Cinema, cultura & afins

Opinião|Eu me Lembro


Por Luiz Zanin Oricchio

Ao falar de Eu me Lembro, não há como evitar a matriz felliniana adotada pelo diretor. Edgard Navarro, em seu primeiro longa-metragem, inspira-se, em especial, em Amarcord e Oito e Meio, duas obras-primas do mestre italiano. Aliás, como se sabe, "Amarcord", no dialeto de Rimini, quer dizer exatamente isso, "eu me recordo". E recordar-se significa construir-se, ou reconstruir-se, como se quiser. Foi o que fez Edgard Navarro: no espaço fragmentário de suas incertezas, tenta buscar, pela rememoração de si, alguma unidade perdida, algum sentido, alguma âncora mental. Inútil dizer que essa busca (ilusória) por uma unidade está na origem de todo o memorialismo, de Proust a Pedro Nava. No cinema, foi Fellini quem melhor exerceu essa disciplina do tempo. Navarro é seu discípulo, assumido e amoroso. Segue o mestre, tomando como moldes aqueles dois filmes, o tempo todo citados, mas como se fossem formas vazias, as quais irá preencher com seu conteúdo pessoal e histórico. Neste reside a sua originalidade, pois o que temos em Eu me Lembro é uma obra profundamente baiana em sua maneira de sentir e, ao mesmo tempo, totalmente universal em sua forma de expressão.

Curte o filme quem conhece Fellini e conhece a Bahia, e curte quem não conhece nenhum dos dois (e não sabe o que perde com isso). Por mais baiano que seja (e é muito)Eu me Lembro é, acima de tudo, o retrato de uma geração brasileira. Aquela que nasce nos anos 50, vive o otimismo juscelinista, pega uma ditadura pela proa, sonha com a revolução, acorda com o AI-5 e desbunda em Arembepe como forma de remédio ou conforto. É a geração que conheceu a utopia e seu contrário, atravessou a tentação da luta armada e viveu seu idílio com a tríade sexo, drogas & rock-n'-roll. Muita gente não voltou dessas viagens todas e quem voltou pode se considerar um sobrevivente, digno de medalhinha no peito. Navarro é um deles.

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Eu me Lembro é a mais perfeita expressão de quem viveu o sonho, surfou no pesadelo e agora consegue relativizar tanto um como outro. Sem perder a ternura. Esse é o toque, digamos, existencial, que dá liga a Eu me Lembro. Refazer as contas, saber-se talvez no vermelho, sem que isso signifique amargura ou desespero. Quem sonhou alto, e perdeu, tem sempre o conforto de ter feito as boas apostas, aquelas que valem a pena. Melhor do que o pragmatismo estéril, que nada concede e, no fundo, nada cria. Essa, a melhor característica de Eu me Lembro: sua generosidade, presente em cada fotograma, em cada ator, na discrição de uma fotografia sempre natural, na escolha inspirada da música. Tudo nele é autêntico, porque nasce da necessidade interior do artista e não de uma operação de marketing.

Navarro pertence à geração pré-mercado. Fez o filme porque algo nele doía, não para ganhar dinheiro ou prestígio social.

Jingles para recordar

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Um grande filme, como é Eu me Lembro, tem de se construir em cima de boas sacadas. Como se trata de um trabalho sobre a memória, Navarro intuiu o óbvio, que boa parte das nossas lembranças é vinculada a temas musicais. A trilha sonora de Tuzé de Abreu, inspirada em temas fellinianos (na verdade em Nino Rota, genial parceiro de Federico Fellini), já é um achado em si.

