durante as entrevistas jamais ouviu queixas desses artistas, agora na maturidade. Para eles e elas, foi uma época áurea em suas vidas. De baixa renda, vítimas do racismo em seu país de origem, encontravam, em particular na Europa do pós-guerra, o reconhecimento que não tinham no Brasil, o tal país do carnaval. Algumas se casaram no exterior. E muitas conseguiram ajuntar algum pecúlio que as sustenta até hoje. 

Nem tudo eram flores. Havia contradições, na verdade pouco exploradas no filme. Por exemplo, "O movimento negro criticava o Brasiliana pela erotização dos corpos femininos", diz Joel Zito.

Com tudo isso, por que foram esquecidos?  

Quando se fala em "resgate", pensa-se em algo esquecido ou oculto pelo fluir da História. E, de fato, é isso mesmo que aconteceu com o Brasiliana. No entanto, o paradoxo é que foram bastante famosos em sua época de atuação, a partir dos anos 1960. Prova são os recortes de jornal e revistas dando conta de suas apresentações na época. Outro ponto é que alguns de seus membros, como a já citada Watusi, tornaram-se pessoas muito conhecidas - aliás, o depoimento dela sobre sua carreira é um dos pontos altos do filme. 

No entanto, como boa parte da trajetória do Brasiliana se deu no exterior, parece que o grupo não teve aderência na memória nacional. É quase como se não tivesse existido, ou fosse uma pálida lembrança, mesmo para as gerações mais velhas, suas contemporâneas. No entanto, o Brasiliana foi visto em espetáculos globais, como apresentação da delegação brasileira na Copa de 1974, na Alemanha, já então televisada para o mundo, Brasil inclusive. Para os mais jovens, simplesmente não existiram. 

Daí a importância do filme, fazer reviver algo que, por algum motivo, parece ter sido enterrado no passado. Eles percorriam o mundo vendendo um estereótipo do Brasil, com seu coquetel de música, ritmo, mulheres bonitas e sensualidade. Talvez fosse interessante examinar mais de perto as raízes desse tipo de apagamento. E também de contextualizar melhor sua época de atuação, de 1949, ano de sua criação no Rio de Janeiro, a 1974, já em um Brasil dominado pela ditadura, mas que pretendia vender ao mundo a ideia de uma economia pujante, um povo alegre, festeiro e trabalhador, um país "que vai prá frente", como dizia uma marchinha popular da época. 

De qualquer forma, esse grupo de música, teatro e dança afro-brasileiro contribuiu para formar uma imagem de Brasil no exterior. Qual seria ela, exatamente, é a questão. De qualquer forma, apesar de ser um diretor convidado neste caso,  Brasiliana é mais uma peça no tabuleiro de Joel Zito Araújo, cineasta empenhado em prospectar a densidade da presença negra na cultura brasileira em documentários como A Negação do Brasil ou ficções como Filhas do Vento e O Pai da Rita. 

O Cine Ceará, festival de recorte ibero-americano, traz outros cinco longas-metragens em sua mostra competitiva principal para concorrer com Brasiliana. Além disso, oferece competições de curtas-metragens nacionais (de vários Estados da federação) e uma amostra da produção local sob o título de Olhar do Ceará. Apresenta, também, uma seleção de filmes online na plataforma Itaú Cultural. 

Longas Cine Ceará 2024

Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo (BRA). Joel Zito Araújo

En la caliente - Contos de um guerreiro do Reggaeton (Cuba-EUA). Fabien Pisani

A Bachata do Biônico (Rep. Dominicana). Yoel Morales

Linda (ARG), Mariana Wainstein

Milonga (URU-ARG). Laura González

Um lobo entre os cisnes (BRA). Marcos Schechtman e Helena Varvaki

 

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O Verbo de Juliana Craveiro e Lucas Souto. Ficção. 20'. Brasil. 2024.

Raposa de Margot Leitão e João Fontenele. Ficção. 15'. Brasil. 2024.

Juzé de Raquel Garcia. Animação. 11'. Brasil. 2023.

