Cinema, cultura & afins

Opinião|Luz Silenciosa


Por Luiz Zanin Oricchio

Carlos Reygadas é um talento jovem do cinema mexicano. Quem viu e gostou dos seus dois desconcertantes filmes anteriores, Japón (2002) e Batalla en el Cielo (2005), não terá motivo para se decepcionar com este Luz Silenciosa. Trata-se, no entanto, de diretor de estilo particular, talvez não palatável para o gosto da maioria. O filme, por exemplo, começa com o longo plano de um amanhecer, uma tomada quase em tempo real, e termina com o crepúsculo, na mesma duração. Abertura e fechamento não propriamente de uma jornada, mas de uma história, de um quadro de vida, de uma particular situação existencial.

Filmado com um elenco de não-atores em uma comunidade religiosa menonita, de origem germânica e radicada no México, Luz Silenciosa apresenta uma história de culpa, expiação... e milagre. Johan (Cornelio Wall Feher) é casado, pai de sete filhos, e se atormenta por que tem uma amante. Todos os desdobramentos e conclusões dependem e confluem para essa contingência temática. Há um princípio religioso rígido, mas este não é capaz de frear uma força tão incontrolável, e não raro anárquica, como o desejo humano. Talvez fosse outra a circunstância, ou outros os personagens desse pequeno drama transformado em tragédia, e não se teria a força alcançada em Luz Silenciosa.

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E por quê? Porque a sociedade menonita cultua a rigidez dos princípios morais e uma sólida devoção ao trabalho. Afasta como indigno tudo o que se assemelha ao prazer, faz da vida dura e das orações o sentido da existência. É uma comunidade acumulativa, rígida, com nenhum senso de humor e tolerância zero para com desvios do código de conduta. Numa das cenas, o pai de Johan lhe diz que ele também, em sua juventude, ficara tentado pelo 'pecado' na forma de uma mulher. E conseguiu evitar a perdição, conclui. Um ato de renúncia, em favor da família e da estabilidade da existência. O velho resolve o conflito pela abstinência. Johan cede ao desejo. Peca. E, como se verá, 'paga' por sua falta de uma forma que não poderia prever.

Esse estranho triângulo amoroso, antiquado, como que posto à margem do tempo, evolui em ritmo lento. Aquilo que se vira na abertura do filme - o amanhecer em tempo real, a câmera parada - se reproduz ao longo do seu desenvolvimento. Os planos são longos, como grandes ondas pela superfície do oceano. A tensão emocional também cresce, embora exista quem se queixe da presença de atores não-profissionais, em tese incapazes de sustentar a progressão dramática da história. A objeção não parece justa, sequer precisa. A autenticidade de quem vive o próprio papel pode muito bem compensar uma eventual deficiência dramatúrgica. Além disso, o filme é falado no idioma real dos personagens, uma variante do alemão, o plautdietsch.

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Há algo como um círculo fechado em si nessa história de amor e morte. O filme é mexicano (na verdade, uma co-produção internacional) mas não é falado em espanhol. Pouco vemos do México, com exceção de uma cena, em que um motorista de caminhão se dirige a Johan em espanhol para lhe prestar ajuda. No resto, a câmera se fecha no igualmente intransponível limite da comunidade religiosa. Não há música no filme, os diálogos são poucos, os planos longos, os enquadramentos, precisos. A intensidade que se busca - e a que se chega - lembra em determinados momentos o universo de Tarkovski. Um cinema sensorial, que explora a superfície das coisas e dos seres como em busca de alguma transcendência. Lembra, se precisarmos de outra referência, o mundo de Bresson, em especial por seu rigor, pela maneira como, sendo no fundo tão longo, não desperdiça sequer um fotograma, sequer uma imagem. Tudo o que nele se empregar - sobretudo o tempo - o será por necessidade interna.

Mas a referência maior, que se concentra numa citação especial, é ao dinamarquês Carl Dreyer (1889-1968). Há, em Luz Silenciosa, uma seqüência, até pela decupagem, muito parecida àquela de A Palavra (Ordet), vencedor do Festival de Veneza de 1955. O filme, em preto-e-branco, encantou André Bazin e François Truffaut com seu contraste monocromático e atmosfera de religiosidade intensa. Esse clima está lá em Luz Silenciosa, mas não à maneira de uma citação gratuita, pós-moderninha. Sente-se, em Reygadas, a tentativa de evocar algo que, para o bem ou para o mal, a sociedade laica perdeu - o sentido de transcendência.

