Cinema, cultura & afins

Opinião|Olhar 2024: Brasil na veia com 'A Mensageira' e 'Turista Aprendiz' e mais a colagem revolucionária 'Jean Genet Agora'


Por Luiz Zanin Oricchio

CURITIBA - Notas breves sobre os filmes vistos ontem e que mereceriam - merecerão, no futuro - análises mais aprofundadas. Por enquanto, trata-se apenas de mais um registro num diário de bordo de um festival gigante, que oferece uma série de possibilidades, mas ocupa todos os nossos horários, inclusive os que seriam dedicados à reflexão e à escrita. Choradeira à parte, registo que os três filmes vistos ontem me pareceram muito bons: Jean Genet Agora (ARG), Mário de Andrade: O Turista Aprendiz (BRA) e A Mensageira (BRA).

 

Comecemos pelo último, um filme que, a meu ver, reúne condições para vencer o festival, pois está na competitiva brasileira. É dirigido pelo cineasta Claudio Marques e coloca-se em dupla vertente - questiona a Justiça oficial e suas relações com a corrupção, e destaca a negritude da Bahia. Seu início é uma cena de impacto - moradores, expulsos do terreno que ocupavam, vêem suas casas derrubadas pelas máquinas. A tal da "reintegração de posse" dá-se em favor de uma construtora que, claro, pretende construir no local um edifício para ricos ou classe média alta. Gentrificação das cidades brasileiras. Nota: não há nada mais triste que ver uma casa ser demolida. E, quanto mais pobre for esse lar, mais triste é.

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Enfim, quem conduz a ação é a oficial de justiça Íris (Clara Paixão), uma moça negra. Assim como negros são quase todos os desapropriados. Isso provoca uma dor de consciência na personagem e essa sensação incômoda será o motor de um filme que dialoga com Kafka e Orson Welles, de O Processo. Assim como com a ancestralidade de Íris, que irá ajudá-la em sua causa. Além da desapropriação em si, Íris se sente responsabilizada pelo desaparecimento de um líder comunitário que ela própria conduziu em seu carro para depor na delegacia.

Filmado em preto e branco, com um senso hierático de distanciamento referenciado ao trabalho do francês Robert Bresson, uma fotografia (de Flávio Rebouças) que remete ao filipino Lav Diaz e ao norte-americano John Cassavetes, de Faces, A Mensageira é um filme interessante tanto do ponto de vista formal como político. Muito há ainda a se falar sobre essa obra, que, além do mais retrata uma Salvador sem qualquer traço de cartão postal.

 
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Mário de Andrade: o Turista Aprendiz, de Murilo Salles, remete, claro, ao diário de viagem do modernista. Mário vai à Amazônia em companhia de uma grã-fina paulistana e duas dondocas ricas. É o encontro do intelectual citadino com algo que se poderia chamar de "Brasil profundo". Já muito se falou o quanto os jovens da Semana de Arte Moderna tomaram contato com o Brasil de verdade através de suas viagens - ao nordeste, à Amazônia e, sobretudo, às cidades mineiras do barroco - Ouro Preto, em especial.

Bem, Murilo, cineasta experiente de dono de um domínio completo do seu ofício (começou como fotógrafo), faz uma proposta ousada - recria uma viagem à exuberância amazônica construída totalmente em estúdio. O resultado é brilhante. Não transcreve um texto literário, mas o recria dando asas à imaginação, tanto do ponto de vista visual como de conteúdo. Gostei demais e quero revisitar esse filmes depois de voltar a Turista Aprendiz, livro que não releio há muitos anos.

Na conversa com Murilo, após o filme, perguntei a ele se esse trabalho representava uma linha interrompida do cinema brasileiro. A saber, depois de se dedicar às grandes questões nacionais - a identidade e natureza do ser brasileiro, as imensas disparidades sociais, cogitar a saída pela revolução, refletir sobre os impasses de estrutura (como em Terra em Transe), o cinema brasileiro, na atualidade, parece limitar-se a questões mais particulares, intimistas ou de reivindicação de grupos particulares. Tudo muito importante, porém perdendo essa visão de conjunto, essa ambição de compreender o todo, essa universalidade de propósitos e perspectivas.

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E, claro, essa atualização do autor de Macunaíma, é, sim, uma resposta a esse tipo de limitação auto imposta pelo cinema brasileiro, que talvez seja apenas reflexo de uma certa indigência intelectual generalizada. Esse debate segue, em filigrana, em todos os lugares que frequento.

