'Luz de Agosto', de William Faulkner, fica entre alegoria cristã e romance moderno sobre o racismo


Obra-prima do ganhador do Nobel aborda o preconceito na sociedade rural nos EUA

Por Paulo Nogueira

William Faulkner era uma figuraça. Escreveu o polifônico Enquanto Agonizo em seis semanas, trabalhando nos Correios do Mississipi. Mas assim até eu: o único jeito de obter a correspondência era fuçar na lata de lixo dos fundos, pois Faulkner jogava tudo fora sem abrir as sacolas. Não era muito chegado em cartas. Quando morreu, em 1962, deixou pilhas de correspondência que nunca abrira. Sinceridade? Só abria as que lhe mandavam os editores, e com cautela: rasgava a fímbria do envelope e o sacudia para ver se assomava um cheque. Não? Que o remetente esperasse sentado. Faulkner é da tribo “gótico-sulista”, a par de Carson McCullers, Flannery O’Connor. Uma poética não para frouxos: os personagens se suicidam ou se castram, cometem incesto, lincham. Em Faulkner, todo esse vórtice se desenrola num condado que ele imaginou (e cujo mapa desenhou), Yoknapatawpha, com a também fictícia cidade de Jefferson.

O escritor norte-americno William Faulkner, vencedor do Nobel de Literatura Foto: New Films International/Companhia das Letras

