Assim, talvez, Ilha do Medo seja visto apenas como um thriller psicológico, mais ou menos eficaz, segundo o gosto do freguês. É muito mais que isso. Mas é também um thriller muito bem construído. A começar pela viagem no mar tempestuoso do detetive Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) rumo a Shuttle Island (título original), onde se encontra o complexo psiquiátrico chefiado pelo doutor Cawley (Ben Kingsley). É nessa ilha onde ficam os pacientes perigosos, num manicômio judiciário de alta segurança. Uma interna sumiu e Teddy, junto com seu auxiliar Chuck (Mark Ruffalo), tem a missão de encontrá-la. Tudo isso, os tons obscuros, o mar crispado e a desolação da ilha constroem um clima de arrepiar. Essa maneira de edificar uma história deve-se a um domínio cinematográfico completo. Mostra como é possível assimilar a cultura cinematográfica sem dela fazer um pastiche explícito, ou uma diversão inconsequente. Ilha do Medo, em vários momentos, parece o mais íntimo diálogo que Scorsese estabelece com Hitchcock, o mestre do gênero. Mas preenche a forma com as preocupações tiradas do seu universo pessoal.
Desse modo, Teddy será um personagem problemático desde as primeiras cenas ao enjoar com o mar revolto a caminho da ilha. Teddy aparenta ter todos os motivos, aliás, para ser atormentado. Perdeu a mulher num incêndio, que julga ter sido criminoso, iniciado por um piromaníaco. Há outro dado importante sobre ele, um pouco mais recuado no tempo: Daniels serviu na 2ª Guerra, estava entre os soldados que liberaram o campo de extermínio de Dachau e testemunharam o horror absoluto. O tempo presente do filme também não é dos mais solares - 1952, em plena vigência do macarthismo, a caça às bruxas de esquerda nos Estados Unidos.
É esse homem dividido, atormentado e inseguro de si mesmo que conduz a investigação de um caso difícil e, em aparência, inexplicável. O mais desavisado espectador compreende logo de saída que Teddy Daniels não procede como se tudo fosse exterior a ele; pelo contrário, sua trajetória parece muito mais árdua porque será a da investigação de si, em especial a da parte obscura que todos levamos dentro de nós.
Numa obra cuja linguagem às vezes roça o over, Scorsese explicita o que existe de dilacerante no personagem e em seu mundo: suas fantasias e obsessões pessoais, que aos poucos se tornam visíveis, e os horrores de um tempo (nazismo, macarthismo, a psiquiatria radical) e, na verdade, de todos os tempos. Pois se o nazismo foi extinto com o fim da 2ª Guerra Mundial, ele renasce ali onde uma etnia entende que é tão superior que deve extinguir as outras. Se a doutrina de McCarthy faz parte da história, ela também ressurge a cada vez que se cria uma paranoia para justificar medidas de força. E se a psiquiatria abrandou-se, os adeptos de intervenções orgânicas brutais sempre podem argumentar que a psicanálise está superada e os remédios são a solução definitiva para os "males da alma". Para dizer em poucas palavras: a luta, em vários níveis, entre civilização e barbárie é permanente; é dela, afinal, que trata Ilha do Medo.
Tudo isso faz parte do universo pessoal de Scorsese, que pode ser observado em sua obra, filme após filme: a culpa, a presença do mal no mundo, a limitada capacidade humana de enfrentá-lo. E, por outro lado, o dever moral de encarar algo que, sabe-se de antemão, não pode ser eliminado por completo. É também o universo do autor do livro, Dennis Lehane, o mesmo de Sobre Meninos e Lobos, adaptado por Clint Eastwood.
É uma maneira especial de conceber o tema recorrente do mal no mundo, porque ele não se situa apenas do lado de fora, mas nos fustiga desde o mais profundo interior. Por isso, Daniels será um personagem atormentado e dividido. Como a história flui a partir do seu ponto de vista, será também um narrador pouco confiável à medida em que formos perdendo a fé em sua percepção e na isenção diante do que vê. Mas tudo permanecerá até o final em regime de ambiguidade, o que só fará aumentar o mal-estar de espectadores crentes num mundo seguro e unívoco. Essa estabilidade, apenas filmes mais simplórios podem nos dar. Scorsese não veio trazer a paz.
(Caderno 2, 12/3/2010)