Dito isso, Mário de Andrade é tratado por Murilo Salles sem qualquer reverência rançosa. Sua percepção admirável das coisas que vê e sente é temperada pelo ridículo de um estilo dândi puxado ao europeu, que era típico das elites brasileiras dos anos 1920 1930 (como o Brasil é, entre outras coisas, um país de arcaísmos, essa tendência se verifica até hoje, sendo que o modelo atual é os Estados Unidos, e não propriamente a cosmopolita Nova York, mas a provinciana e reacionária Flórida). Mário é ainda fustigado, mas não de forma moralista como hoje se usa, por deixar em segundo plano a presença do negro na cultura brasileira, e também sobre a homossexualidade. Essas críticas são válidas ou revelam um certo anacronismo do filme? Fica a dúvida.

Bem, voltaremos a essa obra, pois Mario é permanente, Macunaíma é um romance-rapsódia incontornável e ver a ambos reatualizados numa obra inventiva, é mesmo uma alegria, a chamada prova dos noves, como dizia o outro Andrade de gênio, Oswald.

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E chegamos Jean Genet Agora, do argentino Miguel Zeballos. Como ele disse, na apresentação, não teria sentido fazer um filme convencional sobre um artista tão radical como o francês Jean Genet.

Começa então com um certo cineasta François Thierry, que teria começado um filme interminável sobre seu amigo Jean Genet. Como o projeto que se estende por anos não teria sido concluído, o cineasta Zeballos retoma os restos dessas supostas filmagens e, usando também de encenações de trechos de Genet, recria o ambiente contestador dos anos febris de Jean Genet (1910-1986).

Mas não trata apenas de Genet, mas de toda uma galeria de contestadores, que vão de Angela Davis e os Panteras Negras americanos aos alemães Andreas Baader e Ulrike Meinhof e a Pier Paolo Pasolini. Uma colagem de esquerda bastante inspirada e que nos traz o espírito febril de uma época em que o mundo era tão injusto como agora, mas parecia possível mudá-lo.

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Gostei da "ambience" da obra - acho que sempre o mais difícil para um cineasta é recriar um clima de época e, nesse sentido, Miguel Zeballos tem pleno sucesso. O recurso a personagens fictícios para dar relevo a personalidadesreais me parece um pouco mais problemático. Mas isso não derruba o filme, que prossegue cheio de energia, surpresas e tom pulsante até o final. Um belo exercício de colagem, cheio de ideias e imagens fortes, político até a medula.

CURITIBA - Notas breves sobre os filmes vistos ontem e que mereceriam - merecerão, no futuro - análises mais aprofundadas. Por enquanto, trata-se apenas de mais um registro num diário de bordo de um festival gigante, que oferece uma série de possibilidades, mas ocupa todos os nossos horários, inclusive os que seriam dedicados à reflexão e à escrita. Choradeira à parte, registo que os três filmes vistos ontem me pareceram muito bons: Jean Genet Agora (ARG), Mário de Andrade: O Turista Aprendiz (BRA) e A Mensageira (BRA).

 

Comecemos pelo último, um filme que, a meu ver, reúne condições para vencer o festival, pois está na competitiva brasileira. É dirigido pelo cineasta Claudio Marques e coloca-se em dupla vertente - questiona a Justiça oficial e suas relações com a corrupção, e destaca a negritude da Bahia. Seu início é uma cena de impacto - moradores, expulsos do terreno que ocupavam, vêem suas casas derrubadas pelas máquinas. A tal da "reintegração de posse" dá-se em favor de uma construtora que, claro, pretende construir no local um edifício para ricos ou classe média alta. Gentrificação das cidades brasileiras. Nota: não há nada mais triste que ver uma casa ser demolida. E, quanto mais pobre for esse lar, mais triste é.

Enfim, quem conduz a ação é a oficial de justiça Íris (Clara Paixão), uma moça negra. Assim como negros são quase todos os desapropriados. Isso provoca uma dor de consciência na personagem e essa sensação incômoda será o motor de um filme que dialoga com Kafka e Orson Welles, de O Processo. Assim como com a ancestralidade de Íris, que irá ajudá-la em sua causa. Além da desapropriação em si, Íris se sente responsabilizada pelo desaparecimento de um líder comunitário que ela própria conduziu em seu carro para depor na delegacia.

