Cinema, cultura & afins

Opinião|FAM 2024: Música em alta no festival catarinense


Por Luiz Zanin Oricchio

Florianópolis - A música anda em alta no 28º FAM, o festival do Mercosul. Da popular, com filmes sobre Dorival Caymmi e o black soul carioca, à clássica, com a trajetória internacional do tenor catarinense Aldo Baldin.

 

Em Nas Ondas de Dorival Caymmi, o diretor Locca Faria consegue soar original, mesmo em meio à profusão de filmes feitos ultimamente sobre o compositor e cantor baiano, um dos gênios da raça.

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Não que inove tanto na forma. O filme segue mais ou menos o formato habitual de imagens de arquivo somadas a depoimentos sobre o artista - as famosas cabeças falantes.

Acontece que essas cabeças são tão qualificadas, importantes e se expressam tão bem que fazem toda a diferença. Dá gosto ouvir gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Maria Bethânia, João Bosco, Tarik de Souza, Hermínio Belo de Carvalho, André Midani e outros falarem sobre um artista que admiram. Caetano não tem medo de cravar: Caymmi é o maior compositor da música popular brasileira.

Pode-se discordar. Mas não dá para não se espantar com o que há de seminal na arte desse baiano que veio para o Rio, criou a persona e o visual de Carmen Miranda em O que é que a baiana tem?, trouxe uma voz e uma batida de violão inimitáveis, e deixou um punhado de canções que entraram para a história da MPB.

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Vários dos seus admiradores dizem que o segredo de Caymmi era a simplicidade. O próprio Caymmi ilustra esse espírito despojado. "Me ensinaram o acorde dó maior e depois a relativa, lá menor. Com isso, ninguém mais me segurou". De fato. Mas vá buscar essa simplicidade, que contém um mundo, e verá como é difícil. Além do mais, o manejo da mão direita ao violão é completamente pessoal, entre o jongo, o samba de roda do recôncavo baiano e algo que só ele sabia fazer. Basta ouvir o disco clássico Canções Praieiras, apenas voz e violão, para se dar conta da grandeza de Caymmi.

 

Em Black Rio! Black Power!, Emílio Domingos traz a história da soul music no Rio de Janeiro, em bailes que contribuíram para a afirmação da comunidade negra em tempo de ditadura militar e preconceito racial acirrado.

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Há a politização da música importada dos Estados Unidos em sua afirmação de que black is beautiful. O sucesso dos bailes e dos discos lançados chamaram a atenção da ditadura, que via na afirmação dos negros, em seu orgulho e altivez, algo de muito perigoso. Alguns dos líderes do soul music, como Dom Filó, chegaram a ser presos para prestar depoimento.

O filme mostra um timing dos mais sedutores. Tem ritmo, tem ginga - e muita inteligência. Alguns dos depoentes, como o já citado Dom Filó, além de Carlos Alberto e outros, dão um  show de lucidez ao examinarem o movimento a uma distância de cerca de cinco décadas.

Inclusive analisando a pecha de alienados e americanófilos, numa época em que a esquerda, que resistia ao regime, era muito nacionalista e prestigiava as formas de expressão artística autenticamente brasileiras. Como se fosse possível cobrar autenticidade a uma arte que ama a mistura, como a música popular.

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Houve até o caso, real ou imaginado, do conflito entre a turma do samba e o grupo do soul, que teria dividido a comunidade negra naqueles anos. Carlos Alberto e Dom Filó negam qualquer coisa nesse sentido. "O samba jamai foi desrespeitado por nós".

De qualquer forma, sambistas que consideravam o soul um modismo passageiro acabaram por ter razão com o declínio da modalidade no final da década de 1970. Dom Filó responsabiliza a chegada da disco music, branca, que viria a ocupar o espaço do soul negro tanto nos bailes como nas gravadoras. "Lançaram até uma novela para promover, a Dancin' Days."

No entanto, vê hoje, no contestador hip hop, uma linha de continuidade daquilo que criaram nos anos 1970. Como diz outro dos integrantes do movimento original, "o soul plantou as sementes de uma revolução que não houve, que ainda não aconteceu".

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É um percurso fascinante, digno de outros filmes e mais estudos, uma página importante do relacionamento entre artes e política, uma trajetória de resistência e afirmação.

