GRAMADO - Isis Valverde interpreta Angela no filme homônimo de Hugo Prata, primeiro longa exibido na competição de Gramado. Isis é Angela Diniz, personagem real, socialite tristemente lembrada por ter sido vítima da violência masculina, morrendo assassinada em 1976 por quatro tiros disparados por seu namorado, o empresário Raul (Doca) Street. Três tiros no rosto, um último no pescoço.
O caso também ficou conhecido nos anais da Justiça brasileira como emblema do machismo assassino da época. apesar da brutalidade do crime, Doca recebeu uma pena simbólica de dois anos de prisão, depois do seu advogado ter usado em sua defesa a esdrúxula figura da "legítima defesa da honra", tese há pouco declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Posteriormente, a promotoria recorreu da sentença e Street foi condenado a 15 anos de cadeia.
Esse feminicídio, símbolo extremo do machismo brasileiro, já foi antes levado ao cinema com o título de Amores da Pantera, de Jece Valadão, ganhou livros, inclusive de Doca Street, intitulado Mea Culpa, e também um podcast recente chamado Ossos. O casal tinha uma casa na Praia dos Ossos, em Búzios, palco do assassinato.
Mesmo na época, o julgamento foi considerado um escândalo em meios menos trogloditas que a média nacional. Mas não é sobre ele que se debruça o filme. O próprio título já mostra que interessa ao diretor a figura central de Angela Diniz. Uma figura, diga-se, difícil de ser esboçada. Mulher livre, independente, que queria fazer o que bem entendesse de sua vida. Era casada e mãe de três filhos. Separou-se e abdicou da guarda das crianças em troca da concessão do divórcio. Era conhecida como a rainha das baladas da época, nas então chamadas discotecas da moda.
O filme a apresenta como namorada do todo poderoso colunista Ibrahim Sued (Gustavo Machado), quando conhece Street (Gabriel Braga Nunes) numa festa e os dois começam um caso. Street era casado e pai de dois filhos. Também abandona a família para ficar com Angela. Logo compram (na verdade, ela compra) a tal casa de praia em Búzios, onde se daria a tragédia.
O filme busca ser o retrato desse relacionamento tóxico, rápido (quatro meses) e de desfecho sangrento. A história é narrada com a competência de quem domina o instrumento. Boa parte do elenco está ok, a começar pela protagonista, que consegue transitar na ambivalência de uma mulher forte, que sabe o que quer, mas também insegura, com tendência à melancolia.
Na minha maneira de ver, faltou aprofundar essa relação tão contraditória como rápida. Fulminante, na verdade. Parece ser um caso clássico de ciúme, daqueles que conduzem à tragédia como no emblemático Otelo, de Shakespeare. Só que, na peça do Bardo, o sentimento negativo é inspirado e tonificado pela figura de Iago, o intrigante. Em Angela, um Iago nacional não é necessário. Doca é o seu próprio Iago.
A narração da história de Angela não tem a intensidade de Otelo, nem a sutileza de Dom Casmurro, este outro clássico estudo literário sobre o ciúme, talvez o mais devastador dos sentimentos situados na esfera amorosa. Ok, ninguém é obrigado a ser Shakespeare ou Machado de Assis. Ainda assim, talvez fosse lícito esperar dramaturgia que expressasse mais de perto esse estranho paroxismo de alma, que começa pela idolatria do outro e termina por destruí-lo.
Além do caso amoroso trágico, o filme observa o meio em que os personagens se movem, o da alta burguesia nacional, predadora reconhecida. Não por acaso, Doca é um caçador e costuma contar, com orgulho, sobre o safári em que matou um elefante. Há uma foto do Doca verdadeiro posando ao lado do do animal abatido. Talvez essa observação pudesse ser ainda mais intensa e sublinhada, o que daria um quadro mais completo do próprio assassinato da socialite. Colocaria o filme em outro patamar. Mas o foco era outro.
Ainda assim, é um bom filme, que agradou ao público e recebeu aplausos um tanto mornos no Palácio dos Festivais.
CURTAS
Yami Yah Pá - Fim da noite (RJ), de Vladimir Seixas. O filme traz as memórias de uma mulher indígena (Rosa Peixoto) em um mundo pós-apocalíptico. Interessante ideia, sobretudo num momento em que proliferam obras de temática indígena, com consequente tendência à repetição. Aqui se tem uma obra bastante sensorial, com paisagens arruinadas, e a mensagem de que a salvação pode vir dos povos originários apresentada não só de forma diferente como elegante.
Deixa (RJ), de Mariana Jaspe. De início, interagem dois personagens, um jovem e uma mulher mais velha. Podem ser mãe e filho, mas a realidade é bem outra. Zezé Motta magnífica no papel da mulher que aproveita seu último dia de liberdade antes que o marido saia da prisão. Filme também sensorial, inclusive nas intensas cenas de sexo. Uma bela surpresa.