Manoel de Barros, o poeta que veio do chão


Aos 93 anos, o poeta associado ao Pantanal prefere pisar todos os dias no asfalto

Por Daniel Piza

Manoel de Barros jamais gostou de ser chamado de "poeta do Pantanal" ou, pior ainda, "poeta pantaneiro". Aos 93 anos, com livro novo, Menino do Mato, e sua Poesia Completa (editora Leya, 96 págs., R$ 29,90 e 496 págs, R$ 69,90), ele diz que pela primeira vez usou a palavra Pantanal num verso, pois considera o Livro de Pré-Coisas (1985) uma espécie de roteiro poético. Está ali, no sexto e último poema da primeira parte do livro que está chegando às livrarias: "As águas são a epifania da criação./ Agora eu penso nas águas do Pantanal." E um pouco adiante: "Penso com humildade que fui convidado para o banquete dessas águas. Porque sou de bugre. Porque sou de brejo." Mas não é à beira d’água ou no brejo que o poeta mora, e sim numa casa de muros de tijolos na zona norte de Campo Grande, de quase nenhum quintal.

 

"Lá tem muito mosquito", diz ao justificar por que não mora no Pantanal. É como se quisesse guardar apenas na geografia da infância sua ligação com rios, bichos e plantas. Até os 8 anos, morou numa fazenda perto de Corumbá, em cujo chão brincou com as criaturas que tanto aparecem em sua poesia: sapos, formigas, lesmas, passarinhos, borboletas. Quando adulto, nos anos 50, morou ali por mais dez anos sem escrever um verso sequer - até que pudesse "financiar o ócio", ou seja, ter dinheiro para se mudar e sobreviver como poeta. Nos outros 65 anos de vida, só morou em cidades: Rio, que diz até hoje adorar, e Campo Grande, que preferiu a Cuiabá pelo clima menos impiedoso. O poeta pantaneiro, quem diria, gosta de asfalto.

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Quando entra no pequeno escritório no andar de cima da casa, graceja: "Aqui é meu lugar de fazer o inútil." Eis seus livros, de assuntos como linguística, cinema e, claro, poesia - como a antologia de haicai que lê no momento -, e uma escrivaninha de madeira, diante de uma gravura de seu amigo Siron Franco que lembra as pinturas de seu admirado Paul Klee. Das gavetinhas à sua frente, ele tira algumas pilhas de cadernetas, blocos de papel cujas capas ele mesmo faz com recortes de fotos e quadros. "Tenho uns 200 cadernos aqui", conta. "Acho que não aproveitei nem 2% destes textos." A letra de Manoel de Barros é como sua figura e sua poesia: miúda, delicada, brejeira.

 

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"Poesia é trabalho", afirma. Todo dia, às 7 da manhã, ele bate ponto neste ambiente que não chega a 10 m², com janela que dá vista para o telhado vizinho e um ar-condicionado que hoje, apesar do calor suarento, está desligado. Escreve seus versos, lê, medita até a hora em que sua mulher, Stella, o chama para o almoço. Se a marca de sua infância foi a sensação de solidão, lá "no abandono do Pantanal", agora o poeta está sempre acompanhado; além da mulher, os netos e bisnetos aparecem com frequência. Quanto à fazenda da família, no norte de Mato Grosso do Sul, às margens do Rio Taquari, é administrada por "um amigo" e Manoel raramente a visita ("Faz mais de dois anos que não vou"). No mais, vê na TV filmes (europeus, sobretudo) e futebol (a bandeira na escada entrega: é Botafogo), descansa, conversa e não se sente à vontade com a vida prática. "Sou analfabeto no resto", confessa - e nem pescar ele sabe.