 

Em outra vertente, temos Aldo Baldin - uma Vida pela Música, de Yves Goulart, uma dessas histórias de superação de que o Brasil é pródigo. Baldin é natural de Urussanga, uma cidade no interior de Santa Catarina. Filho de agricultores, imigrantes do Vêneto, no Norte da Itália, o menino Aldo ajudava os pais na lavoura. Cedo revelou sua vocação musical. Seu primeiro professor foi um tocador de harmônica, instrumento que no Sul chamam de "gaita".

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O menino foi longe. Estudou no seminário, aprendeu canto, música e também outros instrumentos, passou por diversos professores e professoras. Com uma carta de recomendação do mitológico maestro e organista Karl Richter, de passagem pelo Brasil, conseguiu uma bolsa que o levou à Alemanha. Lá se estabeleceu, formou família e tornou-se figura conhecida no mundo do canto internacional. Ao morrer de forma precoce, com 49 anos, deixou um legado extraordinário, de mais de 100 discos gravados pelos mais prestigiosos selos da música clássica internacional.

O documentário se beneficia de um farto material deixado por Aldo. Desde filmes domésticos, disponibilizados por sua viúva ao diretor, como filmagens de suas performances nos palcos dos grandes teatros de ópera do mundo.

Mas, por certo, a cereja do bolo é uma gravação em fita cassete, do próprio Aldo lembrando sua trajetória, do menino humilde aos maiores palcos da música pelo mundo. Fez essa gravação pouco tempo antes de morrer. Serviria de base para um "pequeno livro", que planejava escrever para que não se esquecessem dele quando partisse. Por certo não imaginava que a partida estivesse tão próxima.

Aldo Baldin - uma Vida Pela Música é um filme comovente e fundamental para conhecermos esse grande artista, tão ignorado  em seu país natal. As gravações estão por aí. A voz de Aldo é sublime, interpretando Verdi, Bach, Villa-Lobos, cançonetas napolitanas e a singela Azulão, que ele cantava para lembrar de sua terra. Ouçam-no na Cantilena das Bachianas Brasileiras nº 5, acompanhado pelo violão de João Pedro Borges, para entender por que Maria Lúcia Godoy o tem como referência absoluta em matéria de voz.

Florianópolis - A música anda em alta no 28º FAM, o festival do Mercosul. Da popular, com filmes sobre Dorival Caymmi e o black soul carioca, à clássica, com a trajetória internacional do tenor catarinense Aldo Baldin.

 

Em Nas Ondas de Dorival Caymmi, o diretor Locca Faria consegue soar original, mesmo em meio à profusão de filmes feitos ultimamente sobre o compositor e cantor baiano, um dos gênios da raça.

Não que inove tanto na forma. O filme segue mais ou menos o formato habitual de imagens de arquivo somadas a depoimentos sobre o artista - as famosas cabeças falantes.

Acontece que essas cabeças são tão qualificadas, importantes e se expressam tão bem que fazem toda a diferença. Dá gosto ouvir gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Maria Bethânia, João Bosco, Tarik de Souza, Hermínio Belo de Carvalho, André Midani e outros falarem sobre um artista que admiram. Caetano não tem medo de cravar: Caymmi é o maior compositor da música popular brasileira.

Pode-se discordar. Mas não dá para não se espantar com o que há de seminal na arte desse baiano que veio para o Rio, criou a persona e o visual de Carmen Miranda em O que é que a baiana tem?, trouxe uma voz e uma batida de violão inimitáveis, e deixou um punhado de canções que entraram para a história da MPB.

Vários dos seus admiradores dizem que o segredo de Caymmi era a simplicidade. O próprio Caymmi ilustra esse espírito despojado. "Me ensinaram o acorde dó maior e depois a relativa, lá menor. Com isso, ninguém mais me segurou". De fato. Mas vá buscar essa simplicidade, que contém um mundo, e verá como é difícil. Além do mais, o manejo da mão direita ao violão é completamente pessoal, entre o jongo, o samba de roda do recôncavo baiano e algo que só ele sabia fazer. Basta ouvir o disco clássico Canções Praieiras, apenas voz e violão, para se dar conta da grandeza de Caymmi.