Neblina de Milene Coroado. Ficção. 9'. Portugal. 2023.

Almadia de Mariana Medina. Animação. 8'. Brasil. 2024.

Kila & Mauna de Ella Monstra. Ficção. 19'. Brasil. 2023.

Topera de Rodrigo Gadelha. Documentário. 17'. Brasil. 2023-2024.

Crayon de Juno e Becca Lutz. Ficção/Animação.13'. Brasil. 2022.

Ponte Metálica de Felipe Bruno e Wes Maria. Ficção. 17'. Brasil. 2024.

Filhos do Vento de Euziane Bastos e Rogério Bié. Documentário. 69'. Brasil. 2024.

 

 

 

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FORTALEZA - Começou o 34º Cine Ceará com a cerimônia de abertura no Cine São Luiz e exibição do primeiro longa em competição - Brasiliana, o musical negro que apresentou o Brasil ao Mundo, de Joel Zito Araújo. Foi muito aplaudido no final da sessão.

O filme resgata a história da companhia de revista Brasiliana, que percorreu mais de 90 países ao longo de seus 25 anos de atividade - entre 1949 e 1974. É um doc de depoimentos, com alguns dos organizadores do grupo, músicos e dançarinas e cenas de suas atuações, muitas delas garimpadas no exterior.

No debate, Araújo retomou a queixa recorrente de documentaristas sobre o valor exorbitante cobrado pelas imagens de arquivos. Preços, diga-se, em geral incompatíveis com o valor de mercado dos documentários. Muitos deles se inviabilizam em razão dessa desproporção.

Algumas dessas imagens são fundamentais para o fluxo da narrativa. Tais como um programa com a jovem Sophia Loren dançando com os bailarinos brasileiros; a outra é um evento da UNICEF do qual participam juntamente com Marlon Brando, Elizabeth Taylor, Beatles, etc. "Fazer um documentário apenas com depoimentos não daria a ordem de grandeza da experiência que tiveram", diz o cineasta. "Era preciso as imagens". E elas estão lá, apesar do alto custo. 

 Mas, enfim, trata-se de falar das personagens. Algumas se estabeleceram no exterior e fizeram fama, como Watusi, que atuou no Moulin Rouge em Paris. Lembram casos, que hoje são engraçados, mas na época... Um dos criadores (ou o criador) do grupo, o múltiplo Haroldo Costa, hoje com 93, lembra de uma excursão pela América do Sul, quando, na Colômbia, o empresário fugiu com o dinheiro e deixou os artistas a ver navios. Atravessavam o rio Magdalena a remo e tentavam vender o espetáculo em pequenas localidades ribeirinhas. Após a função, literalmente passavam o chapéu e recolhiam os trocados. 

Lembram-se, também, de perrengues na Europa. Como não tinham dinheiro para comer em restaurantes, eram obrigadas a cozinhar às escondidas nos quartos de hotel. Um dia o corpo de bombeiros foi chamado porque se pensava haver um incêndio em um dos quartos. Era apenas o rango da trupe cozinhando nos fogõezinhos a gás improvisados. 

No entanto, diz Joel Zito, apesar das dificuldades, durante as entrevistas jamais ouviu queixas desses artistas, agora na maturidade. Para eles e elas, foi uma época áurea em suas vidas. De baixa renda, vítimas do racismo em seu país de origem, encontravam, em particular na Europa do pós-guerra, o reconhecimento que não tinham no Brasil, o tal país do carnaval. Algumas se casaram no exterior. E muitas conseguiram ajuntar algum pecúlio que as sustenta até hoje. 

Nem tudo eram flores. Havia contradições, na verdade pouco exploradas no filme. Por exemplo, "O movimento negro criticava o Brasiliana pela erotização dos corpos femininos", diz Joel Zito.

Com tudo isso, por que foram esquecidos?  