 

A alfabetização foi na infância, com uma tia, que visitou o rancho onde os pais de Manoel criavam seus seis filhos e levou cartilhas e lápis. O pai era responsável por construir as cercas das terras do irmão e, durante três anos, passava cada noite com a família em um acampamento diferente. "Fui criado assim, no chão, no meio do sertão brabo", relembra. "Vivia brincando com lagartixas, gafanhotos e sapos, perto das lagoas. Minha mãe me deixava no chão, mascando um naco de carne." Só depois, na sede da fazenda, aprendeu as primeiras letras e se acostumou a ouvir a mãe tocar violino. Aos 8, veio para Campo Grande estudar num internato. Embora nascido em Cuiabá, onde viveu apenas alguns meses, Manoel passou a maior parte da existência em Mato Grosso do Sul. Mas foi na capital de Mato Grosso que conheceu Bernardo, um menino "parvo, de voz abortada", único que se dava bem com uma "tia maluca, sempre presa no quarto" e que aparece como seu alter ego nos poemas, por sua "inocência e mansidão".

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Casado em 1947, foi fazer a vida no Rio, formado em Direito. Na primeira audiência, a timidez era tanta que o jovem advogado vomitou na mesa do juiz cujo nome jamais esqueceu, Epaminondas. Melhor lembrança teve do ano em que, depois de visitar aldeias indígenas no Brasil e na Bolívia, foi para Nova York se educar. Visitou museus, onde, além de Klee, descobriu Picasso, Klimt e muitos outros; frequentou cinematecas, onde adquiriu gosto por Buñuel e Fellini; e leu os poetas americanos, como T.S. Eliot. "Mas eu já tinha meus preferidos antes." Na Biblioteca Nacional, no Rio, lera Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Fernando Pessoa; entre os brasileiros, Drummond e Bandeira, uma de suas maiores influências. Conheceu pessoalmente ambos, assim como Rubem Braga, outro "homem da natureza", e muitos escritores e artistas. Mas diz não gostar de intelectuais, "muito pretensiosos, pomposos".

 

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O grande acontecimento da sua vida, porém, se chamou João Guimarães Rosa. Manoel não lembra qual foi o ano em que o leu pela primeira vez, mas lembra bem o título - Sagarana (1946) - e a sensação deixada: "Eu fiquei roseado." Manoel já era maduro e tinha alguns livros publicados, nos quais vê "o desejo de desconstruir a linguagem", mas Rosa foi o pulo do sapo. Conta com discreto orgulho uma vez que se encontrou com o mestre, em 1960, por meio do diplomata Mario Calabria. Deu a ele o Compêndio para Uso dos Pássaros, então recém-publicado, e Rosa o leu imediata e calmamente, à frente dos dois amigos. Terminou, sorriu e resumiu: "Manoel, é um doce." Antes, a bordo de um navio a caminho de Corumbá, tinha trocado apenas umas poucas palavras com Rosa, cercado de um séquito de amigos e brandindo um leque de buriti boliviano. O assunto da breve conversa? Passarinhos, claro.

 

A prosa de João deu asas à poesia de Manoel. Além das semelhanças de universo infantil sertanejo ("Mas o pantaneiro é mais pacífico que os jagunços; só usa arma para matar jacaré e queixada"), aponta acima de tudo "a paixão pelas palavras". É o mesmo motivo por que rejeita rótulos como "regionalista", que de vez em quando tentam colar em sua poesia. "Minha poesia é feita de palavras, não de paisagens", diz, ressalvando a seguir que não pode fugir às suas origens: "Ela é também impregnada da água e do solo da minha infância." Eis a explicação para um dos aforismos que estão na segunda parte do novo livro, Menino do Mato, e o qual Rosa muito possivelmente assinaria: "A poesia é a infância da linguagem."