 

Em Black Rio! Black Power!, Emílio Domingos traz a história da soul music no Rio de Janeiro, em bailes que contribuíram para a afirmação da comunidade negra em tempo de ditadura militar e preconceito racial acirrado.

Há a politização da música importada dos Estados Unidos em sua afirmação de que black is beautiful. O sucesso dos bailes e dos discos lançados chamaram a atenção da ditadura, que via na afirmação dos negros, em seu orgulho e altivez, algo de muito perigoso. Alguns dos líderes do soul music, como Dom Filó, chegaram a ser presos para prestar depoimento.

O filme mostra um timing dos mais sedutores. Tem ritmo, tem ginga - e muita inteligência. Alguns dos depoentes, como o já citado Dom Filó, além de Carlos Alberto e outros, dão um  show de lucidez ao examinarem o movimento a uma distância de cerca de cinco décadas.

Inclusive analisando a pecha de alienados e americanófilos, numa época em que a esquerda, que resistia ao regime, era muito nacionalista e prestigiava as formas de expressão artística autenticamente brasileiras. Como se fosse possível cobrar autenticidade a uma arte que ama a mistura, como a música popular.

Houve até o caso, real ou imaginado, do conflito entre a turma do samba e o grupo do soul, que teria dividido a comunidade negra naqueles anos. Carlos Alberto e Dom Filó negam qualquer coisa nesse sentido. "O samba jamai foi desrespeitado por nós".

De qualquer forma, sambistas que consideravam o soul um modismo passageiro acabaram por ter razão com o declínio da modalidade no final da década de 1970. Dom Filó responsabiliza a chegada da disco music, branca, que viria a ocupar o espaço do soul negro tanto nos bailes como nas gravadoras. "Lançaram até uma novela para promover, a Dancin' Days."

No entanto, vê hoje, no contestador hip hop, uma linha de continuidade daquilo que criaram nos anos 1970. Como diz outro dos integrantes do movimento original, "o soul plantou as sementes de uma revolução que não houve, que ainda não aconteceu".

É um percurso fascinante, digno de outros filmes e mais estudos, uma página importante do relacionamento entre artes e política, uma trajetória de resistência e afirmação.

 

Em outra vertente, temos Aldo Baldin - uma Vida pela Música, de Yves Goulart, uma dessas histórias de superação de que o Brasil é pródigo. Baldin é natural de Urussanga, uma cidade no interior de Santa Catarina. Filho de agricultores, imigrantes do Vêneto, no Norte da Itália, o menino Aldo ajudava os pais na lavoura. Cedo revelou sua vocação musical. Seu primeiro professor foi um tocador de harmônica, instrumento que no Sul chamam de "gaita".

O menino foi longe. Estudou no seminário, aprendeu canto, música e também outros instrumentos, passou por diversos professores e professoras. Com uma carta de recomendação do mitológico maestro e organista Karl Richter, de passagem pelo Brasil, conseguiu uma bolsa que o levou à Alemanha. Lá se estabeleceu, formou família e tornou-se figura conhecida no mundo do canto internacional. Ao morrer de forma precoce, com 49 anos, deixou um legado extraordinário, de mais de 100 discos gravados pelos mais prestigiosos selos da música clássica internacional.

O documentário se beneficia de um farto material deixado por Aldo. Desde filmes domésticos, disponibilizados por sua viúva ao diretor, como filmagens de suas performances nos palcos dos grandes teatros de ópera do mundo.

Mas, por certo, a cereja do bolo é uma gravação em fita cassete, do próprio Aldo lembrando sua trajetória, do menino humilde aos maiores palcos da música pelo mundo. Fez essa gravação pouco tempo antes de morrer. Serviria de base para um "pequeno livro", que planejava escrever para que não se esquecessem dele quando partisse. Por certo não imaginava que a partida estivesse tão próxima.

Aldo Baldin - uma Vida Pela Música é um filme comovente e fundamental para conhecermos esse grande artista, tão ignorado  em seu país natal. As gravações estão por aí. A voz de Aldo é sublime, interpretando Verdi, Bach, Villa-Lobos, cançonetas napolitanas e a singela Azulão, que ele cantava para lembrar de sua terra. Ouçam-no na Cantilena das Bachianas Brasileiras nº 5, acompanhado pelo violão de João Pedro Borges, para entender por que Maria Lúcia Godoy o tem como referência absoluta em matéria de voz.