Quando se fala em "resgate", pensa-se em algo esquecido ou oculto pelo fluir da História. E, de fato, é isso mesmo que aconteceu com o Brasiliana. No entanto, o paradoxo é que foram bastante famosos em sua época de atuação, a partir dos anos 1960. Prova são os recortes de jornal e revistas dando conta de suas apresentações na época. Outro ponto é que alguns de seus membros, como a já citada Watusi, tornaram-se pessoas muito conhecidas - aliás, o depoimento dela sobre sua carreira é um dos pontos altos do filme. 

No entanto, como boa parte da trajetória do Brasiliana se deu no exterior, parece que o grupo não teve aderência na memória nacional. É quase como se não tivesse existido, ou fosse uma pálida lembrança, mesmo para as gerações mais velhas, suas contemporâneas. No entanto, o Brasiliana foi visto em espetáculos globais, como apresentação da delegação brasileira na Copa de 1974, na Alemanha, já então televisada para o mundo, Brasil inclusive. Para os mais jovens, simplesmente não existiram. 

Daí a importância do filme, fazer reviver algo que, por algum motivo, parece ter sido enterrado no passado. Eles percorriam o mundo vendendo um estereótipo do Brasil, com seu coquetel de música, ritmo, mulheres bonitas e sensualidade. Talvez fosse interessante examinar mais de perto as raízes desse tipo de apagamento. E também de contextualizar melhor sua época de atuação, de 1949, ano de sua criação no Rio de Janeiro, a 1974, já em um Brasil dominado pela ditadura, mas que pretendia vender ao mundo a ideia de uma economia pujante, um povo alegre, festeiro e trabalhador, um país "que vai prá frente", como dizia uma marchinha popular da época. 

De qualquer forma, esse grupo de música, teatro e dança afro-brasileiro contribuiu para formar uma imagem de Brasil no exterior. Qual seria ela, exatamente, é a questão. De qualquer forma, apesar de ser um diretor convidado neste caso,  Brasiliana é mais uma peça no tabuleiro de Joel Zito Araújo, cineasta empenhado em prospectar a densidade da presença negra na cultura brasileira em documentários como A Negação do Brasil ou ficções como Filhas do Vento e O Pai da Rita. 

O Cine Ceará, festival de recorte ibero-americano, traz outros cinco longas-metragens em sua mostra competitiva principal para concorrer com Brasiliana. Além disso, oferece competições de curtas-metragens nacionais (de vários Estados da federação) e uma amostra da produção local sob o título de Olhar do Ceará. Apresenta, também, uma seleção de filmes online na plataforma Itaú Cultural. 

Longas Cine Ceará 2024

Brasiliana: o musical negro que apresentou o Brasil ao mundo (BRA). Joel Zito Araújo

En la caliente - Contos de um guerreiro do Reggaeton (Cuba-EUA). Fabien Pisani

A Bachata do Biônico (Rep. Dominicana). Yoel Morales

Linda (ARG), Mariana Wainstein

Milonga (URU-ARG). Laura González

Um lobo entre os cisnes (BRA). Marcos Schechtman e Helena Varvaki

 

MOSTRA CINE CEARÁ NA ITAÚ CULTURAL PLAY 

(https://www.itauculturalplay.com.br/)

O Verbo de Juliana Craveiro e Lucas Souto. Ficção. 20'. Brasil. 2024.

Raposa de Margot Leitão e João Fontenele. Ficção. 15'. Brasil. 2024.

Juzé de Raquel Garcia. Animação. 11'. Brasil. 2023.

Neblina de Milene Coroado. Ficção. 9'. Portugal. 2023.

Almadia de Mariana Medina. Animação. 8'. Brasil. 2024.

Kila & Mauna de Ella Monstra. Ficção. 19'. Brasil. 2023.

Topera de Rodrigo Gadelha. Documentário. 17'. Brasil. 2023-2024.

Crayon de Juno e Becca Lutz. Ficção/Animação.13'. Brasil. 2022.

Ponte Metálica de Felipe Bruno e Wes Maria. Ficção. 17'. Brasil. 2024.

Filhos do Vento de Euziane Bastos e Rogério Bié. Documentário. 69'. Brasil. 2024.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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