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Opinião|Cine Ceará 2024: Lampião, governador do sertão: herói ou vilão?


Por Luiz Zanin Oricchio
 

Diário crítico (3)

FORTALEZA - Revi Lampião, governador do sertão, de Wolney Oliveira, que já havia assistido no Festival É Tudo Verdade. Caso raro, o filme melhora com a revisão. Talvez o segredo esteja em tratar Virgulino Ferreira da Silva como o mito em que se tornou, contraditório e enigmático. Lampião, o cangaceiro emblemático, foi herói ou vilão? 

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Em seu clássico Bandidos, o historiador britânico Eric Hobsbawm escreve que o "bandido social" é aquele percebido pela população mais pobre como justiceiro. Cita casos típicos, como Giuliano, na Itália, ou Robin Hood, na Inglaterra, o famoso "rouba dos ricos para dar aos pobres." Mas também fala sobre Lampião.

Talvez Lampião não tenha sido exatamente um Robin Hood sertanejo. Mas, de qualquer forma, era visto pela população mais carente (e que era a imensa maioria da população do interior nordestino do seu tempo), como alguém ao lado dela. Alguém a quem os opressores coroneis da época respeitavam e temiam. 

Criado o mito, depositam-se sobre ele fatos, reais ou imaginários, versões e significados. Lampião era um truculento? Alguns dizem que sim. E narram casos de violência extrema atribuídas a Virgulino. Outros afirmam que foram tratados por ele com a gentileza de um cavalheiro. Como era Lampião como líder de bando? Arbitrário ou justo? Há opiniões para os dois lados. E assim por diante. 

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Quem fala no filme? Velhos cangaceiros e cangaceiras que o conheceram. A filha, Expedita, e neta, Vera (ambas estavam em Fortaleza e participaram do debate). Autoridades no assunto, como o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello e um gênio da raça como o escritor Ariano Suassuna. A polêmica é tanta que dois depoentes quase saem no braço ao discutir se Lampião bebia uísque escocês (White Horse) ou apenas cachaça, como qualquer sertanejo da sua época. 

Para uns signo do atraso, para outros, emblema da rebeldia contra a permanente injustiça social brasileira. Não por acaso, Glauber Rocha apela para a figura do cangaceiro, Corisco, no caso, ao compor seu clássico da desigualdade social e da revolta, Deus e o Diabo na Terra do Sol. 

Anos depois, no tempo da luta armada contra a ditadura de 1964, Lampião ressurge, em alguns meios de esquerda, como um ícone da revolta popular contra o autoritarismo. Uma estudiosa paulista, Maria Christina Russi da Matta Machado dedicou-se ao estudo do cangaceirismo. Joaquim da Câmara Ferreira, o "Toledo", líder do Partido Comunista e dirigente da ALN de Carlos Marighella, recomendava aos militantes do grupamento armado que lessem dois livros, segundo ele importantes para a sua formação - Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Estratégias de Guerra dos Cangaceiros, de Matta Machado, publicado em 1969. 

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O fato é que, depois de assombrar o sertão, Lampião, ao ser morto pelas volantes em 1938, saiu da vida para entrar na História. Ou melhor, para a mitologia popular brasileira, sob a forma de filmes, livros, cordéis, pinturas, música e o que for. 

Lampião não sai de moda porque significa muitas coisas ao mesmo tempo. Até mesmo a apoteose de uma escola de samba, sendo tema da Imperatriz Leopoldinense, que venceu o carnaval de 2023 na Marquês de Sapucaí com um enredo em que Lampião, ao morrer, não é aceito no céu nem no inferno. Pertence à eternidade. 

A boa sacada de Wolney, como a do carnavalesco da Imperatriz, Leandro Vieira, foi contemplar a polissemia desse elemento múltiplo, cujas únicas imagens em movimento reais foram captadas pelas lentes de um mascate árabe, Benjamin Abrahão, protégé do Padre Cícero, de quem Lampião era devoto. O doc assume ares de Rashomon, de Akira Kurosawa, no qual vários personagens observam o mesmo crime e dão a ele significados diferentes. Ou de Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos, baseado em Nelson Rodrigues, que trata com a mesma ambiguidade o bicheiro interpretado por Jece Valadão. 

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O que é um fato ou uma pessoa senão a soma de versões e interpretações que suscitam? O que não significa renunciar à verdade, mas apenas estar ciente de que talvez ela seja um limite apenas teórico e inalcançável. Nietzsche dizia que a verdade mora no fundo de um poço. Lampião continuará a ser reinterpretado ao longo do tempo - e das possibilidades e conveniências do momento. 

