'Macunaíma' completa 90 anos como marco do modernismo


Rapsódia de Mário de Andrade marcou ruptura entre o autor e Oswald de Andrade

Por Silviano Santiago

Neste ano, comemoramos os 90 anos da publicação de Macunaíma. Talvez seja justo aproveitar o momento para assinalar o que pode ter mudado na leitura e na avaliação da prosa vanguardista de Mário de Andrade. Ajuda-nos – e muito – lembrar outra publicação nonagenária, o Manifesto Antropófago, assinado pelo companheiro modernista Oswald de Andrade. Tentarei especular menos sobre a semelhança e mais sobre a diferença entre os dois projetos nonagenários. 

Cena de 'Macunaíma' (1969), adaptação de Joaquim Pedro de Andrade da rapsódia de Mário de Andrade Foto: Condor Filmes

Parto do pressuposto de que a tradição crítica e a historiografia sempre trouxeram o romance e o manifesto amarrados, como a S. Cosme e S. Damião a patrulhar as ruas cariocas. Sem querer exagerar e, obviamente, exagerando, minha especulação vai se escapar pelos irmãos Abel e Caim, para permanecer no campo das duplas que alimentam a religiosidade popular. Aviso. Quero especular pouco, ou nada, sobre o explosivo relacionamento pessoal entre os dois escritores durante a década de 1920. Lego a matéria aos biógrafos de plantão. Contento-me com a leitura de variados textos da primeira década do movimento modernista.

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A fraternidade inicial entre Abel e Caim tem local e data. Genealogicamente falando, em meados da década de 1920 os escritores responsáveis pelos dois textos nonagenários passam a prezar menos a Primeira Semana de Arte Moderna e mais a Segunda Semana de Arte Moderna. Explico-me.

A primeira semana está em todos os manuais. Ela se dá em 1922, durante o carnaval, em São Paulo. A segunda se dá em 1924, durante a Semana Santa, na viagem que os modernistas fazem às cidades históricas de Minas Gerais. Na primeira dominam os ideais futuristas do italiano Marinetti. Na segunda, a descoberta tardia da tradição barroca mineira. As novas ideias sobre a futura brasilidade nas artes ganham peso e sentido histórico no intervalo entre metrópole (SP) e cidade-monumento (MG), entre festa pagã (Carnaval) e solenidade religiosa (Semana Santa). Entre os princípios da vanguarda histórica europeia e os valores da tradição nacional, entre arrogância e humildade, entre cosmopolitismo e nacionalismo.

Brito Broca foi o primeiro a salientar a diferença que, no decorrer do Modernismo, significa a produção artística na festa pagã e na comemoração cristã. Cito o ensaio de 1952: “Antes de tudo, o que merece reparo, nessa viagem é a atitude paradoxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, [o suíço Blaise Cendrars], o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam.”

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Macunaíma e o Manifesto são então fraternos. A novidade e a originalidade vanguardistas estão também na permanência do passado nacional. Cavalcanti Proença é o primeiro a garantir que, para escrever Macunaíma, Mário de Andrade se serve copiosamente das lendas indígenas coletadas por etnógrafo alemão Koch-Grünberg. Serve-se também do Capistrano de Abreu linguista, do Couto de Magalhães de O Selvagem e da carta de Pero Vaz de Caminha. Já aí surge uma ponta de Caim, para retomar a expressão “uma ponta de Iago” que nos ajudou a explicar a originalidade de Dom Casmurro.

Mário, à diferença de Oswald, é um excelente leitor, no sentido moderno da palavra. É menos exegeta e mais criador. É meticuloso e possessivo. Cuidadoso, exagerado e atrevido. Faz pastiche e faz paródia. É copista de primeira e incômodo transgressor. Com muita coragem na ponta da caneta, plagia sem vergonha na cara. A crônica A Raimundo Moraes, que ele escreve e publica no Diário Nacional, no dia 20 de setembro de 1931, estabelece os parâmetros para o plágio, primeiro mandamento da arte poética andradina. Ao divulgar que os “maldizentes” afirmam que Macunaíma é todo inspirado no Vom Roraima Zum Orinoco, do etnógrafo Koch-Grünberg, Raimundo Moraes, especialista em temas amazonenses, diz estar defendendo Mário das acusações de plágio. Sua boa intenção, afirma Raimundo, é a de desfazer o “boato” de que Mário copia. Ele conhece bem o romancista patrício e sabe que ele possui talento e imaginação. Dispensa inspirações estranhas.

Mário/Caim é ferino no contragolpe. Vale-se do jornal para dizer que o bem-intencionado Raimundo “garante o boato, pra garantir com incontestável exagero, o meu valor.”

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Toca ao macunaímico romancista explicitar o primeiro mandamento da arte poética: “Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o Sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.” 

Chegamos ao pomo da discórdia entre Abel e Caim. O erro gramatical e sintático na obra de arte modernista. A questão é trabalhada por Oswald de Andrade em poema da Poesia Pau-Brasil, de 1925. Lembre-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.” O poema se complementa com aforismo ao estilo nietzschiano que se encontra ao final da coleção de poemas: “A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.”