Mas há mais, porque Navarro descreve uma época em que o rádio era onipresente nas casas e a televisão estava apenas engatinhando no Brasil. Ouvia-se música o dia inteiro. E, entre as músicas, os jingles, os "reclames" de então. Converse com um cinqüentão, como Edgard Navarro. Ele pode até esquecer o número do seu celular ou a conta do e-mail, mas nada tira de sua cabeça as melodias de jingles que ouviu na infância, como o do antiácido Alka-Seltzer, da brilhantina Glostora, do leite em pó Mococa, do Regulador Xavier e das pílulas de vida do Dr. Ross. São clássicos - pelo menos na memória de quem viveu os anos 50 e 60. Até mesmo o programa Balança mas não Cai é citado pelo filme. Essas informações sonoras são tão importantes como as músicas que se ouvem: Disseram Que Voltei Americanizada, Pombo Correio, Marcianita, Al Di Là, Baby, Aquele Abraço, Eu te Amo, Meu Brasil, O Que Foi Feito de Vera. Quer dizer, de Milton Nascimento e Caetano Veloso a Sérgio Murilo e Don & Ravel há todo um universo sonoro que se abre a partir do filme. Em muitos sentidos, Eu me Lembro é, também, um filme para se ouvir. E nesse espaço sonoro não voga a qualidade "em abstrato" das músicas. Elas têm um valor sensorial, evocativo, sinalizador dos caminhos da memória. Discutir o seu valor estético, em si, seria tão útil como se perguntar sobre a qualidade culinária do chá de tília e das madeleines de Proust.

Por isso, os jingles têm tanto valor de ambientação quanto a mais sofisticada das melodias. São eles, com seu valor mnemônico, que impregnam o filme daquela familiaridade, do intimismo que tantos outros buscam sem conseguir encontrar. Os versinhos infantis do leite em pó Mococa ("a vaquinha Mococa está mugindo...") ou do jingle de uma pastilha de aspirina ("Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal...") funcionam como lembretes mentais de que se está em outro tempo, evocativo, tempo imaginário da infância ou da primeira juventude, quando tudo parece ter mais cor, intensidade, sentido, vida. Usando essa ponte, Eu me Lembro fala diretamente aos sentimentos, e aos sentidos.

Ao falar de Eu me Lembro, não há como evitar a matriz felliniana adotada pelo diretor. Edgard Navarro, em seu primeiro longa-metragem, inspira-se, em especial, em Amarcord e Oito e Meio, duas obras-primas do mestre italiano. Aliás, como se sabe, "Amarcord", no dialeto de Rimini, quer dizer exatamente isso, "eu me recordo". E recordar-se significa construir-se, ou reconstruir-se, como se quiser. Foi o que fez Edgard Navarro: no espaço fragmentário de suas incertezas, tenta buscar, pela rememoração de si, alguma unidade perdida, algum sentido, alguma âncora mental. Inútil dizer que essa busca (ilusória) por uma unidade está na origem de todo o memorialismo, de Proust a Pedro Nava. No cinema, foi Fellini quem melhor exerceu essa disciplina do tempo. Navarro é seu discípulo, assumido e amoroso. Segue o mestre, tomando como moldes aqueles dois filmes, o tempo todo citados, mas como se fossem formas vazias, as quais irá preencher com seu conteúdo pessoal e histórico. Neste reside a sua originalidade, pois o que temos em Eu me Lembro é uma obra profundamente baiana em sua maneira de sentir e, ao mesmo tempo, totalmente universal em sua forma de expressão.

Curte o filme quem conhece Fellini e conhece a Bahia, e curte quem não conhece nenhum dos dois (e não sabe o que perde com isso). Por mais baiano que seja (e é muito)Eu me Lembro é, acima de tudo, o retrato de uma geração brasileira. Aquela que nasce nos anos 50, vive o otimismo juscelinista, pega uma ditadura pela proa, sonha com a revolução, acorda com o AI-5 e desbunda em Arembepe como forma de remédio ou conforto. É a geração que conheceu a utopia e seu contrário, atravessou a tentação da luta armada e viveu seu idílio com a tríade sexo, drogas & rock-n'-roll. Muita gente não voltou dessas viagens todas e quem voltou pode se considerar um sobrevivente, digno de medalhinha no peito. Navarro é um deles.

Eu me Lembro é a mais perfeita expressão de quem viveu o sonho, surfou no pesadelo e agora consegue relativizar tanto um como outro. Sem perder a ternura. Esse é o toque, digamos, existencial, que dá liga a Eu me Lembro. Refazer as contas, saber-se talvez no vermelho, sem que isso signifique amargura ou desespero. Quem sonhou alto, e perdeu, tem sempre o conforto de ter feito as boas apostas, aquelas que valem a pena. Melhor do que o pragmatismo estéril, que nada concede e, no fundo, nada cria. Essa, a melhor característica de Eu me Lembro: sua generosidade, presente em cada fotograma, em cada ator, na discrição de uma fotografia sempre natural, na escolha inspirada da música. Tudo nele é autêntico, porque nasce da necessidade interior do artista e não de uma operação de marketing.