 

 

Diário crítico (3)

FORTALEZA - Revi Lampião, governador do sertão, de Wolney Oliveira, que já havia assistido no Festival É Tudo Verdade. Caso raro, o filme melhora com a revisão. Talvez o segredo esteja em tratar Virgulino Ferreira da Silva como o mito em que se tornou, contraditório e enigmático. Lampião, o cangaceiro emblemático, foi herói ou vilão? 

Em seu clássico Bandidos, o historiador britânico Eric Hobsbawm escreve que o "bandido social" é aquele percebido pela população mais pobre como justiceiro. Cita casos típicos, como Giuliano, na Itália, ou Robin Hood, na Inglaterra, o famoso "rouba dos ricos para dar aos pobres." Mas também fala sobre Lampião.

Talvez Lampião não tenha sido exatamente um Robin Hood sertanejo. Mas, de qualquer forma, era visto pela população mais carente (e que era a imensa maioria da população do interior nordestino do seu tempo), como alguém ao lado dela. Alguém a quem os opressores coroneis da época respeitavam e temiam. 

Criado o mito, depositam-se sobre ele fatos, reais ou imaginários, versões e significados. Lampião era um truculento? Alguns dizem que sim. E narram casos de violência extrema atribuídas a Virgulino. Outros afirmam que foram tratados por ele com a gentileza de um cavalheiro. Como era Lampião como líder de bando? Arbitrário ou justo? Há opiniões para os dois lados. E assim por diante. 

Quem fala no filme? Velhos cangaceiros e cangaceiras que o conheceram. A filha, Expedita, e neta, Vera (ambas estavam em Fortaleza e participaram do debate). Autoridades no assunto, como o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello e um gênio da raça como o escritor Ariano Suassuna. A polêmica é tanta que dois depoentes quase saem no braço ao discutir se Lampião bebia uísque escocês (White Horse) ou apenas cachaça, como qualquer sertanejo da sua época. 

Para uns signo do atraso, para outros, emblema da rebeldia contra a permanente injustiça social brasileira. Não por acaso, Glauber Rocha apela para a figura do cangaceiro, Corisco, no caso, ao compor seu clássico da desigualdade social e da revolta, Deus e o Diabo na Terra do Sol. 

Anos depois, no tempo da luta armada contra a ditadura de 1964, Lampião ressurge, em alguns meios de esquerda, como um ícone da revolta popular contra o autoritarismo. Uma estudiosa paulista, Maria Christina Russi da Matta Machado dedicou-se ao estudo do cangaceirismo. Joaquim da Câmara Ferreira, o "Toledo", líder do Partido Comunista e dirigente da ALN de Carlos Marighella, recomendava aos militantes do grupamento armado que lessem dois livros, segundo ele importantes para a sua formação - Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Estratégias de Guerra dos Cangaceiros, de Matta Machado, publicado em 1969. 

O fato é que, depois de assombrar o sertão, Lampião, ao ser morto pelas volantes em 1938, saiu da vida para entrar na História. Ou melhor, para a mitologia popular brasileira, sob a forma de filmes, livros, cordéis, pinturas, música e o que for. 

Lampião não sai de moda porque significa muitas coisas ao mesmo tempo. Até mesmo a apoteose de uma escola de samba, sendo tema da Imperatriz Leopoldinense, que venceu o carnaval de 2023 na Marquês de Sapucaí com um enredo em que Lampião, ao morrer, não é aceito no céu nem no inferno. Pertence à eternidade. 

A boa sacada de Wolney, como a do carnavalesco da Imperatriz, Leandro Vieira, foi contemplar a polissemia desse elemento múltiplo, cujas únicas imagens em movimento reais foram captadas pelas lentes de um mascate árabe, Benjamin Abrahão, protégé do Padre Cícero, de quem Lampião era devoto. O doc assume ares de Rashomon, de Akira Kurosawa, no qual vários personagens observam o mesmo crime e dão a ele significados diferentes. Ou de Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos, baseado em Nelson Rodrigues, que trata com a mesma ambiguidade o bicheiro interpretado por Jece Valadão. 

O que é um fato ou uma pessoa senão a soma de versões e interpretações que suscitam? O que não significa renunciar à verdade, mas apenas estar ciente de que talvez ela seja um limite apenas teórico e inalcançável. Nietzsche dizia que a verdade mora no fundo de um poço. Lampião continuará a ser reinterpretado ao longo do tempo - e das possibilidades e conveniências do momento. 