Nas respectivas artes poéticas, os modernistas colocam de maneira esplêndida o sentido da aprendizagem artística. Ela tem de se dar fora dos limites empobrecedores da formação educacional em vigor e dentro da noção transgressiva de erro popular. A pedagogia de então, tanto a posta em prática pela família burguesa quanto a exercida pelos professores, não conduz o jovem à “instrução”. Ela embota a sensibilidade, a imaginação e a inteligência, impedindo a autenticidade da expressão subjetiva. O verdadeiro aprendizado começa por um processo de “desinstrução”. O jovem artista tem de desaprender o que tinha aprendido. Mário detecta um perigo nessa atitude. Pode-se cair numa espécie de teologia às avessas. O considerado e dado como erro é o certo. O considerado e dado como certo é o erro. Hoje, há prova concreta de que Mário era crítico do erro popular como contribuição milionária.

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Logo depois da publicação do volume Poesia Pau-Brasil, o nosso Mário faz a resenha do livro do amigo. O longo e circunstanciado texto não foi publicado na época. Uma primeira leitura da resenha estatela aos olhos o fato de que o texto não poderia ter sido publicado naquele momento. É irônico por demais. Zomba e ri de poemas e ideias. Escancara as limitações intelectuais de Oswald de Andrade. Mário observa que o poeta Oswald de Andrade “carecia tomar um pouquinho de cuidado e não cair no brinquedo fácil à flor da pele. Não ficar na pândega da superfície”. Em seguida, alerta para o fato de que Oswald “está brincando com micróbios perigosos”. A metáfora micróbio como sinônimo de doença à vista é normal na imaginação andradina, tomada desde sempre por fobias. Não é ela que é importante. Importa é notar a dicotomia que Mário estabelece para implodir a generalização comodista. Há limites na vulgarização do erro popular. Por que Oswald não abandona o comodismo do achado feliz? Nem todo erro popular deve ser automaticamente aceito pelo artista. Há erros e erros. 

A contrapartida da generalização do erro como contribuição milionária à arte – e Mário cita Oswald – é “a alegria da ignorância que descobre”. Alto lá, diz Mário. Existe também e paralelamente, e ainda cito Mário, “a alegria da sabença que descobre”. E continua: “e a da sabença que verifica”. Na constatação de Oswald, Mário substitui ignorância por sabença. Escreve Mário na resenha de Poesia Pau-Brasil: “Preconceitos pró ou contra erudição não valem um derréis. O difícil é saber saber.”

Para exemplificar o modo como pensa o saber saber, Mário de Andrade vai recorrer aos contemporâneos que trabalham as artes plásticas (Tarsila do Amaral) ou aos que se entregam à criação musical (os cantadores nordestinos). Curiosa essa sensação não de repúdio à literatura enquanto tal, mas de opção por processo de descentramento da arte literária das fontes eruditas tradicionais. A pintora Tarsila será a grande professora (no sentido amplo da palavra) de Mário de Andrade. Ao final da já citada resenha, Mário comenta seu trabalho, indicando a busca da linguagem pela artista que deve, antes de mais, saber saber. Cito trecho: “não repete nem imita todos os erros da pintura popular, escolhe com inteligência os fecundos, os que não são erros e se serve deles.” Tarsila se vale, diz Mário lembrando-se da viagem às cidades históricas de Minas, da tela corrediça da matriz de Tiradentes, dos primitivos italianos de Siena e da invenção mais recente de Picasso.

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Não é justa a classificação de Macunaíma como romance. Gilda de Melo e Souza é a primeira leitora a adotar o termo “rapsódia” para caracterizá-lo. Justifica-se com a composição musical adotada pelo autor e por romancistas do porte de André Gide (a arte da fuga) e Aldous Huxley (o contraponto). Justifica-se também com a fatura original do texto e com os ensinamentos do musicólogo Mário de Andrade sobre a música erudita e a popular brasileira. Para tal, Gilda retoma a ideia de cópia, desenvolvida audaciosamente por Mário na carta a Raimundo de Moraes.

Releiamos, primeiro, algumas passagens sobre a criação musical em Mário tendo como pano de fundo o fato de que devem ser tomadas como metáfora para Macunaíma. A respeito dos cantores nordestinos Chico Antônio e Odilon, do seu interesse pessoal, Mário observa: “O processo comum de decorar uma melodia tradicional, como de inventar uma nova consistia em desnivelar a melodia tornando-a bem simples para que ela se fixasse na memória. Mas depois de fixada em seu esquema inicial, o cantador se esmerava de novo em elevá-la de nível, individualizá-la em variações, dum legítimo canto ‘hot’”. E o crítico continua: “Sabida fixamente a melodia fácil e esquemática, então o cantador principia cantando ‘hot’, fantasiando, glosando outra vez, mas conscientemente agora, com a intenção de variar e enfeitar. Até que atingido outra vez a possessão, o cantador inventa um canto inteiramente novo.” *Silviano Santiago é crítico, ensaísta e autor, entre outros, de 'Machado' e 'Mil Rosas Roubadas', ambos publicados pela Companhia das Letras

Neste ano, comemoramos os 90 anos da publicação de Macunaíma. Talvez seja justo aproveitar o momento para assinalar o que pode ter mudado na leitura e na avaliação da prosa vanguardista de Mário de Andrade. Ajuda-nos – e muito – lembrar outra publicação nonagenária, o Manifesto Antropófago, assinado pelo companheiro modernista Oswald de Andrade. Tentarei especular menos sobre a semelhança e mais sobre a diferença entre os dois projetos nonagenários. 