Filmado em preto e branco, com um senso hierático de distanciamento referenciado ao trabalho do francês Robert Bresson, uma fotografia (de Flávio Rebouças) que remete ao filipino Lav Diaz e ao norte-americano John Cassavetes, de Faces, A Mensageira é um filme interessante tanto do ponto de vista formal como político. Muito há ainda a se falar sobre essa obra, que, além do mais retrata uma Salvador sem qualquer traço de cartão postal.

 

Mário de Andrade: o Turista Aprendiz, de Murilo Salles, remete, claro, ao diário de viagem do modernista. Mário vai à Amazônia em companhia de uma grã-fina paulistana e duas dondocas ricas. É o encontro do intelectual citadino com algo que se poderia chamar de "Brasil profundo". Já muito se falou o quanto os jovens da Semana de Arte Moderna tomaram contato com o Brasil de verdade através de suas viagens - ao nordeste, à Amazônia e, sobretudo, às cidades mineiras do barroco - Ouro Preto, em especial.

Bem, Murilo, cineasta experiente de dono de um domínio completo do seu ofício (começou como fotógrafo), faz uma proposta ousada - recria uma viagem à exuberância amazônica construída totalmente em estúdio. O resultado é brilhante. Não transcreve um texto literário, mas o recria dando asas à imaginação, tanto do ponto de vista visual como de conteúdo. Gostei demais e quero revisitar esse filmes depois de voltar a Turista Aprendiz, livro que não releio há muitos anos.

Na conversa com Murilo, após o filme, perguntei a ele se esse trabalho representava uma linha interrompida do cinema brasileiro. A saber, depois de se dedicar às grandes questões nacionais - a identidade e natureza do ser brasileiro, as imensas disparidades sociais, cogitar a saída pela revolução, refletir sobre os impasses de estrutura (como em Terra em Transe), o cinema brasileiro, na atualidade, parece limitar-se a questões mais particulares, intimistas ou de reivindicação de grupos particulares. Tudo muito importante, porém perdendo essa visão de conjunto, essa ambição de compreender o todo, essa universalidade de propósitos e perspectivas.

E, claro, essa atualização do autor de Macunaíma, é, sim, uma resposta a esse tipo de limitação auto imposta pelo cinema brasileiro, que talvez seja apenas reflexo de uma certa indigência intelectual generalizada. Esse debate segue, em filigrana, em todos os lugares que frequento.

Dito isso, Mário de Andrade é tratado por Murilo Salles sem qualquer reverência rançosa. Sua percepção admirável das coisas que vê e sente é temperada pelo ridículo de um estilo dândi puxado ao europeu, que era típico das elites brasileiras dos anos 1920 1930 (como o Brasil é, entre outras coisas, um país de arcaísmos, essa tendência se verifica até hoje, sendo que o modelo atual é os Estados Unidos, e não propriamente a cosmopolita Nova York, mas a provinciana e reacionária Flórida). Mário é ainda fustigado, mas não de forma moralista como hoje se usa, por deixar em segundo plano a presença do negro na cultura brasileira, e também sobre a homossexualidade. Essas críticas são válidas ou revelam um certo anacronismo do filme? Fica a dúvida.

Bem, voltaremos a essa obra, pois Mario é permanente, Macunaíma é um romance-rapsódia incontornável e ver a ambos reatualizados numa obra inventiva, é mesmo uma alegria, a chamada prova dos noves, como dizia o outro Andrade de gênio, Oswald.

E chegamos Jean Genet Agora, do argentino Miguel Zeballos. Como ele disse, na apresentação, não teria sentido fazer um filme convencional sobre um artista tão radical como o francês Jean Genet.

Começa então com um certo cineasta François Thierry, que teria começado um filme interminável sobre seu amigo Jean Genet. Como o projeto que se estende por anos não teria sido concluído, o cineasta Zeballos retoma os restos dessas supostas filmagens e, usando também de encenações de trechos de Genet, recria o ambiente contestador dos anos febris de Jean Genet (1910-1986).

Mas não trata apenas de Genet, mas de toda uma galeria de contestadores, que vão de Angela Davis e os Panteras Negras americanos aos alemães Andreas Baader e Ulrike Meinhof e a Pier Paolo Pasolini. Uma colagem de esquerda bastante inspirada e que nos traz o espírito febril de uma época em que o mundo era tão injusto como agora, mas parecia possível mudá-lo.

Gostei da "ambience" da obra - acho que sempre o mais difícil para um cineasta é recriar um clima de época e, nesse sentido, Miguel Zeballos tem pleno sucesso. O recurso a personagens fictícios para dar relevo a personalidadesreais me parece um pouco mais problemático. Mas isso não derruba o filme, que prossegue cheio de energia, surpresas e tom pulsante até o final. Um belo exercício de colagem, cheio de ideias e imagens fortes, político até a medula.