Essa referência ao cinema do passado, e essa busca de uma fresta de fé no presente laico, não fazem desse um filme religioso, nem sequer místico. Se o milagre fica fora do alcance do pensamento racional, ele se justifica no contexto da ficção. A ressurreição pode ser um ato de fé, tanto em Ordet quanto em Luz Silenciosa. Mas o que impulsiona esse ato de fé, a sua força bruta, é a velha e não tão boa culpa - essa mesma que Freud dizia remover montanhas. Luz Silenciosa, com esse estranho título, é um estudo sobre esse sentimento, presente nos leigos como nos religiosos. Ivan Karamazóvi dizia que, na hipótese da inexistência de Deus, tudo seria permitido. Não, nem mesmo na ausência de Deus, sustentava aquele psicanalista judeu e ateu. A culpa está inscrita no coração do homem.

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(Caderno 2, 22/5/08)

Carlos Reygadas é um talento jovem do cinema mexicano. Quem viu e gostou dos seus dois desconcertantes filmes anteriores, Japón (2002) e Batalla en el Cielo (2005), não terá motivo para se decepcionar com este Luz Silenciosa. Trata-se, no entanto, de diretor de estilo particular, talvez não palatável para o gosto da maioria. O filme, por exemplo, começa com o longo plano de um amanhecer, uma tomada quase em tempo real, e termina com o crepúsculo, na mesma duração. Abertura e fechamento não propriamente de uma jornada, mas de uma história, de um quadro de vida, de uma particular situação existencial.

Filmado com um elenco de não-atores em uma comunidade religiosa menonita, de origem germânica e radicada no México, Luz Silenciosa apresenta uma história de culpa, expiação... e milagre. Johan (Cornelio Wall Feher) é casado, pai de sete filhos, e se atormenta por que tem uma amante. Todos os desdobramentos e conclusões dependem e confluem para essa contingência temática. Há um princípio religioso rígido, mas este não é capaz de frear uma força tão incontrolável, e não raro anárquica, como o desejo humano. Talvez fosse outra a circunstância, ou outros os personagens desse pequeno drama transformado em tragédia, e não se teria a força alcançada em Luz Silenciosa.

E por quê? Porque a sociedade menonita cultua a rigidez dos princípios morais e uma sólida devoção ao trabalho. Afasta como indigno tudo o que se assemelha ao prazer, faz da vida dura e das orações o sentido da existência. É uma comunidade acumulativa, rígida, com nenhum senso de humor e tolerância zero para com desvios do código de conduta. Numa das cenas, o pai de Johan lhe diz que ele também, em sua juventude, ficara tentado pelo 'pecado' na forma de uma mulher. E conseguiu evitar a perdição, conclui. Um ato de renúncia, em favor da família e da estabilidade da existência. O velho resolve o conflito pela abstinência. Johan cede ao desejo. Peca. E, como se verá, 'paga' por sua falta de uma forma que não poderia prever.

Esse estranho triângulo amoroso, antiquado, como que posto à margem do tempo, evolui em ritmo lento. Aquilo que se vira na abertura do filme - o amanhecer em tempo real, a câmera parada - se reproduz ao longo do seu desenvolvimento. Os planos são longos, como grandes ondas pela superfície do oceano. A tensão emocional também cresce, embora exista quem se queixe da presença de atores não-profissionais, em tese incapazes de sustentar a progressão dramática da história. A objeção não parece justa, sequer precisa. A autenticidade de quem vive o próprio papel pode muito bem compensar uma eventual deficiência dramatúrgica. Além disso, o filme é falado no idioma real dos personagens, uma variante do alemão, o plautdietsch.

Há algo como um círculo fechado em si nessa história de amor e morte. O filme é mexicano (na verdade, uma co-produção internacional) mas não é falado em espanhol. Pouco vemos do México, com exceção de uma cena, em que um motorista de caminhão se dirige a Johan em espanhol para lhe prestar ajuda. No resto, a câmera se fecha no igualmente intransponível limite da comunidade religiosa. Não há música no filme, os diálogos são poucos, os planos longos, os enquadramentos, precisos. A intensidade que se busca - e a que se chega - lembra em determinados momentos o universo de Tarkovski. Um cinema sensorial, que explora a superfície das coisas e dos seres como em busca de alguma transcendência. Lembra, se precisarmos de outra referência, o mundo de Bresson, em especial por seu rigor, pela maneira como, sendo no fundo tão longo, não desperdiça sequer um fotograma, sequer uma imagem. Tudo o que nele se empregar - sobretudo o tempo - o será por necessidade interna.