Cena de 'Macunaíma' (1969), adaptação de Joaquim Pedro de Andrade da rapsódia de Mário de Andrade Foto: Condor Filmes

Parto do pressuposto de que a tradição crítica e a historiografia sempre trouxeram o romance e o manifesto amarrados, como a S. Cosme e S. Damião a patrulhar as ruas cariocas. Sem querer exagerar e, obviamente, exagerando, minha especulação vai se escapar pelos irmãos Abel e Caim, para permanecer no campo das duplas que alimentam a religiosidade popular. Aviso. Quero especular pouco, ou nada, sobre o explosivo relacionamento pessoal entre os dois escritores durante a década de 1920. Lego a matéria aos biógrafos de plantão. Contento-me com a leitura de variados textos da primeira década do movimento modernista.

A fraternidade inicial entre Abel e Caim tem local e data. Genealogicamente falando, em meados da década de 1920 os escritores responsáveis pelos dois textos nonagenários passam a prezar menos a Primeira Semana de Arte Moderna e mais a Segunda Semana de Arte Moderna. Explico-me.

A primeira semana está em todos os manuais. Ela se dá em 1922, durante o carnaval, em São Paulo. A segunda se dá em 1924, durante a Semana Santa, na viagem que os modernistas fazem às cidades históricas de Minas Gerais. Na primeira dominam os ideais futuristas do italiano Marinetti. Na segunda, a descoberta tardia da tradição barroca mineira. As novas ideias sobre a futura brasilidade nas artes ganham peso e sentido histórico no intervalo entre metrópole (SP) e cidade-monumento (MG), entre festa pagã (Carnaval) e solenidade religiosa (Semana Santa). Entre os princípios da vanguarda histórica europeia e os valores da tradição nacional, entre arrogância e humildade, entre cosmopolitismo e nacionalismo.

Brito Broca foi o primeiro a salientar a diferença que, no decorrer do Modernismo, significa a produção artística na festa pagã e na comemoração cristã. Cito o ensaio de 1952: “Antes de tudo, o que merece reparo, nessa viagem é a atitude paradoxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, [o suíço Blaise Cendrars], o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam.”

Macunaíma e o Manifesto são então fraternos. A novidade e a originalidade vanguardistas estão também na permanência do passado nacional. Cavalcanti Proença é o primeiro a garantir que, para escrever Macunaíma, Mário de Andrade se serve copiosamente das lendas indígenas coletadas por etnógrafo alemão Koch-Grünberg. Serve-se também do Capistrano de Abreu linguista, do Couto de Magalhães de O Selvagem e da carta de Pero Vaz de Caminha. Já aí surge uma ponta de Caim, para retomar a expressão “uma ponta de Iago” que nos ajudou a explicar a originalidade de Dom Casmurro.

Mário, à diferença de Oswald, é um excelente leitor, no sentido moderno da palavra. É menos exegeta e mais criador. É meticuloso e possessivo. Cuidadoso, exagerado e atrevido. Faz pastiche e faz paródia. É copista de primeira e incômodo transgressor. Com muita coragem na ponta da caneta, plagia sem vergonha na cara. A crônica A Raimundo Moraes, que ele escreve e publica no Diário Nacional, no dia 20 de setembro de 1931, estabelece os parâmetros para o plágio, primeiro mandamento da arte poética andradina. Ao divulgar que os “maldizentes” afirmam que Macunaíma é todo inspirado no Vom Roraima Zum Orinoco, do etnógrafo Koch-Grünberg, Raimundo Moraes, especialista em temas amazonenses, diz estar defendendo Mário das acusações de plágio. Sua boa intenção, afirma Raimundo, é a de desfazer o “boato” de que Mário copia. Ele conhece bem o romancista patrício e sabe que ele possui talento e imaginação. Dispensa inspirações estranhas.

Mário/Caim é ferino no contragolpe. Vale-se do jornal para dizer que o bem-intencionado Raimundo “garante o boato, pra garantir com incontestável exagero, o meu valor.”

Toca ao macunaímico romancista explicitar o primeiro mandamento da arte poética: “Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o Sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.” 

Chegamos ao pomo da discórdia entre Abel e Caim. O erro gramatical e sintático na obra de arte modernista. A questão é trabalhada por Oswald de Andrade em poema da Poesia Pau-Brasil, de 1925. Lembre-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.” O poema se complementa com aforismo ao estilo nietzschiano que se encontra ao final da coleção de poemas: “A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.”