Culto mas autodidata, resmungou: “Nunca li Freud. Mas tampouco Shakespeare o leu. Duvido que Melville o tenha lido”. Mas há vários Faulkner, um dos autores mais aclamados das letras americanas: Nobel, dois Pulitzers. Em 1945, Sartre disse que para os jovens na França “Faulkner c'est un dieu”. Por outro lado, foi olimpicamente esnobado até seu sexto romance (Santuário), com obras encalhadas e mofando fora do prelo.  Os tema explícitos de Faulkner eram a Guerra Civil americana, as tradições sulistas (majestosas e medonhas), o estigma da escravidão e a ‘angst’ moderna. Daí a questão: como essa obra se apruma na era do Black Lives Matter, da condenação do assassino de George Floyd e em que monumentos confederados são demolidos? Por isso mesmo, saíram dois livros importantes sobre ele: a biografia colossal (dois volumes) de Carl Rollyson e o de Michael Gorra sobre o efeito da Guerra da Secessão na criação faulkneriana: The Saddest Words.  Em 1956, Faulkner disse a um jornalista que se opunha tanto à integração compulsória como à segregação. Foi durante a tentativa de Autherine Lucy, uma jovem negra, de se matricular na Universidade do Alabama. Os motins proliferaram e ela foi convidada a deixar a escola e depois expulsa. Admiradores negros de Faulkner, como Ralph Ellisson e Langston Hughes, lamentaram as palavras do colega. Faulkner retratou-se imediatamente, alegando que estava de porre durante a entrevista (odiava jornalistas e era alcoólatra), e comentou o linchamento de Emmett Till, afro-americano de 14 anos, acusado de ofender uma branca: “Nenhum homem sóbrio diria o que eu disse. Se nós, na América, chegamos ao ponto em que devemos assassinar crianças, não importa por que razão ou cor, não merecemos sobreviver e provavelmente não sobreviveremos”. Em seus romances, Faulkner disseca a loucura coletiva da resistência sulista à abolição – ainda que raramente descreva a Guerra Civil. Dos seus 20 livros, só Os Inconquistados se situa em 1860. Porém, como diz um personagem memorável do autor: “O passado nunca está morto. Não é nem passado.” Após a Emancipação, no sul profundo os libertos muitas vezes trabalharam para seus antigos senhores em condições não muito diferentes da escravidão. Prevalecia o terrorismo de supremacia branca, mesmo antes de as leis Jim Crow de 1870 legalizarem a segregação. Para brancos pobres, como a família Bundren (protagonistas da obra-prima Enquanto Agonizo), o “mundo continua preso no tempo” porque “nunca houve dinheiro para fazer nada de novo”. E para os descendentes da aristocracia rural decadente, como os Compson (em O Som e a Fúria e Absalão, Absalão!), o pós-guerra destila uma erosão tóxica e inexorável. A guerra para Faulkner é um eterno retorno Escritores populares, como Margaret Mitchell, tentaram reviver a nostalgia das grandes plantações, contrastando versões idílicas do Sul agrário com as devastações culturais e ecológicas da modernidade industrial. Faulkner não pagou esse mico: virou o maior cronista da culpa branca – se seu território era o lado errado da história, ele cartografou cada milímetro dele, expondo por exemplo os estupros das escravas pelos senhores, que geravam bastardos também escravizados.  Houve quem observasse sobre os últimos e reacionários anos de Tolstoi, que incluem Anna Karenina: “Há romances mais inteligentes que seus autores”. Mas Faulkner sempre foi lúcido nas denúncias dilacerantes. Como na epígrafe de Luz de Agosto, que chega amanhã às livrarias: “Querido Deus, deixe-me ser amaldiçoado um pouco mais, um pouco mais”.Luz de Agosto (1932) é o meu romance favorito de Faulkner. Tecnicamente, é o mais equilibrado, manipulando com astúcia as inovações de James Joyce: fluxo da consciência, cronologia caleidoscópica, rodízio de narradores e oralidade febril. A trama é durante a Lei Seca.  A primeira parte mostra a busca de Lena Grove, uma jovem branca grávida, pelo pai do seu filho. A segunda é monopolizada por Joe Christmas, um homem de raça indeterminada que julga ser negro, apesar de parecer branco. Os detalhes do seu nascimento são relatados vagamente e por narradores pouco confiáveis – ele pode ser mestiço, mexicano ou branco. E essa indefinição contém o pilar do livro e a ironia trágica da experiência norte-americana: uma nação construída e definida por categorias raciais que, cientificamente falando, nem sequer existem. Para desgosto dos supremacistas brancos e dos racialistas em geral, geneticamente o conceito de raça é uma abobrinha obsoleta. Para todos os efeitos, um SS nazista e um rabino são gêmeos – menos na humanidade, claro. Rola uma simbologia cristológica em Joe: também ele tem uma dupla natureza, pela qual será caçado e martirizado, aos 33 anos (e sob o nome de Christmas/Natal). O desfecho é um prodígio estilístico, um turbilhão quase insuportável de voltagem emocional e gravidade moral, cujo impacto deixou marcas em obras tão diferentes como Nas Trevas Exteriores, de Cormac McCarthy, O Homem Invisível, de Ralph Ellison e Amada, de Toni Morrison. Os supremacistas brancos do Sul ainda hoje não engolem Faulkner, que lhes esfregou na cara verdades inconvenientes – e com um talento genial. Até muitos dos seus parentes o viam como um autor de “livros sujos para ianques”. Mas quem ri por último, ri melhor. Agora, em sua cidade adotiva de Oxford, Faulkner é uma atração turística. Quando tantas estátuas de confederados são derrubadas, a dele continua impávida na praça da Prefeitura. Um homem de mármore alinhado diante do tribunal municipal, parecendo que sempre esteve lá e sempre estará. Bem-feito para os supremacistas. Sobra mais.  *PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

William Faulkner era uma figuraça. Escreveu o polifônico Enquanto Agonizo em seis semanas, trabalhando nos Correios do Mississipi. Mas assim até eu: o único jeito de obter a correspondência era fuçar na lata de lixo dos fundos, pois Faulkner jogava tudo fora sem abrir as sacolas. Não era muito chegado em cartas. Quando morreu, em 1962, deixou pilhas de correspondência que nunca abrira. Sinceridade? Só abria as que lhe mandavam os editores, e com cautela: rasgava a fímbria do envelope e o sacudia para ver se assomava um cheque. Não? Que o remetente esperasse sentado. Faulkner é da tribo “gótico-sulista”, a par de Carson McCullers, Flannery O’Connor. Uma poética não para frouxos: os personagens se suicidam ou se castram, cometem incesto, lincham. Em Faulkner, todo esse vórtice se desenrola num condado que ele imaginou (e cujo mapa desenhou), Yoknapatawpha, com a também fictícia cidade de Jefferson.