Mas a referência maior, que se concentra numa citação especial, é ao dinamarquês Carl Dreyer (1889-1968). Há, em Luz Silenciosa, uma seqüência, até pela decupagem, muito parecida àquela de A Palavra (Ordet), vencedor do Festival de Veneza de 1955. O filme, em preto-e-branco, encantou André Bazin e François Truffaut com seu contraste monocromático e atmosfera de religiosidade intensa. Esse clima está lá em Luz Silenciosa, mas não à maneira de uma citação gratuita, pós-moderninha. Sente-se, em Reygadas, a tentativa de evocar algo que, para o bem ou para o mal, a sociedade laica perdeu - o sentido de transcendência.

Essa referência ao cinema do passado, e essa busca de uma fresta de fé no presente laico, não fazem desse um filme religioso, nem sequer místico. Se o milagre fica fora do alcance do pensamento racional, ele se justifica no contexto da ficção. A ressurreição pode ser um ato de fé, tanto em Ordet quanto em Luz Silenciosa. Mas o que impulsiona esse ato de fé, a sua força bruta, é a velha e não tão boa culpa - essa mesma que Freud dizia remover montanhas. Luz Silenciosa, com esse estranho título, é um estudo sobre esse sentimento, presente nos leigos como nos religiosos. Ivan Karamazóvi dizia que, na hipótese da inexistência de Deus, tudo seria permitido. Não, nem mesmo na ausência de Deus, sustentava aquele psicanalista judeu e ateu. A culpa está inscrita no coração do homem.

(Caderno 2, 22/5/08)

Carlos Reygadas é um talento jovem do cinema mexicano. Quem viu e gostou dos seus dois desconcertantes filmes anteriores, Japón (2002) e Batalla en el Cielo (2005), não terá motivo para se decepcionar com este Luz Silenciosa. Trata-se, no entanto, de diretor de estilo particular, talvez não palatável para o gosto da maioria. O filme, por exemplo, começa com o longo plano de um amanhecer, uma tomada quase em tempo real, e termina com o crepúsculo, na mesma duração. Abertura e fechamento não propriamente de uma jornada, mas de uma história, de um quadro de vida, de uma particular situação existencial.

Filmado com um elenco de não-atores em uma comunidade religiosa menonita, de origem germânica e radicada no México, Luz Silenciosa apresenta uma história de culpa, expiação... e milagre. Johan (Cornelio Wall Feher) é casado, pai de sete filhos, e se atormenta por que tem uma amante. Todos os desdobramentos e conclusões dependem e confluem para essa contingência temática. Há um princípio religioso rígido, mas este não é capaz de frear uma força tão incontrolável, e não raro anárquica, como o desejo humano. Talvez fosse outra a circunstância, ou outros os personagens desse pequeno drama transformado em tragédia, e não se teria a força alcançada em Luz Silenciosa.

E por quê? Porque a sociedade menonita cultua a rigidez dos princípios morais e uma sólida devoção ao trabalho. Afasta como indigno tudo o que se assemelha ao prazer, faz da vida dura e das orações o sentido da existência. É uma comunidade acumulativa, rígida, com nenhum senso de humor e tolerância zero para com desvios do código de conduta. Numa das cenas, o pai de Johan lhe diz que ele também, em sua juventude, ficara tentado pelo 'pecado' na forma de uma mulher. E conseguiu evitar a perdição, conclui. Um ato de renúncia, em favor da família e da estabilidade da existência. O velho resolve o conflito pela abstinência. Johan cede ao desejo. Peca. E, como se verá, 'paga' por sua falta de uma forma que não poderia prever.

Esse estranho triângulo amoroso, antiquado, como que posto à margem do tempo, evolui em ritmo lento. Aquilo que se vira na abertura do filme - o amanhecer em tempo real, a câmera parada - se reproduz ao longo do seu desenvolvimento. Os planos são longos, como grandes ondas pela superfície do oceano. A tensão emocional também cresce, embora exista quem se queixe da presença de atores não-profissionais, em tese incapazes de sustentar a progressão dramática da história. A objeção não parece justa, sequer precisa. A autenticidade de quem vive o próprio papel pode muito bem compensar uma eventual deficiência dramatúrgica. Além disso, o filme é falado no idioma real dos personagens, uma variante do alemão, o plautdietsch.