Nas respectivas artes poéticas, os modernistas colocam de maneira esplêndida o sentido da aprendizagem artística. Ela tem de se dar fora dos limites empobrecedores da formação educacional em vigor e dentro da noção transgressiva de erro popular. A pedagogia de então, tanto a posta em prática pela família burguesa quanto a exercida pelos professores, não conduz o jovem à “instrução”. Ela embota a sensibilidade, a imaginação e a inteligência, impedindo a autenticidade da expressão subjetiva. O verdadeiro aprendizado começa por um processo de “desinstrução”. O jovem artista tem de desaprender o que tinha aprendido. Mário detecta um perigo nessa atitude. Pode-se cair numa espécie de teologia às avessas. O considerado e dado como erro é o certo. O considerado e dado como certo é o erro. Hoje, há prova concreta de que Mário era crítico do erro popular como contribuição milionária.

Logo depois da publicação do volume Poesia Pau-Brasil, o nosso Mário faz a resenha do livro do amigo. O longo e circunstanciado texto não foi publicado na época. Uma primeira leitura da resenha estatela aos olhos o fato de que o texto não poderia ter sido publicado naquele momento. É irônico por demais. Zomba e ri de poemas e ideias. Escancara as limitações intelectuais de Oswald de Andrade. Mário observa que o poeta Oswald de Andrade “carecia tomar um pouquinho de cuidado e não cair no brinquedo fácil à flor da pele. Não ficar na pândega da superfície”. Em seguida, alerta para o fato de que Oswald “está brincando com micróbios perigosos”. A metáfora micróbio como sinônimo de doença à vista é normal na imaginação andradina, tomada desde sempre por fobias. Não é ela que é importante. Importa é notar a dicotomia que Mário estabelece para implodir a generalização comodista. Há limites na vulgarização do erro popular. Por que Oswald não abandona o comodismo do achado feliz? Nem todo erro popular deve ser automaticamente aceito pelo artista. Há erros e erros. 

A contrapartida da generalização do erro como contribuição milionária à arte – e Mário cita Oswald – é “a alegria da ignorância que descobre”. Alto lá, diz Mário. Existe também e paralelamente, e ainda cito Mário, “a alegria da sabença que descobre”. E continua: “e a da sabença que verifica”. Na constatação de Oswald, Mário substitui ignorância por sabença. Escreve Mário na resenha de Poesia Pau-Brasil: “Preconceitos pró ou contra erudição não valem um derréis. O difícil é saber saber.”

Para exemplificar o modo como pensa o saber saber, Mário de Andrade vai recorrer aos contemporâneos que trabalham as artes plásticas (Tarsila do Amaral) ou aos que se entregam à criação musical (os cantadores nordestinos). Curiosa essa sensação não de repúdio à literatura enquanto tal, mas de opção por processo de descentramento da arte literária das fontes eruditas tradicionais. A pintora Tarsila será a grande professora (no sentido amplo da palavra) de Mário de Andrade. Ao final da já citada resenha, Mário comenta seu trabalho, indicando a busca da linguagem pela artista que deve, antes de mais, saber saber. Cito trecho: “não repete nem imita todos os erros da pintura popular, escolhe com inteligência os fecundos, os que não são erros e se serve deles.” Tarsila se vale, diz Mário lembrando-se da viagem às cidades históricas de Minas, da tela corrediça da matriz de Tiradentes, dos primitivos italianos de Siena e da invenção mais recente de Picasso.

Não é justa a classificação de Macunaíma como romance. Gilda de Melo e Souza é a primeira leitora a adotar o termo “rapsódia” para caracterizá-lo. Justifica-se com a composição musical adotada pelo autor e por romancistas do porte de André Gide (a arte da fuga) e Aldous Huxley (o contraponto). Justifica-se também com a fatura original do texto e com os ensinamentos do musicólogo Mário de Andrade sobre a música erudita e a popular brasileira. Para tal, Gilda retoma a ideia de cópia, desenvolvida audaciosamente por Mário na carta a Raimundo de Moraes.

Releiamos, primeiro, algumas passagens sobre a criação musical em Mário tendo como pano de fundo o fato de que devem ser tomadas como metáfora para Macunaíma. A respeito dos cantores nordestinos Chico Antônio e Odilon, do seu interesse pessoal, Mário observa: “O processo comum de decorar uma melodia tradicional, como de inventar uma nova consistia em desnivelar a melodia tornando-a bem simples para que ela se fixasse na memória. Mas depois de fixada em seu esquema inicial, o cantador se esmerava de novo em elevá-la de nível, individualizá-la em variações, dum legítimo canto ‘hot’”. E o crítico continua: “Sabida fixamente a melodia fácil e esquemática, então o cantador principia cantando ‘hot’, fantasiando, glosando outra vez, mas conscientemente agora, com a intenção de variar e enfeitar. Até que atingido outra vez a possessão, o cantador inventa um canto inteiramente novo.” *Silviano Santiago é crítico, ensaísta e autor, entre outros, de 'Machado' e 'Mil Rosas Roubadas', ambos publicados pela Companhia das Letras

Neste ano, comemoramos os 90 anos da publicação de Macunaíma. Talvez seja justo aproveitar o momento para assinalar o que pode ter mudado na leitura e na avaliação da prosa vanguardista de Mário de Andrade. Ajuda-nos – e muito – lembrar outra publicação nonagenária, o Manifesto Antropófago, assinado pelo companheiro modernista Oswald de Andrade. Tentarei especular menos sobre a semelhança e mais sobre a diferença entre os dois projetos nonagenários. 