O escritor norte-americno William Faulkner, vencedor do Nobel de Literatura Foto: New Films International/Companhia das Letras

Culto mas autodidata, resmungou: “Nunca li Freud. Mas tampouco Shakespeare o leu. Duvido que Melville o tenha lido”. Mas há vários Faulkner, um dos autores mais aclamados das letras americanas: Nobel, dois Pulitzers. Em 1945, Sartre disse que para os jovens na França “Faulkner c'est un dieu”. Por outro lado, foi olimpicamente esnobado até seu sexto romance (Santuário), com obras encalhadas e mofando fora do prelo.  Os tema explícitos de Faulkner eram a Guerra Civil americana, as tradições sulistas (majestosas e medonhas), o estigma da escravidão e a ‘angst’ moderna. Daí a questão: como essa obra se apruma na era do Black Lives Matter, da condenação do assassino de George Floyd e em que monumentos confederados são demolidos? Por isso mesmo, saíram dois livros importantes sobre ele: a biografia colossal (dois volumes) de Carl Rollyson e o de Michael Gorra sobre o efeito da Guerra da Secessão na criação faulkneriana: The Saddest Words.  Em 1956, Faulkner disse a um jornalista que se opunha tanto à integração compulsória como à segregação. Foi durante a tentativa de Autherine Lucy, uma jovem negra, de se matricular na Universidade do Alabama. Os motins proliferaram e ela foi convidada a deixar a escola e depois expulsa. Admiradores negros de Faulkner, como Ralph Ellisson e Langston Hughes, lamentaram as palavras do colega. Faulkner retratou-se imediatamente, alegando que estava de porre durante a entrevista (odiava jornalistas e era alcoólatra), e comentou o linchamento de Emmett Till, afro-americano de 14 anos, acusado de ofender uma branca: “Nenhum homem sóbrio diria o que eu disse. Se nós, na América, chegamos ao ponto em que devemos assassinar crianças, não importa por que razão ou cor, não merecemos sobreviver e provavelmente não sobreviveremos”. Em seus romances, Faulkner disseca a loucura coletiva da resistência sulista à abolição – ainda que raramente descreva a Guerra Civil. Dos seus 20 livros, só Os Inconquistados se situa em 1860. Porém, como diz um personagem memorável do autor: “O passado nunca está morto. Não é nem passado.” Após a Emancipação, no sul profundo os libertos muitas vezes trabalharam para seus antigos senhores em condições não muito diferentes da escravidão. Prevalecia o terrorismo de supremacia branca, mesmo antes de as leis Jim Crow de 1870 legalizarem a segregação. Para brancos pobres, como a família Bundren (protagonistas da obra-prima Enquanto Agonizo), o “mundo continua preso no tempo” porque “nunca houve dinheiro para fazer nada de novo”. E para os descendentes da aristocracia rural decadente, como os Compson (em O Som e a Fúria e Absalão, Absalão!), o pós-guerra destila uma erosão tóxica e inexorável. A guerra para Faulkner é um eterno retorno Escritores populares, como Margaret Mitchell, tentaram reviver a nostalgia das grandes plantações, contrastando versões idílicas do Sul agrário com as devastações culturais e ecológicas da modernidade industrial. Faulkner não pagou esse mico: virou o maior cronista da culpa branca – se seu território era o lado errado da história, ele cartografou cada milímetro dele, expondo por exemplo os estupros das escravas pelos senhores, que geravam bastardos também escravizados.  Houve quem observasse sobre os últimos e reacionários anos de Tolstoi, que incluem Anna Karenina: “Há romances mais inteligentes que seus autores”. Mas Faulkner sempre foi lúcido nas denúncias dilacerantes. Como na epígrafe de Luz de Agosto, que chega amanhã às livrarias: “Querido Deus, deixe-me ser amaldiçoado um pouco mais, um pouco mais”.Luz de Agosto (1932) é o meu romance favorito de Faulkner. Tecnicamente, é o mais equilibrado, manipulando com astúcia as inovações de James Joyce: fluxo da consciência, cronologia caleidoscópica, rodízio de narradores e oralidade febril. A trama é durante a Lei Seca.  A primeira parte mostra a busca de Lena Grove, uma jovem branca grávida, pelo pai do seu filho. A segunda é monopolizada por Joe Christmas, um homem de raça indeterminada que julga ser negro, apesar de parecer branco. Os detalhes do seu nascimento são relatados vagamente e por narradores pouco confiáveis – ele pode ser mestiço, mexicano ou branco. E essa indefinição contém o pilar do livro e a ironia trágica da experiência norte-americana: uma nação construída e definida por categorias raciais que, cientificamente falando, nem sequer existem. Para desgosto dos supremacistas brancos e dos racialistas em geral, geneticamente o conceito de raça é uma abobrinha obsoleta. Para todos os efeitos, um SS nazista e um rabino são gêmeos – menos na humanidade, claro. Rola uma simbologia cristológica em Joe: também ele tem uma dupla natureza, pela qual será caçado e martirizado, aos 33 anos (e sob o nome de Christmas/Natal). O desfecho é um prodígio estilístico, um turbilhão quase insuportável de voltagem emocional e gravidade moral, cujo impacto deixou marcas em obras tão diferentes como Nas Trevas Exteriores, de Cormac McCarthy, O Homem Invisível, de Ralph Ellison e Amada, de Toni Morrison. Os supremacistas brancos do Sul ainda hoje não engolem Faulkner, que lhes esfregou na cara verdades inconvenientes – e com um talento genial. Até muitos dos seus parentes o viam como um autor de “livros sujos para ianques”. Mas quem ri por último, ri melhor. Agora, em sua cidade adotiva de Oxford, Faulkner é uma atração turística. Quando tantas estátuas de confederados são derrubadas, a dele continua impávida na praça da Prefeitura. Um homem de mármore alinhado diante do tribunal municipal, parecendo que sempre esteve lá e sempre estará. Bem-feito para os supremacistas. Sobra mais.  *PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