Há algo como um círculo fechado em si nessa história de amor e morte. O filme é mexicano (na verdade, uma co-produção internacional) mas não é falado em espanhol. Pouco vemos do México, com exceção de uma cena, em que um motorista de caminhão se dirige a Johan em espanhol para lhe prestar ajuda. No resto, a câmera se fecha no igualmente intransponível limite da comunidade religiosa. Não há música no filme, os diálogos são poucos, os planos longos, os enquadramentos, precisos. A intensidade que se busca - e a que se chega - lembra em determinados momentos o universo de Tarkovski. Um cinema sensorial, que explora a superfície das coisas e dos seres como em busca de alguma transcendência. Lembra, se precisarmos de outra referência, o mundo de Bresson, em especial por seu rigor, pela maneira como, sendo no fundo tão longo, não desperdiça sequer um fotograma, sequer uma imagem. Tudo o que nele se empregar - sobretudo o tempo - o será por necessidade interna.

Mas a referência maior, que se concentra numa citação especial, é ao dinamarquês Carl Dreyer (1889-1968). Há, em Luz Silenciosa, uma seqüência, até pela decupagem, muito parecida àquela de A Palavra (Ordet), vencedor do Festival de Veneza de 1955. O filme, em preto-e-branco, encantou André Bazin e François Truffaut com seu contraste monocromático e atmosfera de religiosidade intensa. Esse clima está lá em Luz Silenciosa, mas não à maneira de uma citação gratuita, pós-moderninha. Sente-se, em Reygadas, a tentativa de evocar algo que, para o bem ou para o mal, a sociedade laica perdeu - o sentido de transcendência.

Essa referência ao cinema do passado, e essa busca de uma fresta de fé no presente laico, não fazem desse um filme religioso, nem sequer místico. Se o milagre fica fora do alcance do pensamento racional, ele se justifica no contexto da ficção. A ressurreição pode ser um ato de fé, tanto em Ordet quanto em Luz Silenciosa. Mas o que impulsiona esse ato de fé, a sua força bruta, é a velha e não tão boa culpa - essa mesma que Freud dizia remover montanhas. Luz Silenciosa, com esse estranho título, é um estudo sobre esse sentimento, presente nos leigos como nos religiosos. Ivan Karamazóvi dizia que, na hipótese da inexistência de Deus, tudo seria permitido. Não, nem mesmo na ausência de Deus, sustentava aquele psicanalista judeu e ateu. A culpa está inscrita no coração do homem.

(Caderno 2, 22/5/08)

Carlos Reygadas é um talento jovem do cinema mexicano. Quem viu e gostou dos seus dois desconcertantes filmes anteriores, Japón (2002) e Batalla en el Cielo (2005), não terá motivo para se decepcionar com este Luz Silenciosa. Trata-se, no entanto, de diretor de estilo particular, talvez não palatável para o gosto da maioria. O filme, por exemplo, começa com o longo plano de um amanhecer, uma tomada quase em tempo real, e termina com o crepúsculo, na mesma duração. Abertura e fechamento não propriamente de uma jornada, mas de uma história, de um quadro de vida, de uma particular situação existencial.

Filmado com um elenco de não-atores em uma comunidade religiosa menonita, de origem germânica e radicada no México, Luz Silenciosa apresenta uma história de culpa, expiação... e milagre. Johan (Cornelio Wall Feher) é casado, pai de sete filhos, e se atormenta por que tem uma amante. Todos os desdobramentos e conclusões dependem e confluem para essa contingência temática. Há um princípio religioso rígido, mas este não é capaz de frear uma força tão incontrolável, e não raro anárquica, como o desejo humano. Talvez fosse outra a circunstância, ou outros os personagens desse pequeno drama transformado em tragédia, e não se teria a força alcançada em Luz Silenciosa.

E por quê? Porque a sociedade menonita cultua a rigidez dos princípios morais e uma sólida devoção ao trabalho. Afasta como indigno tudo o que se assemelha ao prazer, faz da vida dura e das orações o sentido da existência. É uma comunidade acumulativa, rígida, com nenhum senso de humor e tolerância zero para com desvios do código de conduta. Numa das cenas, o pai de Johan lhe diz que ele também, em sua juventude, ficara tentado pelo 'pecado' na forma de uma mulher. E conseguiu evitar a perdição, conclui. Um ato de renúncia, em favor da família e da estabilidade da existência. O velho resolve o conflito pela abstinência. Johan cede ao desejo. Peca. E, como se verá, 'paga' por sua falta de uma forma que não poderia prever.