Cena de 'Macunaíma' (1969), adaptação de Joaquim Pedro de Andrade da rapsódia de Mário de Andrade Foto: Condor Filmes

Parto do pressuposto de que a tradição crítica e a historiografia sempre trouxeram o romance e o manifesto amarrados, como a S. Cosme e S. Damião a patrulhar as ruas cariocas. Sem querer exagerar e, obviamente, exagerando, minha especulação vai se escapar pelos irmãos Abel e Caim, para permanecer no campo das duplas que alimentam a religiosidade popular. Aviso. Quero especular pouco, ou nada, sobre o explosivo relacionamento pessoal entre os dois escritores durante a década de 1920. Lego a matéria aos biógrafos de plantão. Contento-me com a leitura de variados textos da primeira década do movimento modernista.

A fraternidade inicial entre Abel e Caim tem local e data. Genealogicamente falando, em meados da década de 1920 os escritores responsáveis pelos dois textos nonagenários passam a prezar menos a Primeira Semana de Arte Moderna e mais a Segunda Semana de Arte Moderna. Explico-me.

A primeira semana está em todos os manuais. Ela se dá em 1922, durante o carnaval, em São Paulo. A segunda se dá em 1924, durante a Semana Santa, na viagem que os modernistas fazem às cidades históricas de Minas Gerais. Na primeira dominam os ideais futuristas do italiano Marinetti. Na segunda, a descoberta tardia da tradição barroca mineira. As novas ideias sobre a futura brasilidade nas artes ganham peso e sentido histórico no intervalo entre metrópole (SP) e cidade-monumento (MG), entre festa pagã (Carnaval) e solenidade religiosa (Semana Santa). Entre os princípios da vanguarda histórica europeia e os valores da tradição nacional, entre arrogância e humildade, entre cosmopolitismo e nacionalismo.

Brito Broca foi o primeiro a salientar a diferença que, no decorrer do Modernismo, significa a produção artística na festa pagã e na comemoração cristã. Cito o ensaio de 1952: “Antes de tudo, o que merece reparo, nessa viagem é a atitude paradoxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, [o suíço Blaise Cendrars], o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam.”

Macunaíma e o Manifesto são então fraternos. A novidade e a originalidade vanguardistas estão também na permanência do passado nacional. Cavalcanti Proença é o primeiro a garantir que, para escrever Macunaíma, Mário de Andrade se serve copiosamente das lendas indígenas coletadas por etnógrafo alemão Koch-Grünberg. Serve-se também do Capistrano de Abreu linguista, do Couto de Magalhães de O Selvagem e da carta de Pero Vaz de Caminha. Já aí surge uma ponta de Caim, para retomar a expressão “uma ponta de Iago” que nos ajudou a explicar a originalidade de Dom Casmurro.

Mário, à diferença de Oswald, é um excelente leitor, no sentido moderno da palavra. É menos exegeta e mais criador. É meticuloso e possessivo. Cuidadoso, exagerado e atrevido. Faz pastiche e faz paródia. É copista de primeira e incômodo transgressor. Com muita coragem na ponta da caneta, plagia sem vergonha na cara. A crônica A Raimundo Moraes, que ele escreve e publica no Diário Nacional, no dia 20 de setembro de 1931, estabelece os parâmetros para o plágio, primeiro mandamento da arte poética andradina. Ao divulgar que os “maldizentes” afirmam que Macunaíma é todo inspirado no Vom Roraima Zum Orinoco, do etnógrafo Koch-Grünberg, Raimundo Moraes, especialista em temas amazonenses, diz estar defendendo Mário das acusações de plágio. Sua boa intenção, afirma Raimundo, é a de desfazer o “boato” de que Mário copia. Ele conhece bem o romancista patrício e sabe que ele possui talento e imaginação. Dispensa inspirações estranhas.

Mário/Caim é ferino no contragolpe. Vale-se do jornal para dizer que o bem-intencionado Raimundo “garante o boato, pra garantir com incontestável exagero, o meu valor.”

Toca ao macunaímico romancista explicitar o primeiro mandamento da arte poética: “Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o Sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.” 

Chegamos ao pomo da discórdia entre Abel e Caim. O erro gramatical e sintático na obra de arte modernista. A questão é trabalhada por Oswald de Andrade em poema da Poesia Pau-Brasil, de 1925. Lembre-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.” O poema se complementa com aforismo ao estilo nietzschiano que se encontra ao final da coleção de poemas: “A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.”