Navarro pertence à geração pré-mercado. Fez o filme porque algo nele doía, não para ganhar dinheiro ou prestígio social.

Jingles para recordar

Um grande filme, como é Eu me Lembro, tem de se construir em cima de boas sacadas. Como se trata de um trabalho sobre a memória, Navarro intuiu o óbvio, que boa parte das nossas lembranças é vinculada a temas musicais. A trilha sonora de Tuzé de Abreu, inspirada em temas fellinianos (na verdade em Nino Rota, genial parceiro de Federico Fellini), já é um achado em si.

Mas há mais, porque Navarro descreve uma época em que o rádio era onipresente nas casas e a televisão estava apenas engatinhando no Brasil. Ouvia-se música o dia inteiro. E, entre as músicas, os jingles, os "reclames" de então. Converse com um cinqüentão, como Edgard Navarro. Ele pode até esquecer o número do seu celular ou a conta do e-mail, mas nada tira de sua cabeça as melodias de jingles que ouviu na infância, como o do antiácido Alka-Seltzer, da brilhantina Glostora, do leite em pó Mococa, do Regulador Xavier e das pílulas de vida do Dr. Ross. São clássicos - pelo menos na memória de quem viveu os anos 50 e 60. Até mesmo o programa Balança mas não Cai é citado pelo filme. Essas informações sonoras são tão importantes como as músicas que se ouvem: Disseram Que Voltei Americanizada, Pombo Correio, Marcianita, Al Di Là, Baby, Aquele Abraço, Eu te Amo, Meu Brasil, O Que Foi Feito de Vera. Quer dizer, de Milton Nascimento e Caetano Veloso a Sérgio Murilo e Don & Ravel há todo um universo sonoro que se abre a partir do filme. Em muitos sentidos, Eu me Lembro é, também, um filme para se ouvir. E nesse espaço sonoro não voga a qualidade "em abstrato" das músicas. Elas têm um valor sensorial, evocativo, sinalizador dos caminhos da memória. Discutir o seu valor estético, em si, seria tão útil como se perguntar sobre a qualidade culinária do chá de tília e das madeleines de Proust.

Por isso, os jingles têm tanto valor de ambientação quanto a mais sofisticada das melodias. São eles, com seu valor mnemônico, que impregnam o filme daquela familiaridade, do intimismo que tantos outros buscam sem conseguir encontrar. Os versinhos infantis do leite em pó Mococa ("a vaquinha Mococa está mugindo...") ou do jingle de uma pastilha de aspirina ("Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal...") funcionam como lembretes mentais de que se está em outro tempo, evocativo, tempo imaginário da infância ou da primeira juventude, quando tudo parece ter mais cor, intensidade, sentido, vida. Usando essa ponte, Eu me Lembro fala diretamente aos sentimentos, e aos sentidos.

Ao falar de Eu me Lembro, não há como evitar a matriz felliniana adotada pelo diretor. Edgard Navarro, em seu primeiro longa-metragem, inspira-se, em especial, em Amarcord e Oito e Meio, duas obras-primas do mestre italiano. Aliás, como se sabe, "Amarcord", no dialeto de Rimini, quer dizer exatamente isso, "eu me recordo". E recordar-se significa construir-se, ou reconstruir-se, como se quiser. Foi o que fez Edgard Navarro: no espaço fragmentário de suas incertezas, tenta buscar, pela rememoração de si, alguma unidade perdida, algum sentido, alguma âncora mental. Inútil dizer que essa busca (ilusória) por uma unidade está na origem de todo o memorialismo, de Proust a Pedro Nava. No cinema, foi Fellini quem melhor exerceu essa disciplina do tempo. Navarro é seu discípulo, assumido e amoroso. Segue o mestre, tomando como moldes aqueles dois filmes, o tempo todo citados, mas como se fossem formas vazias, as quais irá preencher com seu conteúdo pessoal e histórico. Neste reside a sua originalidade, pois o que temos em Eu me Lembro é uma obra profundamente baiana em sua maneira de sentir e, ao mesmo tempo, totalmente universal em sua forma de expressão.