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Outra opinião de Rosa que recorda é a de que ele, Manoel, era um poeta que reinventa imagens e ele, Rosa, a sintaxe. Esse talento para imagens, como "a formiga ajoelhada na pedra" ou "quero passar a mão na bunda do vento", com um toque surreal de concretude, começou a se mostrar maduro depois de Rosa, em trabalhos como Gramática Expositiva do Chão (1966), e por isso despertou a admiração de Millôr Fernandes ("O homem mais genial do Brasil", segundo Manoel), cujos textos o fizeram nacionalmente conhecido depois de publicar o Livro de Pré-Coisas. A partir dali começou a publicar com maior assiduidade: cinco livros nos anos 90, seis na primeira década deste século.

 

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Irregular e por vezes especiosa ou melosa ("Para chegar a Deus. Formigas me mostraram Ele"), sua poesia atinge momentos de grandeza como: "Estou apto a trapo!/ A gente é rascunho de pássaro/ Não acabaram de fazer..." (Gramática). Ou: "Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem" (Livro de Pré-Coisas). Ou um quase haicai como: "Folha seca viaja/ pelo rio - um rã sentado nela/ Escolhe nuvens./ Nas nuvens um incêndio de garças" (O Guardador de Águas, 1989). Ou: "A maior riqueza do homem é a sua incompletude./ Nesse ponto sou abastado" (Retrato do Artista Quando Coisa, 1998). E sobretudo nas imagens que vêm do chão de sua infância, desse Manoel do barro: "Caracóis não gosmam em latas" (Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, 2001).

 

Surpreso com a pergunta sobre a palavra mais bonita do idioma, Manoel não surpreendeu com a resposta: "criança". Com dúvida aberta para "borboleta".

Manoel de Barros jamais gostou de ser chamado de "poeta do Pantanal" ou, pior ainda, "poeta pantaneiro". Aos 93 anos, com livro novo, Menino do Mato, e sua Poesia Completa (editora Leya, 96 págs., R$ 29,90 e 496 págs, R$ 69,90), ele diz que pela primeira vez usou a palavra Pantanal num verso, pois considera o Livro de Pré-Coisas (1985) uma espécie de roteiro poético. Está ali, no sexto e último poema da primeira parte do livro que está chegando às livrarias: "As águas são a epifania da criação./ Agora eu penso nas águas do Pantanal." E um pouco adiante: "Penso com humildade que fui convidado para o banquete dessas águas. Porque sou de bugre. Porque sou de brejo." Mas não é à beira d’água ou no brejo que o poeta mora, e sim numa casa de muros de tijolos na zona norte de Campo Grande, de quase nenhum quintal.

 

"Lá tem muito mosquito", diz ao justificar por que não mora no Pantanal. É como se quisesse guardar apenas na geografia da infância sua ligação com rios, bichos e plantas. Até os 8 anos, morou numa fazenda perto de Corumbá, em cujo chão brincou com as criaturas que tanto aparecem em sua poesia: sapos, formigas, lesmas, passarinhos, borboletas. Quando adulto, nos anos 50, morou ali por mais dez anos sem escrever um verso sequer - até que pudesse "financiar o ócio", ou seja, ter dinheiro para se mudar e sobreviver como poeta. Nos outros 65 anos de vida, só morou em cidades: Rio, que diz até hoje adorar, e Campo Grande, que preferiu a Cuiabá pelo clima menos impiedoso. O poeta pantaneiro, quem diria, gosta de asfalto.

 

Quando entra no pequeno escritório no andar de cima da casa, graceja: "Aqui é meu lugar de fazer o inútil." Eis seus livros, de assuntos como linguística, cinema e, claro, poesia - como a antologia de haicai que lê no momento -, e uma escrivaninha de madeira, diante de uma gravura de seu amigo Siron Franco que lembra as pinturas de seu admirado Paul Klee. Das gavetinhas à sua frente, ele tira algumas pilhas de cadernetas, blocos de papel cujas capas ele mesmo faz com recortes de fotos e quadros. "Tenho uns 200 cadernos aqui", conta. "Acho que não aproveitei nem 2% destes textos." A letra de Manoel de Barros é como sua figura e sua poesia: miúda, delicada, brejeira.