Nas respectivas artes poéticas, os modernistas colocam de maneira esplêndida o sentido da aprendizagem artística. Ela tem de se dar fora dos limites empobrecedores da formação educacional em vigor e dentro da noção transgressiva de erro popular. A pedagogia de então, tanto a posta em prática pela família burguesa quanto a exercida pelos professores, não conduz o jovem à “instrução”. Ela embota a sensibilidade, a imaginação e a inteligência, impedindo a autenticidade da expressão subjetiva. O verdadeiro aprendizado começa por um processo de “desinstrução”. O jovem artista tem de desaprender o que tinha aprendido. Mário detecta um perigo nessa atitude. Pode-se cair numa espécie de teologia às avessas. O considerado e dado como erro é o certo. O considerado e dado como certo é o erro. Hoje, há prova concreta de que Mário era crítico do erro popular como contribuição milionária.

Logo depois da publicação do volume Poesia Pau-Brasil, o nosso Mário faz a resenha do livro do amigo. O longo e circunstanciado texto não foi publicado na época. Uma primeira leitura da resenha estatela aos olhos o fato de que o texto não poderia ter sido publicado naquele momento. É irônico por demais. Zomba e ri de poemas e ideias. Escancara as limitações intelectuais de Oswald de Andrade. Mário observa que o poeta Oswald de Andrade “carecia tomar um pouquinho de cuidado e não cair no brinquedo fácil à flor da pele. Não ficar na pândega da superfície”. Em seguida, alerta para o fato de que Oswald “está brincando com micróbios perigosos”. A metáfora micróbio como sinônimo de doença à vista é normal na imaginação andradina, tomada desde sempre por fobias. Não é ela que é importante. Importa é notar a dicotomia que Mário estabelece para implodir a generalização comodista. Há limites na vulgarização do erro popular. Por que Oswald não abandona o comodismo do achado feliz? Nem todo erro popular deve ser automaticamente aceito pelo artista. Há erros e erros. 

A contrapartida da generalização do erro como contribuição milionária à arte – e Mário cita Oswald – é “a alegria da ignorância que descobre”. Alto lá, diz Mário. Existe também e paralelamente, e ainda cito Mário, “a alegria da sabença que descobre”. E continua: “e a da sabença que verifica”. Na constatação de Oswald, Mário substitui ignorância por sabença. Escreve Mário na resenha de Poesia Pau-Brasil: “Preconceitos pró ou contra erudição não valem um derréis. O difícil é saber saber.”

Para exemplificar o modo como pensa o saber saber, Mário de Andrade vai recorrer aos contemporâneos que trabalham as artes plásticas (Tarsila do Amaral) ou aos que se entregam à criação musical (os cantadores nordestinos). Curiosa essa sensação não de repúdio à literatura enquanto tal, mas de opção por processo de descentramento da arte literária das fontes eruditas tradicionais. A pintora Tarsila será a grande professora (no sentido amplo da palavra) de Mário de Andrade. Ao final da já citada resenha, Mário comenta seu trabalho, indicando a busca da linguagem pela artista que deve, antes de mais, saber saber. Cito trecho: “não repete nem imita todos os erros da pintura popular, escolhe com inteligência os fecundos, os que não são erros e se serve deles.” Tarsila se vale, diz Mário lembrando-se da viagem às cidades históricas de Minas, da tela corrediça da matriz de Tiradentes, dos primitivos italianos de Siena e da invenção mais recente de Picasso.

Não é justa a classificação de Macunaíma como romance. Gilda de Melo e Souza é a primeira leitora a adotar o termo “rapsódia” para caracterizá-lo. Justifica-se com a composição musical adotada pelo autor e por romancistas do porte de André Gide (a arte da fuga) e Aldous Huxley (o contraponto). Justifica-se também com a fatura original do texto e com os ensinamentos do musicólogo Mário de Andrade sobre a música erudita e a popular brasileira. Para tal, Gilda retoma a ideia de cópia, desenvolvida audaciosamente por Mário na carta a Raimundo de Moraes.

Releiamos, primeiro, algumas passagens sobre a criação musical em Mário tendo como pano de fundo o fato de que devem ser tomadas como metáfora para Macunaíma. A respeito dos cantores nordestinos Chico Antônio e Odilon, do seu interesse pessoal, Mário observa: “O processo comum de decorar uma melodia tradicional, como de inventar uma nova consistia em desnivelar a melodia tornando-a bem simples para que ela se fixasse na memória. Mas depois de fixada em seu esquema inicial, o cantador se esmerava de novo em elevá-la de nível, individualizá-la em variações, dum legítimo canto ‘hot’”. E o crítico continua: “Sabida fixamente a melodia fácil e esquemática, então o cantador principia cantando ‘hot’, fantasiando, glosando outra vez, mas conscientemente agora, com a intenção de variar e enfeitar. Até que atingido outra vez a possessão, o cantador inventa um canto inteiramente novo.” *Silviano Santiago é crítico, ensaísta e autor, entre outros, de 'Machado' e 'Mil Rosas Roubadas', ambos publicados pela Companhia das Letras

Neste ano, comemoramos os 90 anos da publicação de Macunaíma. Talvez seja justo aproveitar o momento para assinalar o que pode ter mudado na leitura e na avaliação da prosa vanguardista de Mário de Andrade. Ajuda-nos – e muito – lembrar outra publicação nonagenária, o Manifesto Antropófago, assinado pelo companheiro modernista Oswald de Andrade. Tentarei especular menos sobre a semelhança e mais sobre a diferença entre os dois projetos nonagenários. 