Curte o filme quem conhece Fellini e conhece a Bahia, e curte quem não conhece nenhum dos dois (e não sabe o que perde com isso). Por mais baiano que seja (e é muito)Eu me Lembro é, acima de tudo, o retrato de uma geração brasileira. Aquela que nasce nos anos 50, vive o otimismo juscelinista, pega uma ditadura pela proa, sonha com a revolução, acorda com o AI-5 e desbunda em Arembepe como forma de remédio ou conforto. É a geração que conheceu a utopia e seu contrário, atravessou a tentação da luta armada e viveu seu idílio com a tríade sexo, drogas & rock-n'-roll. Muita gente não voltou dessas viagens todas e quem voltou pode se considerar um sobrevivente, digno de medalhinha no peito. Navarro é um deles.

Eu me Lembro é a mais perfeita expressão de quem viveu o sonho, surfou no pesadelo e agora consegue relativizar tanto um como outro. Sem perder a ternura. Esse é o toque, digamos, existencial, que dá liga a Eu me Lembro. Refazer as contas, saber-se talvez no vermelho, sem que isso signifique amargura ou desespero. Quem sonhou alto, e perdeu, tem sempre o conforto de ter feito as boas apostas, aquelas que valem a pena. Melhor do que o pragmatismo estéril, que nada concede e, no fundo, nada cria. Essa, a melhor característica de Eu me Lembro: sua generosidade, presente em cada fotograma, em cada ator, na discrição de uma fotografia sempre natural, na escolha inspirada da música. Tudo nele é autêntico, porque nasce da necessidade interior do artista e não de uma operação de marketing.

Navarro pertence à geração pré-mercado. Fez o filme porque algo nele doía, não para ganhar dinheiro ou prestígio social.

Jingles para recordar

Um grande filme, como é Eu me Lembro, tem de se construir em cima de boas sacadas. Como se trata de um trabalho sobre a memória, Navarro intuiu o óbvio, que boa parte das nossas lembranças é vinculada a temas musicais. A trilha sonora de Tuzé de Abreu, inspirada em temas fellinianos (na verdade em Nino Rota, genial parceiro de Federico Fellini), já é um achado em si.

Mas há mais, porque Navarro descreve uma época em que o rádio era onipresente nas casas e a televisão estava apenas engatinhando no Brasil. Ouvia-se música o dia inteiro. E, entre as músicas, os jingles, os "reclames" de então. Converse com um cinqüentão, como Edgard Navarro. Ele pode até esquecer o número do seu celular ou a conta do e-mail, mas nada tira de sua cabeça as melodias de jingles que ouviu na infância, como o do antiácido Alka-Seltzer, da brilhantina Glostora, do leite em pó Mococa, do Regulador Xavier e das pílulas de vida do Dr. Ross. São clássicos - pelo menos na memória de quem viveu os anos 50 e 60. Até mesmo o programa Balança mas não Cai é citado pelo filme. Essas informações sonoras são tão importantes como as músicas que se ouvem: Disseram Que Voltei Americanizada, Pombo Correio, Marcianita, Al Di Là, Baby, Aquele Abraço, Eu te Amo, Meu Brasil, O Que Foi Feito de Vera. Quer dizer, de Milton Nascimento e Caetano Veloso a Sérgio Murilo e Don & Ravel há todo um universo sonoro que se abre a partir do filme. Em muitos sentidos, Eu me Lembro é, também, um filme para se ouvir. E nesse espaço sonoro não voga a qualidade "em abstrato" das músicas. Elas têm um valor sensorial, evocativo, sinalizador dos caminhos da memória. Discutir o seu valor estético, em si, seria tão útil como se perguntar sobre a qualidade culinária do chá de tília e das madeleines de Proust.

Por isso, os jingles têm tanto valor de ambientação quanto a mais sofisticada das melodias. São eles, com seu valor mnemônico, que impregnam o filme daquela familiaridade, do intimismo que tantos outros buscam sem conseguir encontrar. Os versinhos infantis do leite em pó Mococa ("a vaquinha Mococa está mugindo...") ou do jingle de uma pastilha de aspirina ("Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal...") funcionam como lembretes mentais de que se está em outro tempo, evocativo, tempo imaginário da infância ou da primeira juventude, quando tudo parece ter mais cor, intensidade, sentido, vida. Usando essa ponte, Eu me Lembro fala diretamente aos sentimentos, e aos sentidos.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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