Florianópolis - A música anda em alta no 28º FAM, o festival do Mercosul. Da popular, com filmes sobre Dorival Caymmi e o black soul carioca, à clássica, com a trajetória internacional do tenor catarinense Aldo Baldin.

 

Em Nas Ondas de Dorival Caymmi, o diretor Locca Faria consegue soar original, mesmo em meio à profusão de filmes feitos ultimamente sobre o compositor e cantor baiano, um dos gênios da raça.

Não que inove tanto na forma. O filme segue mais ou menos o formato habitual de imagens de arquivo somadas a depoimentos sobre o artista - as famosas cabeças falantes.

Acontece que essas cabeças são tão qualificadas, importantes e se expressam tão bem que fazem toda a diferença. Dá gosto ouvir gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Maria Bethânia, João Bosco, Tarik de Souza, Hermínio Belo de Carvalho, André Midani e outros falarem sobre um artista que admiram. Caetano não tem medo de cravar: Caymmi é o maior compositor da música popular brasileira.

Pode-se discordar. Mas não dá para não se espantar com o que há de seminal na arte desse baiano que veio para o Rio, criou a persona e o visual de Carmen Miranda em O que é que a baiana tem?, trouxe uma voz e uma batida de violão inimitáveis, e deixou um punhado de canções que entraram para a história da MPB.

Vários dos seus admiradores dizem que o segredo de Caymmi era a simplicidade. O próprio Caymmi ilustra esse espírito despojado. "Me ensinaram o acorde dó maior e depois a relativa, lá menor. Com isso, ninguém mais me segurou". De fato. Mas vá buscar essa simplicidade, que contém um mundo, e verá como é difícil. Além do mais, o manejo da mão direita ao violão é completamente pessoal, entre o jongo, o samba de roda do recôncavo baiano e algo que só ele sabia fazer. Basta ouvir o disco clássico Canções Praieiras, apenas voz e violão, para se dar conta da grandeza de Caymmi.

 

Em Black Rio! Black Power!, Emílio Domingos traz a história da soul music no Rio de Janeiro, em bailes que contribuíram para a afirmação da comunidade negra em tempo de ditadura militar e preconceito racial acirrado.

Há a politização da música importada dos Estados Unidos em sua afirmação de que black is beautiful. O sucesso dos bailes e dos discos lançados chamaram a atenção da ditadura, que via na afirmação dos negros, em seu orgulho e altivez, algo de muito perigoso. Alguns dos líderes do soul music, como Dom Filó, chegaram a ser presos para prestar depoimento.

O filme mostra um timing dos mais sedutores. Tem ritmo, tem ginga - e muita inteligência. Alguns dos depoentes, como o já citado Dom Filó, além de Carlos Alberto e outros, dão um  show de lucidez ao examinarem o movimento a uma distância de cerca de cinco décadas.

Inclusive analisando a pecha de alienados e americanófilos, numa época em que a esquerda, que resistia ao regime, era muito nacionalista e prestigiava as formas de expressão artística autenticamente brasileiras. Como se fosse possível cobrar autenticidade a uma arte que ama a mistura, como a música popular.

Houve até o caso, real ou imaginado, do conflito entre a turma do samba e o grupo do soul, que teria dividido a comunidade negra naqueles anos. Carlos Alberto e Dom Filó negam qualquer coisa nesse sentido. "O samba jamai foi desrespeitado por nós".

De qualquer forma, sambistas que consideravam o soul um modismo passageiro acabaram por ter razão com o declínio da modalidade no final da década de 1970. Dom Filó responsabiliza a chegada da disco music, branca, que viria a ocupar o espaço do soul negro tanto nos bailes como nas gravadoras. "Lançaram até uma novela para promover, a Dancin' Days."

No entanto, vê hoje, no contestador hip hop, uma linha de continuidade daquilo que criaram nos anos 1970. Como diz outro dos integrantes do movimento original, "o soul plantou as sementes de uma revolução que não houve, que ainda não aconteceu".

É um percurso fascinante, digno de outros filmes e mais estudos, uma página importante do relacionamento entre artes e política, uma trajetória de resistência e afirmação.