Esse estranho triângulo amoroso, antiquado, como que posto à margem do tempo, evolui em ritmo lento. Aquilo que se vira na abertura do filme - o amanhecer em tempo real, a câmera parada - se reproduz ao longo do seu desenvolvimento. Os planos são longos, como grandes ondas pela superfície do oceano. A tensão emocional também cresce, embora exista quem se queixe da presença de atores não-profissionais, em tese incapazes de sustentar a progressão dramática da história. A objeção não parece justa, sequer precisa. A autenticidade de quem vive o próprio papel pode muito bem compensar uma eventual deficiência dramatúrgica. Além disso, o filme é falado no idioma real dos personagens, uma variante do alemão, o plautdietsch.

Há algo como um círculo fechado em si nessa história de amor e morte. O filme é mexicano (na verdade, uma co-produção internacional) mas não é falado em espanhol. Pouco vemos do México, com exceção de uma cena, em que um motorista de caminhão se dirige a Johan em espanhol para lhe prestar ajuda. No resto, a câmera se fecha no igualmente intransponível limite da comunidade religiosa. Não há música no filme, os diálogos são poucos, os planos longos, os enquadramentos, precisos. A intensidade que se busca - e a que se chega - lembra em determinados momentos o universo de Tarkovski. Um cinema sensorial, que explora a superfície das coisas e dos seres como em busca de alguma transcendência. Lembra, se precisarmos de outra referência, o mundo de Bresson, em especial por seu rigor, pela maneira como, sendo no fundo tão longo, não desperdiça sequer um fotograma, sequer uma imagem. Tudo o que nele se empregar - sobretudo o tempo - o será por necessidade interna.

Mas a referência maior, que se concentra numa citação especial, é ao dinamarquês Carl Dreyer (1889-1968). Há, em Luz Silenciosa, uma seqüência, até pela decupagem, muito parecida àquela de A Palavra (Ordet), vencedor do Festival de Veneza de 1955. O filme, em preto-e-branco, encantou André Bazin e François Truffaut com seu contraste monocromático e atmosfera de religiosidade intensa. Esse clima está lá em Luz Silenciosa, mas não à maneira de uma citação gratuita, pós-moderninha. Sente-se, em Reygadas, a tentativa de evocar algo que, para o bem ou para o mal, a sociedade laica perdeu - o sentido de transcendência.

Essa referência ao cinema do passado, e essa busca de uma fresta de fé no presente laico, não fazem desse um filme religioso, nem sequer místico. Se o milagre fica fora do alcance do pensamento racional, ele se justifica no contexto da ficção. A ressurreição pode ser um ato de fé, tanto em Ordet quanto em Luz Silenciosa. Mas o que impulsiona esse ato de fé, a sua força bruta, é a velha e não tão boa culpa - essa mesma que Freud dizia remover montanhas. Luz Silenciosa, com esse estranho título, é um estudo sobre esse sentimento, presente nos leigos como nos religiosos. Ivan Karamazóvi dizia que, na hipótese da inexistência de Deus, tudo seria permitido. Não, nem mesmo na ausência de Deus, sustentava aquele psicanalista judeu e ateu. A culpa está inscrita no coração do homem.

(Caderno 2, 22/5/08)

Carlos Reygadas é um talento jovem do cinema mexicano. Quem viu e gostou dos seus dois desconcertantes filmes anteriores, Japón (2002) e Batalla en el Cielo (2005), não terá motivo para se decepcionar com este Luz Silenciosa. Trata-se, no entanto, de diretor de estilo particular, talvez não palatável para o gosto da maioria. O filme, por exemplo, começa com o longo plano de um amanhecer, uma tomada quase em tempo real, e termina com o crepúsculo, na mesma duração. Abertura e fechamento não propriamente de uma jornada, mas de uma história, de um quadro de vida, de uma particular situação existencial.

