Testamento, do canadense Denys Arcand, foi tachado de "reacionário" por veículos da imprensa europeia de centro-esquerda como Le Monde e El Pais. Mas, como, o diretor progressista de A Queda do Império Americano, teria, com a idade, virado casaca e se alinhado à florescente extrema-direita global?
Nada disso. Vendo-se o filme, tudo parece claro. Arcand virou "reacionário" simplesmente porque ousou mexer em tabus contemporâneos - o politicamente correto, a moda woke e a cultura do cancelamento. Como praticamente toda a imprensa concorda com essa tendência, por convicção ou medo de reações contrárias, Arcand ficou isolado. Quem fala sozinho pode esperar pedras sobre sua cabeça.
Verdade que o filme tem exageros e inconsistências. O personagem principal, Jean-Michel (Rémy Girard) é um solteirão aposentado que vive numa casa de repouso administrada por Suzanne (Sophie Lorain). O sossego do lugar é quebrado quando um grupo ativista passa a fazer campanha pela remoção de uma pintura mural considerada insultuosa aos povos originários.
Testamento poderia evitar certas cenas como aquela em que Jean-Michel vai receber um prêmio. Como chegou atrasado ao teatro, senta-se na beirada. As outras premiadas, chamadas ao palco, passam por cima dele sem qualquer cerimônia. Simbolismo tolo de que as velhas gerações são atropeladas pelas novas sem qualquer compaixão.
Arcand, aos 83 anos, pode ter essa sensação e talvez a tenha e seja justa. O artista, no entanto, age melhor ao refrear determinados impulsos e dar à obra uma demão de sutileza, com o que ela se torna mais eficaz e certeira.
Tais derrapadas não invalidam o filme. Com muita vivacidade, Arcand traça a trajetória desse homem amargurado que é Jean-Michel, até que se apresente a ele alguma forma de redenção. Nenhuma redenção mágica ou religiosa. Apenas humana e encontrável na companhia e no relacionamento com outras pessoas. No caso, uma determinada pessoa.
Visto sem preconceitos, Testamento se revela um filme com defeitos, sem dúvida, porém com qualidades. O súbito apaziguamento final não rima com a acidez de outras partes, porém ilumina um caminho que parece estreitado pela desesperança. É corajoso ao topar uma discussão em que ninguém, sobretudo se de esquerda, deseja entrar. Em função desse receio, a crítica ao identitarismo torna-se monopólio da direita radical. Esta não disfarça que o que a incomoda não é tanto a metodologia dos ativistas mas os fins igualitários que entram na pauta de justiça social.
Como a esquerda se omite, qualquer crítica ao chamado identitarismo passa a ser tachada de "reacionária". E portanto desqualificada. É a batalha das ideias, na modalidade do século 21, simplista, binária, avessa à dialética e municiada com suas novas armas - as redes sociais e a cultura do cancelamento. Faz falta uma crítica aos destemperos dessa tendência, mas que venha pela esquerda. A tentativa de Arcand, ainda que um tanto limitada, vai nesse sentido.
Chamá-lo de "reacionário" por isso é não apenas um exagero, mas um erro de contextualização. Arcand é dono de longa carreira libertária, começada ainda nos anos 1960. Sua obra-prima, para muitos, é Jesus de Montreal. Mas como esquecer de As Invasões Bárbaras e A Idade da Inocência? Em seu Dicionário do Cinema, o crítico Jean Tulard o situa, ainda no início de carreira: "Denys Arcand é um dos representantes mais típicos do cinema politicamente e socialmente engajado do Quebec."
Cabe lembrar que em sociedades abertas tudo é criticável, de filmes como este de Denys Arcand aos intolerantes que o execram.