Serpentes, jacarés e homens coabitam as histórias contadas pelo coletivo indígena Mahku, povo que vive na fronteira entre o Acre e o Peru, e são o tema de nova exposição no Masp. Resultado de uma década de trabalho, com curadoria de Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu, e do curador-assistente Guilherme Giufrida, Mahku: Mirações está no segundo subsolo com um total de 108 trabalhos, entre desenhos, pinturas e esculturas. “A ideia do grupo é registrar, em plataformas duráveis, os rituais, mitos e cantos desse povo”, conta Giufrida durante a visita à exposição.
“Além da questão das pinturas, o coletivo sempre promove em suas exposições obras interativas, murais. Por isso, convidamos o Mahku a ocupar a rampa. Achamos que seria muito forte, nesse início do ano das Histórias Indígenas, abrir com o coletivo que já trabalha com pinturas de instalação em prédios, salas de aula, aeroportos. Enfim, já produziram muitas obras efêmeras, o que é bom, pois contraria a ideia de que a arte é uma mercadoria”, ressalta o curador-assistente.
E justamente um dos símbolos mais importantes do imaginário pictórico do Mahku é o que ocupa a escada que liga os dois andares – o imenso jacaré do mito Kapewë Pukeni que, na língua desse povo, significa jacaré-ponte. Diz a lenda que o animal era uma espécie de guardião ou ponte entre os dois continentes que havia quando a Terra estava na era da Pangeia.
Quem também faz essa representação é o artista Acelino Tuin Huni Kuin, do Mahku, na pintura Kopenawe Pukenibu, de 2022, um dos destaques da montagem. Na tela, o artista mostra o périplo dos Huni Kuin pelo estreito de Behring em busca de conhecimento, mantimentos e terra. Mas, no meio do caminho, não havia uma pedra, e sim o réptil de proporções gigantescas.
Para fazer a passagem ao outro continente, como conta a lenda, foi feito um acordo: a tribo arranjaria alimento para o jacaré que, em troca, ofereceria suas costas para uma passagem segura. Mas a região era de difícil acesso e o trajeto era longo, por causa do frio e das tempestades; assim, em dado momento, a comida acabou. Para não sacrificar os companheiros de viagem, restou à tribo recorrer a uma única espécie que ali estava, ainda filhote, um jacaré.
É aí que se dá o clímax: contra o canibalismo, o jacaré-passagem impôs que a única carne que não poderia ser comida era a de sua própria espécie. Fim do pacto: quando sentiu o gosto do filho caçado, o bicho submergiu na água, dando-se, assim, a separação entre os continentes – que então se desenvolveram, ao longo dos anos, com suas particularidades, idiomas e identidades.
“Foi aí que se fundaram as línguas diferentes entre parentes do outro lado do mundo. Um mundo sempre em divisão. Quem o atravessa é quem já conquistou os conhecimentos. Por isso é que cantamos a música do jacaré em nossas reuniões, para abrir os caminhos”, explica o curador convidado Ibã Huni Kuin, do coletivo Mahku.
“As composições são essa tradução a partir do imaginário dado pela ayahuasca”, explica o curador. É um rito tradicional do povo Huni Kuin, que segue todo um ritual dedicado à ingestão da bebida – e esta dá o barato necessário para as visões e a psicodelia. Esse processo tem a ver com a presença das cores vibrantes que estão na composição dos trabalhos, bem como dos grafismos que adornam as “molduras” pintadas ao redor das paisagens, nas bordas (ver imagem ao lado).
“A pintura tem para eles o sentido de memorização, de retomar a cultura dos cantos, da ayahuasca, da pintura, que foram ameaçadas com a agressão do ciclo da borracha”, acrescenta o curador. Para que o legado seja transmitido às novas gerações, todo o lucro obtido pela venda dos trabalhos é destinado a comprar terra e a ampliar as aldeias do povo Mahku, uma espécie de economia de base indígena que tem erguido escolas e espaços para os huni kuin.
Mahku: Mirações - Masp Avenida Paulista, 1.578 – Subsolo. 3ª feira, 10h/20h, gratuito.
4ª a domingo, 10h/18h. R$ 60. Agendamento masp.org.br/ingressos