Filmado com um elenco de não-atores em uma comunidade religiosa menonita, de origem germânica e radicada no México, Luz Silenciosa apresenta uma história de culpa, expiação... e milagre. Johan (Cornelio Wall Feher) é casado, pai de sete filhos, e se atormenta por que tem uma amante. Todos os desdobramentos e conclusões dependem e confluem para essa contingência temática. Há um princípio religioso rígido, mas este não é capaz de frear uma força tão incontrolável, e não raro anárquica, como o desejo humano. Talvez fosse outra a circunstância, ou outros os personagens desse pequeno drama transformado em tragédia, e não se teria a força alcançada em Luz Silenciosa.

E por quê? Porque a sociedade menonita cultua a rigidez dos princípios morais e uma sólida devoção ao trabalho. Afasta como indigno tudo o que se assemelha ao prazer, faz da vida dura e das orações o sentido da existência. É uma comunidade acumulativa, rígida, com nenhum senso de humor e tolerância zero para com desvios do código de conduta. Numa das cenas, o pai de Johan lhe diz que ele também, em sua juventude, ficara tentado pelo 'pecado' na forma de uma mulher. E conseguiu evitar a perdição, conclui. Um ato de renúncia, em favor da família e da estabilidade da existência. O velho resolve o conflito pela abstinência. Johan cede ao desejo. Peca. E, como se verá, 'paga' por sua falta de uma forma que não poderia prever.

Esse estranho triângulo amoroso, antiquado, como que posto à margem do tempo, evolui em ritmo lento. Aquilo que se vira na abertura do filme - o amanhecer em tempo real, a câmera parada - se reproduz ao longo do seu desenvolvimento. Os planos são longos, como grandes ondas pela superfície do oceano. A tensão emocional também cresce, embora exista quem se queixe da presença de atores não-profissionais, em tese incapazes de sustentar a progressão dramática da história. A objeção não parece justa, sequer precisa. A autenticidade de quem vive o próprio papel pode muito bem compensar uma eventual deficiência dramatúrgica. Além disso, o filme é falado no idioma real dos personagens, uma variante do alemão, o plautdietsch.

Há algo como um círculo fechado em si nessa história de amor e morte. O filme é mexicano (na verdade, uma co-produção internacional) mas não é falado em espanhol. Pouco vemos do México, com exceção de uma cena, em que um motorista de caminhão se dirige a Johan em espanhol para lhe prestar ajuda. No resto, a câmera se fecha no igualmente intransponível limite da comunidade religiosa. Não há música no filme, os diálogos são poucos, os planos longos, os enquadramentos, precisos. A intensidade que se busca - e a que se chega - lembra em determinados momentos o universo de Tarkovski. Um cinema sensorial, que explora a superfície das coisas e dos seres como em busca de alguma transcendência. Lembra, se precisarmos de outra referência, o mundo de Bresson, em especial por seu rigor, pela maneira como, sendo no fundo tão longo, não desperdiça sequer um fotograma, sequer uma imagem. Tudo o que nele se empregar - sobretudo o tempo - o será por necessidade interna.

Mas a referência maior, que se concentra numa citação especial, é ao dinamarquês Carl Dreyer (1889-1968). Há, em Luz Silenciosa, uma seqüência, até pela decupagem, muito parecida àquela de A Palavra (Ordet), vencedor do Festival de Veneza de 1955. O filme, em preto-e-branco, encantou André Bazin e François Truffaut com seu contraste monocromático e atmosfera de religiosidade intensa. Esse clima está lá em Luz Silenciosa, mas não à maneira de uma citação gratuita, pós-moderninha. Sente-se, em Reygadas, a tentativa de evocar algo que, para o bem ou para o mal, a sociedade laica perdeu - o sentido de transcendência.

Essa referência ao cinema do passado, e essa busca de uma fresta de fé no presente laico, não fazem desse um filme religioso, nem sequer místico. Se o milagre fica fora do alcance do pensamento racional, ele se justifica no contexto da ficção. A ressurreição pode ser um ato de fé, tanto em Ordet quanto em Luz Silenciosa. Mas o que impulsiona esse ato de fé, a sua força bruta, é a velha e não tão boa culpa - essa mesma que Freud dizia remover montanhas. Luz Silenciosa, com esse estranho título, é um estudo sobre esse sentimento, presente nos leigos como nos religiosos. Ivan Karamazóvi dizia que, na hipótese da inexistência de Deus, tudo seria permitido. Não, nem mesmo na ausência de Deus, sustentava aquele psicanalista judeu e ateu. A culpa está inscrita no coração do homem.

(Caderno 2, 22/5/08)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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