 

"Poesia é trabalho", afirma. Todo dia, às 7 da manhã, ele bate ponto neste ambiente que não chega a 10 m², com janela que dá vista para o telhado vizinho e um ar-condicionado que hoje, apesar do calor suarento, está desligado. Escreve seus versos, lê, medita até a hora em que sua mulher, Stella, o chama para o almoço. Se a marca de sua infância foi a sensação de solidão, lá "no abandono do Pantanal", agora o poeta está sempre acompanhado; além da mulher, os netos e bisnetos aparecem com frequência. Quanto à fazenda da família, no norte de Mato Grosso do Sul, às margens do Rio Taquari, é administrada por "um amigo" e Manoel raramente a visita ("Faz mais de dois anos que não vou"). No mais, vê na TV filmes (europeus, sobretudo) e futebol (a bandeira na escada entrega: é Botafogo), descansa, conversa e não se sente à vontade com a vida prática. "Sou analfabeto no resto", confessa - e nem pescar ele sabe.

 

A alfabetização foi na infância, com uma tia, que visitou o rancho onde os pais de Manoel criavam seus seis filhos e levou cartilhas e lápis. O pai era responsável por construir as cercas das terras do irmão e, durante três anos, passava cada noite com a família em um acampamento diferente. "Fui criado assim, no chão, no meio do sertão brabo", relembra. "Vivia brincando com lagartixas, gafanhotos e sapos, perto das lagoas. Minha mãe me deixava no chão, mascando um naco de carne." Só depois, na sede da fazenda, aprendeu as primeiras letras e se acostumou a ouvir a mãe tocar violino. Aos 8, veio para Campo Grande estudar num internato. Embora nascido em Cuiabá, onde viveu apenas alguns meses, Manoel passou a maior parte da existência em Mato Grosso do Sul. Mas foi na capital de Mato Grosso que conheceu Bernardo, um menino "parvo, de voz abortada", único que se dava bem com uma "tia maluca, sempre presa no quarto" e que aparece como seu alter ego nos poemas, por sua "inocência e mansidão".

 

Casado em 1947, foi fazer a vida no Rio, formado em Direito. Na primeira audiência, a timidez era tanta que o jovem advogado vomitou na mesa do juiz cujo nome jamais esqueceu, Epaminondas. Melhor lembrança teve do ano em que, depois de visitar aldeias indígenas no Brasil e na Bolívia, foi para Nova York se educar. Visitou museus, onde, além de Klee, descobriu Picasso, Klimt e muitos outros; frequentou cinematecas, onde adquiriu gosto por Buñuel e Fellini; e leu os poetas americanos, como T.S. Eliot. "Mas eu já tinha meus preferidos antes." Na Biblioteca Nacional, no Rio, lera Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Fernando Pessoa; entre os brasileiros, Drummond e Bandeira, uma de suas maiores influências. Conheceu pessoalmente ambos, assim como Rubem Braga, outro "homem da natureza", e muitos escritores e artistas. Mas diz não gostar de intelectuais, "muito pretensiosos, pomposos".

 

O grande acontecimento da sua vida, porém, se chamou João Guimarães Rosa. Manoel não lembra qual foi o ano em que o leu pela primeira vez, mas lembra bem o título - Sagarana (1946) - e a sensação deixada: "Eu fiquei roseado." Manoel já era maduro e tinha alguns livros publicados, nos quais vê "o desejo de desconstruir a linguagem", mas Rosa foi o pulo do sapo. Conta com discreto orgulho uma vez que se encontrou com o mestre, em 1960, por meio do diplomata Mario Calabria. Deu a ele o Compêndio para Uso dos Pássaros, então recém-publicado, e Rosa o leu imediata e calmamente, à frente dos dois amigos. Terminou, sorriu e resumiu: "Manoel, é um doce." Antes, a bordo de um navio a caminho de Corumbá, tinha trocado apenas umas poucas palavras com Rosa, cercado de um séquito de amigos e brandindo um leque de buriti boliviano. O assunto da breve conversa? Passarinhos, claro.