Cena de 'Macunaíma' (1969), adaptação de Joaquim Pedro de Andrade da rapsódia de Mário de Andrade Foto: Condor Filmes

Parto do pressuposto de que a tradição crítica e a historiografia sempre trouxeram o romance e o manifesto amarrados, como a S. Cosme e S. Damião a patrulhar as ruas cariocas. Sem querer exagerar e, obviamente, exagerando, minha especulação vai se escapar pelos irmãos Abel e Caim, para permanecer no campo das duplas que alimentam a religiosidade popular. Aviso. Quero especular pouco, ou nada, sobre o explosivo relacionamento pessoal entre os dois escritores durante a década de 1920. Lego a matéria aos biógrafos de plantão. Contento-me com a leitura de variados textos da primeira década do movimento modernista.

A fraternidade inicial entre Abel e Caim tem local e data. Genealogicamente falando, em meados da década de 1920 os escritores responsáveis pelos dois textos nonagenários passam a prezar menos a Primeira Semana de Arte Moderna e mais a Segunda Semana de Arte Moderna. Explico-me.

A primeira semana está em todos os manuais. Ela se dá em 1922, durante o carnaval, em São Paulo. A segunda se dá em 1924, durante a Semana Santa, na viagem que os modernistas fazem às cidades históricas de Minas Gerais. Na primeira dominam os ideais futuristas do italiano Marinetti. Na segunda, a descoberta tardia da tradição barroca mineira. As novas ideias sobre a futura brasilidade nas artes ganham peso e sentido histórico no intervalo entre metrópole (SP) e cidade-monumento (MG), entre festa pagã (Carnaval) e solenidade religiosa (Semana Santa). Entre os princípios da vanguarda histórica europeia e os valores da tradição nacional, entre arrogância e humildade, entre cosmopolitismo e nacionalismo.

Brito Broca foi o primeiro a salientar a diferença que, no decorrer do Modernismo, significa a produção artística na festa pagã e na comemoração cristã. Cito o ensaio de 1952: “Antes de tudo, o que merece reparo, nessa viagem é a atitude paradoxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro. E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os espíritos conformistas, [o suíço Blaise Cendrars], o que vão eles mostrar? As velhas cidades de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam.”

Macunaíma e o Manifesto são então fraternos. A novidade e a originalidade vanguardistas estão também na permanência do passado nacional. Cavalcanti Proença é o primeiro a garantir que, para escrever Macunaíma, Mário de Andrade se serve copiosamente das lendas indígenas coletadas por etnógrafo alemão Koch-Grünberg. Serve-se também do Capistrano de Abreu linguista, do Couto de Magalhães de O Selvagem e da carta de Pero Vaz de Caminha. Já aí surge uma ponta de Caim, para retomar a expressão “uma ponta de Iago” que nos ajudou a explicar a originalidade de Dom Casmurro.

Mário, à diferença de Oswald, é um excelente leitor, no sentido moderno da palavra. É menos exegeta e mais criador. É meticuloso e possessivo. Cuidadoso, exagerado e atrevido. Faz pastiche e faz paródia. É copista de primeira e incômodo transgressor. Com muita coragem na ponta da caneta, plagia sem vergonha na cara. A crônica A Raimundo Moraes, que ele escreve e publica no Diário Nacional, no dia 20 de setembro de 1931, estabelece os parâmetros para o plágio, primeiro mandamento da arte poética andradina. Ao divulgar que os “maldizentes” afirmam que Macunaíma é todo inspirado no Vom Roraima Zum Orinoco, do etnógrafo Koch-Grünberg, Raimundo Moraes, especialista em temas amazonenses, diz estar defendendo Mário das acusações de plágio. Sua boa intenção, afirma Raimundo, é a de desfazer o “boato” de que Mário copia. Ele conhece bem o romancista patrício e sabe que ele possui talento e imaginação. Dispensa inspirações estranhas.

Mário/Caim é ferino no contragolpe. Vale-se do jornal para dizer que o bem-intencionado Raimundo “garante o boato, pra garantir com incontestável exagero, o meu valor.”

Toca ao macunaímico romancista explicitar o primeiro mandamento da arte poética: “Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o Sr., na cena da Boiúna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente.” 

Chegamos ao pomo da discórdia entre Abel e Caim. O erro gramatical e sintático na obra de arte modernista. A questão é trabalhada por Oswald de Andrade em poema da Poesia Pau-Brasil, de 1925. Lembre-se Pronominais: “Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.” O poema se complementa com aforismo ao estilo nietzschiano que se encontra ao final da coleção de poemas: “A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.”