CURITIBA - Notas breves sobre os filmes vistos ontem e que mereceriam - merecerão, no futuro - análises mais aprofundadas. Por enquanto, trata-se apenas de mais um registro num diário de bordo de um festival gigante, que oferece uma série de possibilidades, mas ocupa todos os nossos horários, inclusive os que seriam dedicados à reflexão e à escrita. Choradeira à parte, registo que os três filmes vistos ontem me pareceram muito bons: Jean Genet Agora (ARG), Mário de Andrade: O Turista Aprendiz (BRA) e A Mensageira (BRA).

 

Comecemos pelo último, um filme que, a meu ver, reúne condições para vencer o festival, pois está na competitiva brasileira. É dirigido pelo cineasta Claudio Marques e coloca-se em dupla vertente - questiona a Justiça oficial e suas relações com a corrupção, e destaca a negritude da Bahia. Seu início é uma cena de impacto - moradores, expulsos do terreno que ocupavam, vêem suas casas derrubadas pelas máquinas. A tal da "reintegração de posse" dá-se em favor de uma construtora que, claro, pretende construir no local um edifício para ricos ou classe média alta. Gentrificação das cidades brasileiras. Nota: não há nada mais triste que ver uma casa ser demolida. E, quanto mais pobre for esse lar, mais triste é.

Enfim, quem conduz a ação é a oficial de justiça Íris (Clara Paixão), uma moça negra. Assim como negros são quase todos os desapropriados. Isso provoca uma dor de consciência na personagem e essa sensação incômoda será o motor de um filme que dialoga com Kafka e Orson Welles, de O Processo. Assim como com a ancestralidade de Íris, que irá ajudá-la em sua causa. Além da desapropriação em si, Íris se sente responsabilizada pelo desaparecimento de um líder comunitário que ela própria conduziu em seu carro para depor na delegacia.

Filmado em preto e branco, com um senso hierático de distanciamento referenciado ao trabalho do francês Robert Bresson, uma fotografia (de Flávio Rebouças) que remete ao filipino Lav Diaz e ao norte-americano John Cassavetes, de Faces, A Mensageira é um filme interessante tanto do ponto de vista formal como político. Muito há ainda a se falar sobre essa obra, que, além do mais retrata uma Salvador sem qualquer traço de cartão postal.

 

Mário de Andrade: o Turista Aprendiz, de Murilo Salles, remete, claro, ao diário de viagem do modernista. Mário vai à Amazônia em companhia de uma grã-fina paulistana e duas dondocas ricas. É o encontro do intelectual citadino com algo que se poderia chamar de "Brasil profundo". Já muito se falou o quanto os jovens da Semana de Arte Moderna tomaram contato com o Brasil de verdade através de suas viagens - ao nordeste, à Amazônia e, sobretudo, às cidades mineiras do barroco - Ouro Preto, em especial.

Bem, Murilo, cineasta experiente de dono de um domínio completo do seu ofício (começou como fotógrafo), faz uma proposta ousada - recria uma viagem à exuberância amazônica construída totalmente em estúdio. O resultado é brilhante. Não transcreve um texto literário, mas o recria dando asas à imaginação, tanto do ponto de vista visual como de conteúdo. Gostei demais e quero revisitar esse filmes depois de voltar a Turista Aprendiz, livro que não releio há muitos anos.

Na conversa com Murilo, após o filme, perguntei a ele se esse trabalho representava uma linha interrompida do cinema brasileiro. A saber, depois de se dedicar às grandes questões nacionais - a identidade e natureza do ser brasileiro, as imensas disparidades sociais, cogitar a saída pela revolução, refletir sobre os impasses de estrutura (como em Terra em Transe), o cinema brasileiro, na atualidade, parece limitar-se a questões mais particulares, intimistas ou de reivindicação de grupos particulares. Tudo muito importante, porém perdendo essa visão de conjunto, essa ambição de compreender o todo, essa universalidade de propósitos e perspectivas.

E, claro, essa atualização do autor de Macunaíma, é, sim, uma resposta a esse tipo de limitação auto imposta pelo cinema brasileiro, que talvez seja apenas reflexo de uma certa indigência intelectual generalizada. Esse debate segue, em filigrana, em todos os lugares que frequento.