 

A prosa de João deu asas à poesia de Manoel. Além das semelhanças de universo infantil sertanejo ("Mas o pantaneiro é mais pacífico que os jagunços; só usa arma para matar jacaré e queixada"), aponta acima de tudo "a paixão pelas palavras". É o mesmo motivo por que rejeita rótulos como "regionalista", que de vez em quando tentam colar em sua poesia. "Minha poesia é feita de palavras, não de paisagens", diz, ressalvando a seguir que não pode fugir às suas origens: "Ela é também impregnada da água e do solo da minha infância." Eis a explicação para um dos aforismos que estão na segunda parte do novo livro, Menino do Mato, e o qual Rosa muito possivelmente assinaria: "A poesia é a infância da linguagem."

 

Outra opinião de Rosa que recorda é a de que ele, Manoel, era um poeta que reinventa imagens e ele, Rosa, a sintaxe. Esse talento para imagens, como "a formiga ajoelhada na pedra" ou "quero passar a mão na bunda do vento", com um toque surreal de concretude, começou a se mostrar maduro depois de Rosa, em trabalhos como Gramática Expositiva do Chão (1966), e por isso despertou a admiração de Millôr Fernandes ("O homem mais genial do Brasil", segundo Manoel), cujos textos o fizeram nacionalmente conhecido depois de publicar o Livro de Pré-Coisas. A partir dali começou a publicar com maior assiduidade: cinco livros nos anos 90, seis na primeira década deste século.

 

Irregular e por vezes especiosa ou melosa ("Para chegar a Deus. Formigas me mostraram Ele"), sua poesia atinge momentos de grandeza como: "Estou apto a trapo!/ A gente é rascunho de pássaro/ Não acabaram de fazer..." (Gramática). Ou: "Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem" (Livro de Pré-Coisas). Ou um quase haicai como: "Folha seca viaja/ pelo rio - um rã sentado nela/ Escolhe nuvens./ Nas nuvens um incêndio de garças" (O Guardador de Águas, 1989). Ou: "A maior riqueza do homem é a sua incompletude./ Nesse ponto sou abastado" (Retrato do Artista Quando Coisa, 1998). E sobretudo nas imagens que vêm do chão de sua infância, desse Manoel do barro: "Caracóis não gosmam em latas" (Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, 2001).

 

Surpreso com a pergunta sobre a palavra mais bonita do idioma, Manoel não surpreendeu com a resposta: "criança". Com dúvida aberta para "borboleta".

Manoel de Barros jamais gostou de ser chamado de "poeta do Pantanal" ou, pior ainda, "poeta pantaneiro". Aos 93 anos, com livro novo, Menino do Mato, e sua Poesia Completa (editora Leya, 96 págs., R$ 29,90 e 496 págs, R$ 69,90), ele diz que pela primeira vez usou a palavra Pantanal num verso, pois considera o Livro de Pré-Coisas (1985) uma espécie de roteiro poético. Está ali, no sexto e último poema da primeira parte do livro que está chegando às livrarias: "As águas são a epifania da criação./ Agora eu penso nas águas do Pantanal." E um pouco adiante: "Penso com humildade que fui convidado para o banquete dessas águas. Porque sou de bugre. Porque sou de brejo." Mas não é à beira d’água ou no brejo que o poeta mora, e sim numa casa de muros de tijolos na zona norte de Campo Grande, de quase nenhum quintal.

