Manoela Sawitzki elege personagem em busca de sua identidade em novo romance


‘Vinco’, da premiada dramaturga e escritora, discute a sexualidade entre conservadores

Por Mateus Baldi
Atualização:

A sensação de deslocamento acompanhou Manoela Sawitzki por toda a vida. Foi a partir de uma performance de seu irmão, o artista Biño Sauitzvi, em 2007, que ela se viu tomada por uma “primeira explosão”. O resultado foi um mestrado e um doutorado explorando “o corpo como um território e os gêneros como estrangeiros que se cruzam por ali”. Essa bagagem serviu para a escrita de Vinco, seu terceiro romance, recém-publicado pela Companhia das Letras.

No livro, o jovem Manu vive na Copacabana dos anos 1990, enquanto se descobre queer por filtros muito particulares, como a brutalidade de uma família de classe média e a liberdade sexual da avó. Na entrevista a seguir, Manoela Sawitzki reflete sobre vidas dissidentes, os anos 1990 como a década adolescente por excelência e a questão da memória, que define como crucial.

A escritora gaúcha Manoela Sawitzki, autora de 'Vinco'  Foto: Companhia das Letras
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Você e Manu, o protagonista, têm o mesmo apelido. Você já declarou que o livro surgiu dos seus próprios anseios em relação à identidade e o corpo. Houve algum cálculo do quanto Manu e Manoela seriam parecidos? A experiência de certo deslocamento como mulher contribuiu ou dificultou o processo de escrita? Como foi a construção do Manu?

Hoje eu não sei se o livro surgiu dos meus próprios anseios em relação à identidade e ao corpo, ou se ele jogou uma luz nova sobre essas questões pra mim mesma. E quando falo em livro, incluo a pesquisa que antecedeu e acompanhou a escrita de Vinco, porque são coisas inseparáveis. Esse mergulho nas questões de gênero, corpo, alteridade e na condição estrangeira levou a um pensamento mais abrangente sobre os mecanismos por trás da formação da minha identidade e do meu corpo, sim, assim como me permitiu observar de forma mais minuciosa como esses mecanismos operam e modelam a sociedade ocidental. E em tudo isso entra, certamente, o deslocamento como lugar da existência, do pensamento e da criação. A sensação de deslocamento me acompanhou por toda a vida. Estar fora de lugar, não ter lugar, ocupar determinado lugar por achar que não possa existir outro, mudar de lugar de novo e de novo. O processo de me tornar mulher aconteceu inteiramente nessa corda bamba. Mas só por volta de 2012 comecei a questionar como seria essa identidade, como seria esse corpo sem as pressões e as determinações que agiram e continuam agindo sobre eles. Sobre o que me aproxima de Manu, não houve exatamente um cálculo. Em certa altura, depois de fazer muitas perguntas, eu me senti capaz de me aproximar do processo de crescimento de Manu, que envolve, também, não poder ter um corpo para tudo. Envolve sentir e sofrer as consequências de deixar partes importantes sem um lugar onde elas possam se tornar visíveis, materiais, exprimíveis. E envolve precisar ir embora pra continuar tentando em outra parte.

Você pesquisou corpo e identidade de gênero no mestrado e no doutorado. Ao final de ‘Vinco’ há uma nota jogando luz sobre as relações entre a pesquisa e a escrita do romance. Como surgiu esse interesse pela temática e como você conciliou a Manoela ficcionista e a pesquisadora?