Dito isso, Mário de Andrade é tratado por Murilo Salles sem qualquer reverência rançosa. Sua percepção admirável das coisas que vê e sente é temperada pelo ridículo de um estilo dândi puxado ao europeu, que era típico das elites brasileiras dos anos 1920 1930 (como o Brasil é, entre outras coisas, um país de arcaísmos, essa tendência se verifica até hoje, sendo que o modelo atual é os Estados Unidos, e não propriamente a cosmopolita Nova York, mas a provinciana e reacionária Flórida). Mário é ainda fustigado, mas não de forma moralista como hoje se usa, por deixar em segundo plano a presença do negro na cultura brasileira, e também sobre a homossexualidade. Essas críticas são válidas ou revelam um certo anacronismo do filme? Fica a dúvida.

Bem, voltaremos a essa obra, pois Mario é permanente, Macunaíma é um romance-rapsódia incontornável e ver a ambos reatualizados numa obra inventiva, é mesmo uma alegria, a chamada prova dos noves, como dizia o outro Andrade de gênio, Oswald.

E chegamos Jean Genet Agora, do argentino Miguel Zeballos. Como ele disse, na apresentação, não teria sentido fazer um filme convencional sobre um artista tão radical como o francês Jean Genet.

Começa então com um certo cineasta François Thierry, que teria começado um filme interminável sobre seu amigo Jean Genet. Como o projeto que se estende por anos não teria sido concluído, o cineasta Zeballos retoma os restos dessas supostas filmagens e, usando também de encenações de trechos de Genet, recria o ambiente contestador dos anos febris de Jean Genet (1910-1986).

Mas não trata apenas de Genet, mas de toda uma galeria de contestadores, que vão de Angela Davis e os Panteras Negras americanos aos alemães Andreas Baader e Ulrike Meinhof e a Pier Paolo Pasolini. Uma colagem de esquerda bastante inspirada e que nos traz o espírito febril de uma época em que o mundo era tão injusto como agora, mas parecia possível mudá-lo.

Gostei da "ambience" da obra - acho que sempre o mais difícil para um cineasta é recriar um clima de época e, nesse sentido, Miguel Zeballos tem pleno sucesso. O recurso a personagens fictícios para dar relevo a personalidadesreais me parece um pouco mais problemático. Mas isso não derruba o filme, que prossegue cheio de energia, surpresas e tom pulsante até o final. Um belo exercício de colagem, cheio de ideias e imagens fortes, político até a medula.

CURITIBA - Notas breves sobre os filmes vistos ontem e que mereceriam - merecerão, no futuro - análises mais aprofundadas. Por enquanto, trata-se apenas de mais um registro num diário de bordo de um festival gigante, que oferece uma série de possibilidades, mas ocupa todos os nossos horários, inclusive os que seriam dedicados à reflexão e à escrita. Choradeira à parte, registo que os três filmes vistos ontem me pareceram muito bons: Jean Genet Agora (ARG), Mário de Andrade: O Turista Aprendiz (BRA) e A Mensageira (BRA).

 

Comecemos pelo último, um filme que, a meu ver, reúne condições para vencer o festival, pois está na competitiva brasileira. É dirigido pelo cineasta Claudio Marques e coloca-se em dupla vertente - questiona a Justiça oficial e suas relações com a corrupção, e destaca a negritude da Bahia. Seu início é uma cena de impacto - moradores, expulsos do terreno que ocupavam, vêem suas casas derrubadas pelas máquinas. A tal da "reintegração de posse" dá-se em favor de uma construtora que, claro, pretende construir no local um edifício para ricos ou classe média alta. Gentrificação das cidades brasileiras. Nota: não há nada mais triste que ver uma casa ser demolida. E, quanto mais pobre for esse lar, mais triste é.

Enfim, quem conduz a ação é a oficial de justiça Íris (Clara Paixão), uma moça negra. Assim como negros são quase todos os desapropriados. Isso provoca uma dor de consciência na personagem e essa sensação incômoda será o motor de um filme que dialoga com Kafka e Orson Welles, de O Processo. Assim como com a ancestralidade de Íris, que irá ajudá-la em sua causa. Além da desapropriação em si, Íris se sente responsabilizada pelo desaparecimento de um líder comunitário que ela própria conduziu em seu carro para depor na delegacia.

Filmado em preto e branco, com um senso hierático de distanciamento referenciado ao trabalho do francês Robert Bresson, uma fotografia (de Flávio Rebouças) que remete ao filipino Lav Diaz e ao norte-americano John Cassavetes, de Faces, A Mensageira é um filme interessante tanto do ponto de vista formal como político. Muito há ainda a se falar sobre essa obra, que, além do mais retrata uma Salvador sem qualquer traço de cartão postal.