 

"Lá tem muito mosquito", diz ao justificar por que não mora no Pantanal. É como se quisesse guardar apenas na geografia da infância sua ligação com rios, bichos e plantas. Até os 8 anos, morou numa fazenda perto de Corumbá, em cujo chão brincou com as criaturas que tanto aparecem em sua poesia: sapos, formigas, lesmas, passarinhos, borboletas. Quando adulto, nos anos 50, morou ali por mais dez anos sem escrever um verso sequer - até que pudesse "financiar o ócio", ou seja, ter dinheiro para se mudar e sobreviver como poeta. Nos outros 65 anos de vida, só morou em cidades: Rio, que diz até hoje adorar, e Campo Grande, que preferiu a Cuiabá pelo clima menos impiedoso. O poeta pantaneiro, quem diria, gosta de asfalto.

 

Quando entra no pequeno escritório no andar de cima da casa, graceja: "Aqui é meu lugar de fazer o inútil." Eis seus livros, de assuntos como linguística, cinema e, claro, poesia - como a antologia de haicai que lê no momento -, e uma escrivaninha de madeira, diante de uma gravura de seu amigo Siron Franco que lembra as pinturas de seu admirado Paul Klee. Das gavetinhas à sua frente, ele tira algumas pilhas de cadernetas, blocos de papel cujas capas ele mesmo faz com recortes de fotos e quadros. "Tenho uns 200 cadernos aqui", conta. "Acho que não aproveitei nem 2% destes textos." A letra de Manoel de Barros é como sua figura e sua poesia: miúda, delicada, brejeira.

 

"Poesia é trabalho", afirma. Todo dia, às 7 da manhã, ele bate ponto neste ambiente que não chega a 10 m², com janela que dá vista para o telhado vizinho e um ar-condicionado que hoje, apesar do calor suarento, está desligado. Escreve seus versos, lê, medita até a hora em que sua mulher, Stella, o chama para o almoço. Se a marca de sua infância foi a sensação de solidão, lá "no abandono do Pantanal", agora o poeta está sempre acompanhado; além da mulher, os netos e bisnetos aparecem com frequência. Quanto à fazenda da família, no norte de Mato Grosso do Sul, às margens do Rio Taquari, é administrada por "um amigo" e Manoel raramente a visita ("Faz mais de dois anos que não vou"). No mais, vê na TV filmes (europeus, sobretudo) e futebol (a bandeira na escada entrega: é Botafogo), descansa, conversa e não se sente à vontade com a vida prática. "Sou analfabeto no resto", confessa - e nem pescar ele sabe.

 

A alfabetização foi na infância, com uma tia, que visitou o rancho onde os pais de Manoel criavam seus seis filhos e levou cartilhas e lápis. O pai era responsável por construir as cercas das terras do irmão e, durante três anos, passava cada noite com a família em um acampamento diferente. "Fui criado assim, no chão, no meio do sertão brabo", relembra. "Vivia brincando com lagartixas, gafanhotos e sapos, perto das lagoas. Minha mãe me deixava no chão, mascando um naco de carne." Só depois, na sede da fazenda, aprendeu as primeiras letras e se acostumou a ouvir a mãe tocar violino. Aos 8, veio para Campo Grande estudar num internato. Embora nascido em Cuiabá, onde viveu apenas alguns meses, Manoel passou a maior parte da existência em Mato Grosso do Sul. Mas foi na capital de Mato Grosso que conheceu Bernardo, um menino "parvo, de voz abortada", único que se dava bem com uma "tia maluca, sempre presa no quarto" e que aparece como seu alter ego nos poemas, por sua "inocência e mansidão".

 

Casado em 1947, foi fazer a vida no Rio, formado em Direito. Na primeira audiência, a timidez era tanta que o jovem advogado vomitou na mesa do juiz cujo nome jamais esqueceu, Epaminondas. Melhor lembrança teve do ano em que, depois de visitar aldeias indígenas no Brasil e na Bolívia, foi para Nova York se educar. Visitou museus, onde, além de Klee, descobriu Picasso, Klimt e muitos outros; frequentou cinematecas, onde adquiriu gosto por Buñuel e Fellini; e leu os poetas americanos, como T.S. Eliot. "Mas eu já tinha meus preferidos antes." Na Biblioteca Nacional, no Rio, lera Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Fernando Pessoa; entre os brasileiros, Drummond e Bandeira, uma de suas maiores influências. Conheceu pessoalmente ambos, assim como Rubem Braga, outro "homem da natureza", e muitos escritores e artistas. Mas diz não gostar de intelectuais, "muito pretensiosos, pomposos".