William Faulkner era uma figuraça. Escreveu o polifônico Enquanto Agonizo em seis semanas, trabalhando nos Correios do Mississipi. Mas assim até eu: o único jeito de obter a correspondência era fuçar na lata de lixo dos fundos, pois Faulkner jogava tudo fora sem abrir as sacolas. Não era muito chegado em cartas. Quando morreu, em 1962, deixou pilhas de correspondência que nunca abrira. Sinceridade? Só abria as que lhe mandavam os editores, e com cautela: rasgava a fímbria do envelope e o sacudia para ver se assomava um cheque. Não? Que o remetente esperasse sentado. Faulkner é da tribo “gótico-sulista”, a par de Carson McCullers, Flannery O’Connor. Uma poética não para frouxos: os personagens se suicidam ou se castram, cometem incesto, lincham. Em Faulkner, todo esse vórtice se desenrola num condado que ele imaginou (e cujo mapa desenhou), Yoknapatawpha, com a também fictícia cidade de Jefferson.

O escritor norte-americno William Faulkner, vencedor do Nobel de Literatura Foto: New Films International/Companhia das Letras

Culto mas autodidata, resmungou: “Nunca li Freud. Mas tampouco Shakespeare o leu. Duvido que Melville o tenha lido”. Mas há vários Faulkner, um dos autores mais aclamados das letras americanas: Nobel, dois Pulitzers. Em 1945, Sartre disse que para os jovens na França “Faulkner c'est un dieu”. Por outro lado, foi olimpicamente esnobado até seu sexto romance (Santuário), com obras encalhadas e mofando fora do prelo.  Os tema explícitos de Faulkner eram a Guerra Civil americana, as tradições sulistas (majestosas e medonhas), o estigma da escravidão e a ‘angst’ moderna. Daí a questão: como essa obra se apruma na era do Black Lives Matter, da condenação do assassino de George Floyd e em que monumentos confederados são demolidos? Por isso mesmo, saíram dois livros importantes sobre ele: a biografia colossal (dois volumes) de Carl Rollyson e o de Michael Gorra sobre o efeito da Guerra da Secessão na criação faulkneriana: The Saddest Words.  Em 1956, Faulkner disse a um jornalista que se opunha tanto à integração compulsória como à segregação. Foi durante a tentativa de Autherine Lucy, uma jovem negra, de se matricular na Universidade do Alabama. Os motins proliferaram e ela foi convidada a deixar a escola e depois expulsa. Admiradores negros de Faulkner, como Ralph Ellisson e Langston Hughes, lamentaram as palavras do colega. Faulkner retratou-se imediatamente, alegando que estava de porre durante a entrevista (odiava jornalistas e era alcoólatra), e comentou o linchamento de Emmett Till, afro-americano de 14 anos, acusado de ofender uma branca: “Nenhum homem sóbrio diria o que eu disse. Se nós, na América, chegamos ao ponto em que devemos assassinar crianças, não importa por que razão ou cor, não merecemos sobreviver e provavelmente não sobreviveremos”. Em seus romances, Faulkner disseca a loucura coletiva da resistência sulista à abolição – ainda que raramente descreva a Guerra Civil. Dos seus 20 livros, só Os Inconquistados se situa em 1860. Porém, como diz um personagem memorável do autor: “O passado nunca está morto. Não é nem passado.” Após a Emancipação, no sul profundo os libertos muitas vezes trabalharam para seus antigos senhores em condições não muito diferentes da escravidão. Prevalecia o terrorismo de supremacia branca, mesmo antes de as leis Jim Crow de 1870 legalizarem a segregação. Para