 

Mário de Andrade: o Turista Aprendiz, de Murilo Salles, remete, claro, ao diário de viagem do modernista. Mário vai à Amazônia em companhia de uma grã-fina paulistana e duas dondocas ricas. É o encontro do intelectual citadino com algo que se poderia chamar de "Brasil profundo". Já muito se falou o quanto os jovens da Semana de Arte Moderna tomaram contato com o Brasil de verdade através de suas viagens - ao nordeste, à Amazônia e, sobretudo, às cidades mineiras do barroco - Ouro Preto, em especial.

Bem, Murilo, cineasta experiente de dono de um domínio completo do seu ofício (começou como fotógrafo), faz uma proposta ousada - recria uma viagem à exuberância amazônica construída totalmente em estúdio. O resultado é brilhante. Não transcreve um texto literário, mas o recria dando asas à imaginação, tanto do ponto de vista visual como de conteúdo. Gostei demais e quero revisitar esse filmes depois de voltar a Turista Aprendiz, livro que não releio há muitos anos.

Na conversa com Murilo, após o filme, perguntei a ele se esse trabalho representava uma linha interrompida do cinema brasileiro. A saber, depois de se dedicar às grandes questões nacionais - a identidade e natureza do ser brasileiro, as imensas disparidades sociais, cogitar a saída pela revolução, refletir sobre os impasses de estrutura (como em Terra em Transe), o cinema brasileiro, na atualidade, parece limitar-se a questões mais particulares, intimistas ou de reivindicação de grupos particulares. Tudo muito importante, porém perdendo essa visão de conjunto, essa ambição de compreender o todo, essa universalidade de propósitos e perspectivas.

E, claro, essa atualização do autor de Macunaíma, é, sim, uma resposta a esse tipo de limitação auto imposta pelo cinema brasileiro, que talvez seja apenas reflexo de uma certa indigência intelectual generalizada. Esse debate segue, em filigrana, em todos os lugares que frequento.

Dito isso, Mário de Andrade é tratado por Murilo Salles sem qualquer reverência rançosa. Sua percepção admirável das coisas que vê e sente é temperada pelo ridículo de um estilo dândi puxado ao europeu, que era típico das elites brasileiras dos anos 1920 1930 (como o Brasil é, entre outras coisas, um país de arcaísmos, essa tendência se verifica até hoje, sendo que o modelo atual é os Estados Unidos, e não propriamente a cosmopolita Nova York, mas a provinciana e reacionária Flórida). Mário é ainda fustigado, mas não de forma moralista como hoje se usa, por deixar em segundo plano a presença do negro na cultura brasileira, e também sobre a homossexualidade. Essas críticas são válidas ou revelam um certo anacronismo do filme? Fica a dúvida.

Bem, voltaremos a essa obra, pois Mario é permanente, Macunaíma é um romance-rapsódia incontornável e ver a ambos reatualizados numa obra inventiva, é mesmo uma alegria, a chamada prova dos noves, como dizia o outro Andrade de gênio, Oswald.

E chegamos Jean Genet Agora, do argentino Miguel Zeballos. Como ele disse, na apresentação, não teria sentido fazer um filme convencional sobre um artista tão radical como o francês Jean Genet.

Começa então com um certo cineasta François Thierry, que teria começado um filme interminável sobre seu amigo Jean Genet. Como o projeto que se estende por anos não teria sido concluído, o cineasta Zeballos retoma os restos dessas supostas filmagens e, usando também de encenações de trechos de Genet, recria o ambiente contestador dos anos febris de Jean Genet (1910-1986).

Mas não trata apenas de Genet, mas de toda uma galeria de contestadores, que vão de Angela Davis e os Panteras Negras americanos aos alemães Andreas Baader e Ulrike Meinhof e a Pier Paolo Pasolini. Uma colagem de esquerda bastante inspirada e que nos traz o espírito febril de uma época em que o mundo era tão injusto como agora, mas parecia possível mudá-lo.

Gostei da "ambience" da obra - acho que sempre o mais difícil para um cineasta é recriar um clima de época e, nesse sentido, Miguel Zeballos tem pleno sucesso. O recurso a personagens fictícios para dar relevo a personalidadesreais me parece um pouco mais problemático. Mas isso não derruba o filme, que prossegue cheio de energia, surpresas e tom pulsante até o final. Um belo exercício de colagem, cheio de ideias e imagens fortes, político até a medula.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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