Hiroito escreveu-o para se justificar. Acabou por traçar um retrato bastante amplo da sua época, pelo ângulo do crime. Foi um personagem e tanto. O nome veio da admiração do pai pelo imperador japonês. O sobrenome Joanides é de origem grega. A relação com o pai parece ter sido das mais conflituosas. A tal ponto que Hiroito foi acusado de matá-lo, o que sempre negou. A acusação estaria na origem da sua vida de crimes, um currículo tão vasto que necessitava de um dossiê de 20 metros para abrigá-lo.
As filmagens foram feitas no centro histórico de Santos, na Rua do Comércio, próximo ao Santuário do Valongo. Um ambiente que conserva perfeitamente a fisionomia da época, anos 40 ou 50. Algumas sequências foram observadas pelo Estado. Numa delas a câmera passeia (em dolly, deslizando sobre trilhos) por algumas atrizes que interpretam garotas de programa. Duas delas estão sobre a calçada; as outras permanecem dentro das casas, sendo vistas pelas frestas dos janelões. "É engraçado", conta o diretor, "eu vi que esse jeito de as prostitutas ficarem dentro das casas, aparecendo pelas frestas, é algo real no Brasil da época; um jeito diferente do das mulheres nas vitrines de Amsterdã."
Era esse o mundo de Hiroito, que chegou a Rei da Boca explorando o meretrício. Mas nas cenas captadas em Santos (com câmera HD, informa o diretor), ele é ainda um menino, que observa as moças de vida airosa e o deslocamento do pai pelo local. Seu pai era um grego, criado na ortodoxia religiosa. À maneira sincrética do Brasil, o que se vê é tudo sendo misturado. O homem com o terno escuro e colete convivendo com trabalhadores em mangas de camisa, malandros, gigolôs, as moças e tudo o mais. O sagrado e o profano, as diferentes etnias, a vida do trabalho que se acotovela com a do crime.
São as formas impuras, que dão encanto à metrópole e parecem fascinar o diretor, desde o seu primeiro longa, Urbânia, mix de documentário e ficção, que passeia pelo centro degradado da velha São Paulo, na região dos Campos Elísios. Em conversa com o Estado, Frederico coloca esse fascínio na origem de Boca do Lixo. "Acabei por saber muita coisa do centro de São Paulo, daquela zona meio degradada, e assim o nome de Hiroito surgiu."
Compreende-se o interesse pelo personagem. Hiroito destoava do clichê do bandido. De físico franzino, usava óculos de fundo de garrafa e lia bastante. Compensava essas deficiências com uma coragem temerária, inteligência e muita disposição para a violência. "Nunca atirei em gente de bem", defendia-se Hiroito. "Eram sempre marginais como eu." Entre seus desafetos, o mais famoso era o folclórico Quinzinho. Ele aparece no filme, mas de relance. "Quinzinho, por si só, merece um filme só para ele", diz o diretor.
Nas muitas horas vagas da prisão (ele foi detido 170 vezes), Hiroito lia Victor Hugo, Hemingway, Jack London, Whitman e Baudelaire, seus autores favoritos. A leitura reflete-se na escrita. Boca do Lixo, o livro, é um relato de autopiedade, é verdade, mas narrado com vivacidade. "É riquíssimo", diz Frederico; "tivemos de escolher algumas passagens e tirar as demais." Além disso, o diretor inventou muito. Apesar de seu pé no documentário, neste caso ele quis ser ficcional. A melhor forma, acredita, para reproduzir na tela essa vida romanesca.
Mas há passagens que parecem de pura ficção - e no entanto foram reais. Numa delas, Hiroito narra quando, perseguido por rivais e pela polícia, não podia parar em lugar nenhum. Não podia nem sequer dormir. O jeito era movimentar-se sempre, a bordo de um carro, percorrendo sem cessar as ruas da cidade. Para permanecer desperto, injetava estimulante nas veias. Uma trip de louco. "Abro e fecho o filme com essa sequência", diz Frederico.
A maneira como Boca do Lixo está sendo feito tem muito de guerrilha. Ele próprio se espanta: "Fazer filme de época com R$ 700 mil não é mole, não", diz. Apesar disso, se diz contentíssimo de estar levando a vida de Hiroito à tela grande. "Era um projeto de quatro anos, que eu não estava conseguindo tirar do papel. Então chamei atores e técnicos amigos, todo mundo ganhando abaixo da média e estamos conseguindo fazer o filme." No peito e na raça. Foram apoiados, em Santos, pela Film Comission da cidade, o que lhe vale muitas facilidades, como atores locais, apoio técnico e logístico. E lhe permite filmar em locações, na parte preservada da cidade portuária, com casas e ruas reais que vão garantir a autenticidade suja das imagens.
Mas não o livra de alguns inconvenientes. Um deles foi testemunhado pelo repórter. Um dos moradores do centro velho santista se recusou a desligar o aparelho do som do carro, que tocava em volume máximo, na garagem. As cenas não previam diálogo, caso contrário não poderiam ter sido filmadas por causa do morador recalcitrante. Talvez contaminado pelo espírito de alguns personagens da história, o morador não estava apenas exercendo o direito de ouvir música (de péssima qualidade, aliás) em sua casa, numa manhã de domingo. Queria era dinheiro para desligá-la. Chantagem à qual a equipe não se curvou.
Cinema bandido
A criminalidade não é tema apenas de Boca do Lixo, este, aliás, um projeto que trata de uma época tida como "romântica" da violência urbana. Outros filmes abordam barra bem mais pesada e atual. Entre eles, 400 contra 1, que também conta com Daniel de Oliveira no elenco (veja na foto à direita), tem direção de Caco Souza e fala sobre o Comando Vermelho, organização criminosa carioca. 400 contra 1 é baseado no livro autobiográfico de William da Silva Lima, um dos criadores da organização que surgiu no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande. O Comando nasce da coexistência entre presos políticos e comuns, que assimilaram as técnicas de guerrilha dos militantes e as colocaram a serviço do crime. William é interpretado por Daniel. Outra organização criminosa, o PCC, inspira Salve Geral, de Sérgio Rezende. O título refere-se ao código usado pela organização para desencadear a série de ataques que paralisou São Paulo. A história é filtrada pela personagem Lúcia (Andréa Beltrão), professora viúva que luta para tirar o filho da prisão.
(Caderno 2, 6/7/09)