brancos pobres, como a família Bundren (protagonistas da obra-prima Enquanto Agonizo), o “mundo continua preso no tempo” porque “nunca houve dinheiro para fazer nada de novo”. E para os descendentes da aristocracia rural decadente, como os Compson (em O Som e a Fúria e Absalão, Absalão!), o pós-guerra destila uma erosão tóxica e inexorável. A guerra para Faulkner é um eterno retorno Escritores populares, como Margaret Mitchell, tentaram reviver a nostalgia das grandes plantações, contrastando versões idílicas do Sul agrário com as devastações culturais e ecológicas da modernidade industrial. Faulkner não pagou esse mico: virou o maior cronista da culpa branca – se seu território era o lado errado da história, ele cartografou cada milímetro dele, expondo por exemplo os estupros das escravas pelos senhores, que geravam bastardos também escravizados.  Houve quem observasse sobre os últimos e reacionários anos de Tolstoi, que incluem Anna Karenina: “Há romances mais inteligentes que seus autores”. Mas Faulkner sempre foi lúcido nas denúncias dilacerantes. Como na epígrafe de Luz de Agosto, que chega amanhã às livrarias: “Querido Deus, deixe-me ser amaldiçoado um pouco mais, um pouco mais”.Luz de Agosto (1932) é o meu romance favorito de Faulkner. Tecnicamente, é o mais equilibrado, manipulando com astúcia as inovações de James Joyce: fluxo da consciência, cronologia caleidoscópica, rodízio de narradores e oralidade febril. A trama é durante a Lei Seca.  A primeira parte mostra a busca de Lena Grove, uma jovem branca grávida, pelo pai do seu filho. A segunda é monopolizada por Joe Christmas, um homem de raça indeterminada que julga ser negro, apesar de parecer branco. Os detalhes do seu nascimento são relatados vagamente e por narradores pouco confiáveis – ele pode ser mestiço, mexicano ou branco. E essa indefinição contém o pilar do livro e a ironia trágica da experiência norte-americana: uma nação construída e definida por categorias raciais que, cientificamente falando, nem sequer existem. Para desgosto dos supremacistas brancos e dos racialistas em geral, geneticamente o conceito de raça é uma abobrinha obsoleta. Para todos os efeitos, um SS nazista e um rabino são gêmeos – menos na humanidade, claro. Rola uma simbologia cristológica em Joe: também ele tem uma dupla natureza, pela qual será caçado e martirizado, aos 33 anos (e sob o nome de Christmas/Natal). O desfecho é um prodígio estilístico, um turbilhão quase insuportável de voltagem emocional e gravidade moral, cujo impacto deixou marcas em obras tão diferentes como Nas Trevas Exteriores, de Cormac McCarthy, O Homem Invisível, de Ralph Ellison e Amada, de Toni Morrison. Os supremacistas brancos do Sul ainda hoje não engolem Faulkner, que lhes esfregou na cara verdades inconvenientes – e com um talento genial. Até muitos dos seus parentes o viam como um autor de “livros sujos para ianques”. Mas quem ri por último, ri melhor. Agora, em sua cidade adotiva de Oxford, Faulkner é uma atração turística. Quando tantas estátuas de confederados são derrubadas, a dele continua impávida na praça da Prefeitura. Um homem de mármore alinhado diante do tribunal municipal, parecendo que sempre esteve lá e sempre estará. Bem-feito para os supremacistas. Sobra mais.  *PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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