Nas respectivas artes poéticas, os modernistas colocam de maneira esplêndida o sentido da aprendizagem artística. Ela tem de se dar fora dos limites empobrecedores da formação educacional em vigor e dentro da noção transgressiva de erro popular. A pedagogia de então, tanto a posta em prática pela família burguesa quanto a exercida pelos professores, não conduz o jovem à “instrução”. Ela embota a sensibilidade, a imaginação e a inteligência, impedindo a autenticidade da expressão subjetiva. O verdadeiro aprendizado começa por um processo de “desinstrução”. O jovem artista tem de desaprender o que tinha aprendido. Mário detecta um perigo nessa atitude. Pode-se cair numa espécie de teologia às avessas. O considerado e dado como erro é o certo. O considerado e dado como certo é o erro. Hoje, há prova concreta de que Mário era crítico do erro popular como contribuição milionária.

Logo depois da publicação do volume Poesia Pau-Brasil, o nosso Mário faz a resenha do livro do amigo. O longo e circunstanciado texto não foi publicado na época. Uma primeira leitura da resenha estatela aos olhos o fato de que o texto não poderia ter sido publicado naquele momento. É irônico por demais. Zomba e ri de poemas e ideias. Escancara as limitações intelectuais de Oswald de Andrade. Mário observa que o poeta Oswald de Andrade “carecia tomar um pouquinho de cuidado e não cair no brinquedo fácil à flor da pele. Não ficar na pândega da superfície”. Em seguida, alerta para o fato de que Oswald “está brincando com micróbios perigosos”. A metáfora micróbio como sinônimo de doença à vista é normal na imaginação andradina, tomada desde sempre por fobias. Não é ela que é importante. Importa é notar a dicotomia que Mário estabelece para implodir a generalização comodista. Há limites na vulgarização do erro popular. Por que Oswald não abandona o comodismo do achado feliz? Nem todo erro popular deve ser automaticamente aceito pelo artista. Há erros e erros. 

A contrapartida da generalização do erro como contribuição milionária à arte – e Mário cita Oswald – é “a alegria da ignorância que descobre”. Alto lá, diz Mário. Existe também e paralelamente, e ainda cito Mário, “a alegria da sabença que descobre”. E continua: “e a da sabença que verifica”. Na constatação de Oswald, Mário substitui ignorância por sabença. Escreve Mário na resenha de Poesia Pau-Brasil: “Preconceitos pró ou contra erudição não valem um derréis. O difícil é saber saber.”

Para exemplificar o modo como pensa o saber saber, Mário de Andrade vai recorrer aos contemporâneos que trabalham as artes plásticas (Tarsila do Amaral) ou aos que se entregam à criação musical (os cantadores nordestinos). Curiosa essa sensação não de repúdio à literatura enquanto tal, mas de opção por processo de descentramento da arte literária das fontes eruditas tradicionais. A pintora Tarsila será a grande professora (no sentido amplo da palavra) de Mário de Andrade. Ao final da já citada resenha, Mário comenta seu trabalho, indicando a busca da linguagem pela artista que deve, antes de mais, saber saber. Cito trecho: “não repete nem imita todos os erros da pintura popular, escolhe com inteligência os fecundos, os que não são erros e se serve deles.” Tarsila se vale, diz Mário lembrando-se da viagem às cidades históricas de Minas, da tela corrediça da matriz de Tiradentes, dos primitivos italianos de Siena e da invenção mais recente de Picasso.

Não é justa a classificação de Macunaíma como romance. Gilda de Melo e Souza é a primeira leitora a adotar o termo “rapsódia” para caracterizá-lo. Justifica-se com a composição musical adotada pelo autor e por romancistas do porte de André Gide (a arte da fuga) e Aldous Huxley (o contraponto). Justifica-se também com a fatura original do texto e com os ensinamentos do musicólogo Mário de Andrade sobre a música erudita e a popular brasileira. Para tal, Gilda retoma a ideia de cópia, desenvolvida audaciosamente por Mário na carta a Raimundo de Moraes.

Releiamos, primeiro, algumas passagens sobre a criação musical em Mário tendo como pano de fundo o fato de que devem ser tomadas como metáfora para Macunaíma. A respeito dos cantores nordestinos Chico Antônio e Odilon, do seu interesse pessoal, Mário observa: “O processo comum de decorar uma melodia tradicional, como de inventar uma nova consistia em desnivelar a melodia tornando-a bem simples para que ela se fixasse na memória. Mas depois de fixada em seu esquema inicial, o cantador se esmerava de novo em elevá-la de nível, individualizá-la em variações, dum legítimo canto ‘hot’”. E o crítico continua: “Sabida fixamente a melodia fácil e esquemática, então o cantador principia cantando ‘hot’, fantasiando, glosando outra vez, mas conscientemente agora, com a intenção de variar e enfeitar. Até que atingido outra vez a possessão, o cantador inventa um canto inteiramente novo.” *Silviano Santiago é crítico, ensaísta e autor, entre outros, de 'Machado' e 'Mil Rosas Roubadas', ambos publicados pela Companhia das Letras

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