Nesse filme de Abel Gance (autor do clássico Napoleão, 1927), o autor especula sobre a vida amorosa do grande Ludwig van Beethoven (1770-1827).
Dividido entre o amor de uma mulher que não pode ser sua (Thérese de Brunswick) e outra, que ele no fundo só quer como amiga (Juliette Guicciardi), o compositor vive sua vida infeliz, enquanto vai compondo uma obra-prima atrás da outra.
Bastante elaborado do ponto de vista formal, o filme tem momentos notáveis, como quando o compositor, já atingindo por uma surdez parcial e intermitente, ouve os ruídos da natureza e intui a música que existe neles - é o nascimento mítico da Sinfonia Pastoral, a de número seis em sua obra.
Gance não busca o realismo, mas a essência da vida dilacerada do compositor. Por exemplo, há um momento sublime, quando ele consola, com o único meio ao seu dispor, a música, a mãe que vela o corpo de sua filha morta. Toca o segundo movimento da Sonata Patética, composta para piano. Mas o que se ouve é uma versão orquestral da peça, enquanto o ator a "interpreta" ao piano. A cena é tão forte que esse detalhe não realista é incapaz de arruiná-la.
E, depois, há a consciência bem aguda de Beethoven de que todo o seu sofrimento será convertido em música, para deleite dos outros, os normais, que vivem suas vidas na inconsciência, casando-se, trabalhando duro, criando filhos, etc. Uma vida vedada aos gênios, segundo o ideal romântico do sofrimento associado à arte. O relacionamento com seu sobrinho estroina - Karl - que lhe causou considerável aborrecimento na velhice, também é abordado no filme.
Abel Gance (1889-1981) é, para o cinema francês, o que Victor Hugo foi para a literatura. A comparação é do crítico Jean Tulard, que sabe do que fala. Isso significa que o cinema francês lhe deve tudo. Foi um inovador, criador de linguagens e modos de expressão com uma técnica ainda incipiente. Viveu e trabalhou muito. Rodou seu primeiro filme em 1911 (La Digue) e o último em 1963 (Cyrano et D'Artagnan). Atravessou todo o período de estabelecimento do cinema como arte autônoma.
Um Grande Amor de Beethoven, de 1936, ocupa posição intermediária em sua obra, e não apenas em termos temporais. Não está entre suas obras-primas, mas é filme de grandes momentos e figura entre as últimas criações realmente pessoais de Gance. O resto, segundo o mesmo Tulard, foram adaptações de romances, às vezes pouco notáveis. Durante a Ocupação produziu pouco e, depois da guerra, muitos dos seus projetos mais desejados, entre os quais cinebiografias de Cristóvão Colombo e de Inácio de Loyola, nunca saíram do papel.
O episódio da vida de Beethoven sobre o qual Gance se inspira é aquele conhecido como a Carta à Amada Imortal. Durante muito tempo, o mistério da identidade da "amada imortal" atormentou os biógrafos do compositor. A menção é a uma carta encontrada entre os papéis de Beethoven depois da sua morte, endereçada a essa amante idealizada e jamais nomeada.
Muito já se especulou sobre a identidade dessa mulher sem rosto. De acordo com o biógrafo Lewis Lockwood (A Música e a Vida de Beethoven, Códex, 2004), a certa altura havia quatro candidatas sérias ao título de Amada Imortal, entre as quais as duas citadas por Gance. Hoje aceita-se que a eleita seja Antonie Brentano, "a mais plausível", segundo a análise da documentação. Mas a discussão não está encerrada e a identidade dessa mulher ainda provoca polêmica entre os estudiosos de Beethoven.
Gance não entra nessa disputa de especialistas. Faz apenas uma especulação em torno de um aspecto pouco esclarecido sobre a vida amorosa do mestre. No filme, o que importa não é o relacionamento de Beethoven com esta ou aquela mulher em particular, mas com a própria necessidade de estar apaixonado. Ou seja, seu relacionamento com o amor, em abstrato.
DVD. O Grande Amor de Beethoven, de Abel Gance. Distribuição Versátil.