 

O grande acontecimento da sua vida, porém, se chamou João Guimarães Rosa. Manoel não lembra qual foi o ano em que o leu pela primeira vez, mas lembra bem o título - Sagarana (1946) - e a sensação deixada: "Eu fiquei roseado." Manoel já era maduro e tinha alguns livros publicados, nos quais vê "o desejo de desconstruir a linguagem", mas Rosa foi o pulo do sapo. Conta com discreto orgulho uma vez que se encontrou com o mestre, em 1960, por meio do diplomata Mario Calabria. Deu a ele o Compêndio para Uso dos Pássaros, então recém-publicado, e Rosa o leu imediata e calmamente, à frente dos dois amigos. Terminou, sorriu e resumiu: "Manoel, é um doce." Antes, a bordo de um navio a caminho de Corumbá, tinha trocado apenas umas poucas palavras com Rosa, cercado de um séquito de amigos e brandindo um leque de buriti boliviano. O assunto da breve conversa? Passarinhos, claro.

 

A prosa de João deu asas à poesia de Manoel. Além das semelhanças de universo infantil sertanejo ("Mas o pantaneiro é mais pacífico que os jagunços; só usa arma para matar jacaré e queixada"), aponta acima de tudo "a paixão pelas palavras". É o mesmo motivo por que rejeita rótulos como "regionalista", que de vez em quando tentam colar em sua poesia. "Minha poesia é feita de palavras, não de paisagens", diz, ressalvando a seguir que não pode fugir às suas origens: "Ela é também impregnada da água e do solo da minha infância." Eis a explicação para um dos aforismos que estão na segunda parte do novo livro, Menino do Mato, e o qual Rosa muito possivelmente assinaria: "A poesia é a infância da linguagem."

 

Outra opinião de Rosa que recorda é a de que ele, Manoel, era um poeta que reinventa imagens e ele, Rosa, a sintaxe. Esse talento para imagens, como "a formiga ajoelhada na pedra" ou "quero passar a mão na bunda do vento", com um toque surreal de concretude, começou a se mostrar maduro depois de Rosa, em trabalhos como Gramática Expositiva do Chão (1966), e por isso despertou a admiração de Millôr Fernandes ("O homem mais genial do Brasil", segundo Manoel), cujos textos o fizeram nacionalmente conhecido depois de publicar o Livro de Pré-Coisas. A partir dali começou a publicar com maior assiduidade: cinco livros nos anos 90, seis na primeira década deste século.

 

Irregular e por vezes especiosa ou melosa ("Para chegar a Deus. Formigas me mostraram Ele"), sua poesia atinge momentos de grandeza como: "Estou apto a trapo!/ A gente é rascunho de pássaro/ Não acabaram de fazer..." (Gramática). Ou: "Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem" (Livro de Pré-Coisas). Ou um quase haicai como: "Folha seca viaja/ pelo rio - um rã sentado nela/ Escolhe nuvens./ Nas nuvens um incêndio de garças" (O Guardador de Águas, 1989). Ou: "A maior riqueza do homem é a sua incompletude./ Nesse ponto sou abastado" (Retrato do Artista Quando Coisa, 1998). E sobretudo nas imagens que vêm do chão de sua infância, desse Manoel do barro: "Caracóis não gosmam em latas" (Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, 2001).

 

Surpreso com a pergunta sobre a palavra mais bonita do idioma, Manoel não surpreendeu com a resposta: "criança". Com dúvida aberta para "borboleta".

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