 

 

Diário crítico (3)

FORTALEZA - Revi Lampião, governador do sertão, de Wolney Oliveira, que já havia assistido no Festival É Tudo Verdade. Caso raro, o filme melhora com a revisão. Talvez o segredo esteja em tratar Virgulino Ferreira da Silva como o mito em que se tornou, contraditório e enigmático. Lampião, o cangaceiro emblemático, foi herói ou vilão? 

Em seu clássico Bandidos, o historiador britânico Eric Hobsbawm escreve que o "bandido social" é aquele percebido pela população mais pobre como justiceiro. Cita casos típicos, como Giuliano, na Itália, ou Robin Hood, na Inglaterra, o famoso "rouba dos ricos para dar aos pobres." Mas também fala sobre Lampião.

Talvez Lampião não tenha sido exatamente um Robin Hood sertanejo. Mas, de qualquer forma, era visto pela população mais carente (e que era a imensa maioria da população do interior nordestino do seu tempo), como alguém ao lado dela. Alguém a quem os opressores coroneis da época respeitavam e temiam. 

Criado o mito, depositam-se sobre ele fatos, reais ou imaginários, versões e significados. Lampião era um truculento? Alguns dizem que sim. E narram casos de violência extrema atribuídas a Virgulino. Outros afirmam que foram tratados por ele com a gentileza de um cavalheiro. Como era Lampião como líder de bando? Arbitrário ou justo? Há opiniões para os dois lados. E assim por diante. 

Quem fala no filme? Velhos cangaceiros e cangaceiras que o conheceram. A filha, Expedita, e neta, Vera (ambas estavam em Fortaleza e participaram do debate). Autoridades no assunto, como o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello e um gênio da raça como o escritor Ariano Suassuna. A polêmica é tanta que dois depoentes quase saem no braço ao discutir se Lampião bebia uísque escocês (White Horse) ou apenas cachaça, como qualquer sertanejo da sua época. 

Para uns signo do atraso, para outros, emblema da rebeldia contra a permanente injustiça social brasileira. Não por acaso, Glauber Rocha apela para a figura do cangaceiro, Corisco, no caso, ao compor seu clássico da desigualdade social e da revolta, Deus e o Diabo na Terra do Sol. 

Anos depois, no tempo da luta armada contra a ditadura de 1964, Lampião ressurge, em alguns meios de esquerda, como um ícone da revolta popular contra o autoritarismo. Uma estudiosa paulista, Maria Christina Russi da Matta Machado dedicou-se ao estudo do cangaceirismo. Joaquim da Câmara Ferreira, o "Toledo", líder do Partido Comunista e dirigente da ALN de Carlos Marighella, recomendava aos militantes do grupamento armado que lessem dois livros, segundo ele importantes para a sua formação - Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Estratégias de Guerra dos Cangaceiros, de Matta Machado, publicado em 1969. 

O fato é que, depois de assombrar o sertão, Lampião, ao ser morto pelas volantes em 1938, saiu da vida para entrar na História. Ou melhor, para a mitologia popular brasileira, sob a forma de filmes, livros, cordéis, pinturas, música e o que for. 

Lampião não sai de moda porque significa muitas coisas ao mesmo tempo. Até mesmo a apoteose de uma escola de samba, sendo tema da Imperatriz Leopoldinense, que venceu o carnaval de 2023 na Marquês de Sapucaí com um enredo em que Lampião, ao morrer, não é aceito no céu nem no inferno. Pertence à eternidade. 

A boa sacada de Wolney, como a do carnavalesco da Imperatriz, Leandro Vieira, foi contemplar a polissemia desse elemento múltiplo, cujas únicas imagens em movimento reais foram captadas pelas lentes de um mascate árabe, Benjamin Abrahão, protégé do Padre Cícero, de quem Lampião era devoto. O doc assume ares de Rashomon, de Akira Kurosawa, no qual vários personagens observam o mesmo crime e dão a ele significados diferentes. Ou de Boca de Ouro, de Nelson Pereira dos Santos, baseado em Nelson Rodrigues, que trata com a mesma ambiguidade o bicheiro interpretado por Jece Valadão. 

O que é um fato ou uma pessoa senão a soma de versões e interpretações que suscitam? O que não significa renunciar à verdade, mas apenas estar ciente de que talvez ela seja um limite apenas teórico e inalcançável. Nietzsche dizia que a verdade mora no fundo de um poço. Lampião continuará a ser reinterpretado ao longo do tempo - e das possibilidades e conveniências do momento. 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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