 

Em outra vertente, temos Aldo Baldin - uma Vida pela Música, de Yves Goulart, uma dessas histórias de superação de que o Brasil é pródigo. Baldin é natural de Urussanga, uma cidade no interior de Santa Catarina. Filho de agricultores, imigrantes do Vêneto, no Norte da Itália, o menino Aldo ajudava os pais na lavoura. Cedo revelou sua vocação musical. Seu primeiro professor foi um tocador de harmônica, instrumento que no Sul chamam de "gaita".

O menino foi longe. Estudou no seminário, aprendeu canto, música e também outros instrumentos, passou por diversos professores e professoras. Com uma carta de recomendação do mitológico maestro e organista Karl Richter, de passagem pelo Brasil, conseguiu uma bolsa que o levou à Alemanha. Lá se estabeleceu, formou família e tornou-se figura conhecida no mundo do canto internacional. Ao morrer de forma precoce, com 49 anos, deixou um legado extraordinário, de mais de 100 discos gravados pelos mais prestigiosos selos da música clássica internacional.

O documentário se beneficia de um farto material deixado por Aldo. Desde filmes domésticos, disponibilizados por sua viúva ao diretor, como filmagens de suas performances nos palcos dos grandes teatros de ópera do mundo.

Mas, por certo, a cereja do bolo é uma gravação em fita cassete, do próprio Aldo lembrando sua trajetória, do menino humilde aos maiores palcos da música pelo mundo. Fez essa gravação pouco tempo antes de morrer. Serviria de base para um "pequeno livro", que planejava escrever para que não se esquecessem dele quando partisse. Por certo não imaginava que a partida estivesse tão próxima.

Aldo Baldin - uma Vida Pela Música é um filme comovente e fundamental para conhecermos esse grande artista, tão ignorado  em seu país natal. As gravações estão por aí. A voz de Aldo é sublime, interpretando Verdi, Bach, Villa-Lobos, cançonetas napolitanas e a singela Azulão, que ele cantava para lembrar de sua terra. Ouçam-no na Cantilena das Bachianas Brasileiras nº 5, acompanhado pelo violão de João Pedro Borges, para entender por que Maria Lúcia Godoy o tem como referência absoluta em matéria de voz.

Florianópolis - A música anda em alta no 28º FAM, o festival do Mercosul. Da popular, com filmes sobre Dorival Caymmi e o black soul carioca, à clássica, com a trajetória internacional do tenor catarinense Aldo Baldin.

 

Em Nas Ondas de Dorival Caymmi, o diretor Locca Faria consegue soar original, mesmo em meio à profusão de filmes feitos ultimamente sobre o compositor e cantor baiano, um dos gênios da raça.

Não que inove tanto na forma. O filme segue mais ou menos o formato habitual de imagens de arquivo somadas a depoimentos sobre o artista - as famosas cabeças falantes.

Acontece que essas cabeças são tão qualificadas, importantes e se expressam tão bem que fazem toda a diferença. Dá gosto ouvir gente como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Maria Bethânia, João Bosco, Tarik de Souza, Hermínio Belo de Carvalho, André Midani e outros falarem sobre um artista que admiram. Caetano não tem medo de cravar: Caymmi é o maior compositor da música popular brasileira.

Pode-se discordar. Mas não dá para não se espantar com o que há de seminal na arte desse baiano que veio para o Rio, criou a persona e o visual de Carmen Miranda em O que é que a baiana tem?, trouxe uma voz e uma batida de violão inimitáveis, e deixou um punhado de canções que entraram para a história da MPB.

Vários dos seus admiradores dizem que o segredo de Caymmi era a simplicidade. O próprio Caymmi ilustra esse espírito despojado. "Me ensinaram o acorde dó maior e depois a relativa, lá menor. Com isso, ninguém mais me segurou". De fato. Mas vá buscar essa simplicidade, que contém um mundo, e verá como é difícil. Além do mais, o manejo da mão direita ao violão é completamente pessoal, entre o jongo, o samba de roda do recôncavo baiano e algo que só ele sabia fazer. Basta ouvir o disco clássico Canções Praieiras, apenas voz e violão, para se dar conta da grandeza de Caymmi.

 

Em Black Rio! Black Power!, Emílio Domingos traz a história da soul music no Rio de Janeiro, em bailes que contribuíram para a afirmação da comunidade negra em tempo de ditadura militar e preconceito racial acirrado.

