Ouvi outro dia o podcast em francês Fellini, L'Illusionniste. Recomendo a todos, fellinianos ou não. É muito bem-feito, como tudo que vem da Rádio France Culture. São cinco episódios: 1) A sombra de Rimini (1920-1939), 2) Roma, a caverna das imagens (1939-1960), 3) Federico dos Espíritos, 4), O farol de Cinecittà, 5) A última viagem (1983-1993).
Dois dos episódios não têm data. Como se os autores quisessem assinalar que não há princípio nem fim para a perene curiosidade de Fellini com os mistérios do além (o al di là, como se diz em italiano). O outro, sem data de princípio e fim, é sobre Cinecittà, em especial o Estúdio 5, onde ele se sentia em casa, livre para sonhar e dar vazão a uma imaginação inesgotável. Quando morreu, seu corpo foi velado no Teatro 5, tornado célebre por ele mesmo.
No podcast falam o próprio Fellini, em trechos de entrevistas gravadas, gente que o conheceu, trabalhou com ele, críticos, historiadores, o diretor da Fundação Fellini e o compositor Nicola Piovani com seu divertido francês macarrônico.
Sempre se pode dizer que faltam coisas. De fato, obra e vida tão ricas e complexas como a dele sempre excedem biografias, documentários ou podcasts, por melhores que sejam. Em particular, senti falta de Satyricon, uma obra-prima que só cresce com o tempo e se adensa a cada vez que a revisito. Em especial quando vista numa sala de cinema de verdade, em que seu caráter pictórico pode ser apreendido em toda sua grandeza.
Mas, enfim, já cheguei a uma idade em que prefiro aproveitar o que a vida me dá em vez de lamentar o que ela me nega. O que, é óbvio, não significa renunciar ao espírito crítico. Au contraire.
Entre outras coisas, gostei muito da parte sobre E la Nave Va. Já o vi e revi diversas vezes. Havia escrito sobre o filme há muitos anos (o texto encontra-se abaixo). Como muita gente, ficara tocado quando o diretor quebra a quarta parede, desfaz a ilusão e revela o dispositivo da obra, ele incluído. Foi como uma epifania quando assisti ao filme pela primeira vez, anos 1980, no Cine Belas Artes.
Destaco essa sequência em meu texto. Mas não havia atinado para algo que ali se revela e é destacado por um dos personagens do podcast francês. Aquela já era uma obra de despedida, ainda que Fellini viesse a fazer mais três longas-metragens. Mas, disse Fellini numa entrevista, já não existiriam mais filmes como aquele, "feito à mão, com os artesãos de Cinecittà". O que viria depois seria industrial.
Outra era começava, com domínio da televisão sobre o cinema. Era Berlusconi, que se impunha com sua visão cafajeste da cultura e da própria sociedade. O mundo mudava seu eixo e prenunciava o que temos hoje. Daí a melancólica, ainda que linda, despedida de Fellini nessa obra crepuscular. Um magnífico canto do cisne.
Link para o podcast:
https://www.radiofrance.fr/franceculture/podcasts/serie-grande-traversee-fellini
Texto do Estadão (9/3/1994)
Em 1994, escrevi no Estadão sobre E la Nave Va, que saía em vídeo (veja só...). Transcrevo o texto:
Há uma Europa que se considera polida e civilizada. Por baixo do verniz, uma história de guerras e tensão milenar. A Europa caiu na real da sua violência nas trincheiras da Primeira Guerra, em 1914. Esse é o momento que Federico Fellini registra em E la Nave Va, provavelmente sua última obra-prima.
O filme é um primor. Abre com cinco minutos silenciosos, em sépia. Os personagens se aproximam de um cais. O espectador pode já pressentir nas cenas iniciais a fauna humana habitual presente nos filmes do diretor italiano. Os personagens são, em sua maioria, ligados ao mundo da ópera. Vão embarcar num navio com a finalidade de espargir no mar as cinzas de uma diva recentemente falecida, Edmea Tetua.
Como de hábito, Fellini não deixa pedra sobre pedra. É um iconoclasta. Reunidos em torno de uma homenagem, os personagens, seres da intriga e do ressentimento, se deixam consumir numa verdadeira fogueira das vaidades. Há sequências antológicas como aquela em que eles cantam para os trabalhadores na casa de máquinas do navio. Claro, não se exibem para a gente simples - competem entre si.
Fellini é um iconoclasta, vive num mundo em ruínas mas nostálgico da beleza e de certa inocência indefinida. Em A Doce Vida há a adolescente que chama um Marcello Mastroianni entorpecido pela vida mundana. Ele não consegue escuta o chamado da moça. Afunda na vacuidade. Em E La Nave Va há também uma figura de moça que destoa do ambiente vicioso - e belicoso - à sua volta. é ela quem encanta o narrador da história, o jornalista vivido por Freddie Jones, que faz o registro "objetivo" da viagem. No filme, a adolescente é apenas uma figura de passagem. Como em A Doce Vida, parece mostrar a existência virtual de um elemento não contaminado, mas que não influi muito na evolução dos acontecimentos.
É como se Fellini trabalhasse num universo desencantado, mas que conserva certa reserva de beleza como fator de sobrevivência. A adolescente não é o único caso. Os músicos, viciosos, invejosos, são também divinos quando tocam o Momento Musical, de Schubert, nos copos de cristal. A sequência, de uns poucos minutos, é uma pequena epifania.
E la Nave Va marca também a autonomia completa do cinema de Fellini em relação ao registro realístico, é um cinema que fala diretamente do real ao mesmo tempo em que se lixa para o verismo. O mar é de plástico. O navio é uma contrafação ostensiva. O pôr de sol é pintado em tons escandalosos numa parede de fundo em Cinecittà. Uma personagem diz à outra: "É tão bonito que nem parece real. ".
O cineasta é um fingidor. E faz questão de mostrar, no final do filme, toda a engrenagem da máquina imaginária do cinema, com seus técnicos, suas câmeras, gruas, rebatedores, o mecanismo artificial que movimenta a nave. Como se Fellini dissesse: "Olhem, sou um mentiroso confesso, mas minhas mentiras tocam o real mais que qualquer verdade." Como qualquer obra definitiva E la Nave Va mostra até onde a arte cinematográfica pode ir. Mais que um grande filme, é um desafio aos cineastas para que tentem fazer melhor. Ou pelo menos igual.