Há a politização da música importada dos Estados Unidos em sua afirmação de que black is beautiful. O sucesso dos bailes e dos discos lançados chamaram a atenção da ditadura, que via na afirmação dos negros, em seu orgulho e altivez, algo de muito perigoso. Alguns dos líderes do soul music, como Dom Filó, chegaram a ser presos para prestar depoimento.

O filme mostra um timing dos mais sedutores. Tem ritmo, tem ginga - e muita inteligência. Alguns dos depoentes, como o já citado Dom Filó, além de Carlos Alberto e outros, dão um  show de lucidez ao examinarem o movimento a uma distância de cerca de cinco décadas.

Inclusive analisando a pecha de alienados e americanófilos, numa época em que a esquerda, que resistia ao regime, era muito nacionalista e prestigiava as formas de expressão artística autenticamente brasileiras. Como se fosse possível cobrar autenticidade a uma arte que ama a mistura, como a música popular.

Houve até o caso, real ou imaginado, do conflito entre a turma do samba e o grupo do soul, que teria dividido a comunidade negra naqueles anos. Carlos Alberto e Dom Filó negam qualquer coisa nesse sentido. "O samba jamai foi desrespeitado por nós".

De qualquer forma, sambistas que consideravam o soul um modismo passageiro acabaram por ter razão com o declínio da modalidade no final da década de 1970. Dom Filó responsabiliza a chegada da disco music, branca, que viria a ocupar o espaço do soul negro tanto nos bailes como nas gravadoras. "Lançaram até uma novela para promover, a Dancin' Days."

No entanto, vê hoje, no contestador hip hop, uma linha de continuidade daquilo que criaram nos anos 1970. Como diz outro dos integrantes do movimento original, "o soul plantou as sementes de uma revolução que não houve, que ainda não aconteceu".

É um percurso fascinante, digno de outros filmes e mais estudos, uma página importante do relacionamento entre artes e política, uma trajetória de resistência e afirmação.

 

Em outra vertente, temos Aldo Baldin - uma Vida pela Música, de Yves Goulart, uma dessas histórias de superação de que o Brasil é pródigo. Baldin é natural de Urussanga, uma cidade no interior de Santa Catarina. Filho de agricultores, imigrantes do Vêneto, no Norte da Itália, o menino Aldo ajudava os pais na lavoura. Cedo revelou sua vocação musical. Seu primeiro professor foi um tocador de harmônica, instrumento que no Sul chamam de "gaita".

O menino foi longe. Estudou no seminário, aprendeu canto, música e também outros instrumentos, passou por diversos professores e professoras. Com uma carta de recomendação do mitológico maestro e organista Karl Richter, de passagem pelo Brasil, conseguiu uma bolsa que o levou à Alemanha. Lá se estabeleceu, formou família e tornou-se figura conhecida no mundo do canto internacional. Ao morrer de forma precoce, com 49 anos, deixou um legado extraordinário, de mais de 100 discos gravados pelos mais prestigiosos selos da música clássica internacional.

O documentário se beneficia de um farto material deixado por Aldo. Desde filmes domésticos, disponibilizados por sua viúva ao diretor, como filmagens de suas performances nos palcos dos grandes teatros de ópera do mundo.

Mas, por certo, a cereja do bolo é uma gravação em fita cassete, do próprio Aldo lembrando sua trajetória, do menino humilde aos maiores palcos da música pelo mundo. Fez essa gravação pouco tempo antes de morrer. Serviria de base para um "pequeno livro", que planejava escrever para que não se esquecessem dele quando partisse. Por certo não imaginava que a partida estivesse tão próxima.

Aldo Baldin - uma Vida Pela Música é um filme comovente e fundamental para conhecermos esse grande artista, tão ignorado  em seu país natal. As gravações estão por aí. A voz de Aldo é sublime, interpretando Verdi, Bach, Villa-Lobos, cançonetas napolitanas e a singela Azulão, que ele cantava para lembrar de sua terra. Ouçam-no na Cantilena das Bachianas Brasileiras nº 5, acompanhado pelo violão de João Pedro Borges, para entender por que Maria Lúcia Godoy o tem como referência absoluta em matéria de voz.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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