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Olha, acho que a pesquisadora mastigou, engoliu e depois cuspiu uma outra ficcionista. Quero dizer, esses anos de pesquisa alteraram a minha voz, a minha forma de estar no mundo e de olhar para as coisas. Eles também me impediram de escrever ficção por algum tempo. Até consegui trabalhar em alguns roteiros no meio do caminho, mas o livro, como ele tinha que ser, não saía. Nem ele, nem nada além da tese, porque eu tentava e sentia que ainda não conseguia dar conta da tarefa. Era difícil, não quero romantizar, porque isso, mais uma vez, envolvia um deslocamento. E fazia sentido que fosse assim. A pesquisa é uma viagem que a gente faz. No decorrer do caminho, a gente descobre o que não conhecia antes. E a viagem altera, não é? Se não altera, é porque, trazendo a Hilda Hilst para a conversa, você não se moveu de si. E quanto ao interesse pelos temas do livro, o primeiro disparador da minha pesquisa foi o artista Biño Sauitzvy, um brasileiro radicado na França há quase 20 anos, e que é meu irmão. Eu também falo disso na nota final do livro, e dedico o livro a ele, porque Biño, com as performances H to H e La Divina, que vi em 2007, foi responsável pela primeira explosão. Ali, eu vi uma irmã que desconhecia, o feminino enterrado sob camadas acumuladas para que aquele corpo pudesse sobreviver. E esse processo de apagamento se misturava e continuava na experiência do estrangeiro, do intruso, do sem lugar, aquele que encontra lugar nos intervalos da hostilidade. Então voltei às nossas infâncias, ao fato de que Biño havia sido uma criança queer, hipercriativa, uma superstar para mim, num ambiente nada propício para isso. Eu era diferente dele, mas também não era “adequada”. E ambos passamos por processos “corretivos”, experiências deformantes. Olhar de novo para isso com o que eu havia aprendido e entendido me colocou em movimento, me fez ir além da minha própria história, na direção de outras. E foi nesse movimento que encontrei Manu. Da mesma forma, o trabalho de Biño permitiu que eu encontrasse e entrasse em relação com outras e outros artistas, como Nando Messias, Yasumasa Morimura, Steven Cohen, Cindy Sherman, Catherine Opie, Kazuo Ohno, Nan Goldin, Ana Mendieta, que também operam borrando, ultrapassando as fronteiras do corpo. E eu poderia seguir por pensadores e pensadores – Foucault, Deleuze e Guattari, Butler, Preciado, Dri Azevedo, Kristeva... a lista é imensa.

No filme ‘Algo a Romper’, desenrola-se um caso de amor entre um menino andrógino e um heterossexual  Foto: Mix Brasil

Este é seu terceiro romance, e sai 20 anos após o primeiro. Que aproximações e transformações você identifica na sua escrita nessas quase duas décadas — e como elas contribuíram durante a feitura de ’Vinco’?

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Como disse, essa escrita mudou muito. Mudou de um livro pra outro, e mudou radicalmente se pensar em Vinco em relação aos outros dois. Hoje eu não me reconheço mais nos primeiros livros (no final de julho, uma pessoa chegou com os meus dois primeiros livros no lançamento de Vinco no Rio de Janeiro, e eu brinquei que ia ter que psicografar aquelas dedicatórias), e acho que isso só confirma a ideia de que, na melhor das hipóteses, nos transformamos ao longo da vida. Então, tudo bem. Eu tinha uns 22, 23 anos quando escrevi o primeiro romance, e ele reflete não só a minha pouca experiência, como as minhas leituras da época, assim como traços de identidade que já se alteraram ou que não expresso da mesma forma. É um livro barroco e derramado. No segundo, essas características são um pouco atenuadas, mas seguem lá. É engraçado, pra mim, pensar neles agora é um pouco como olhar pra um álbum antigo. Lá estava você, usando ombreias e calças de cintura baixa e se sentindo ótima. Hoje eu estou atrás do oposto do que perseguia antes: a linguagem mais simples e direta possível. Me interessa conseguir chegar em estruturas estranhas e complexas com uma linguagem muito simples.

Vinco explora bastante a sexualidade em seus diversos aspectos – de um adolescente queer ou a de uma senhora, a avó de Manu. Como você pensou essa questão e como foi escrever perspectivas tão diferentes?

Fico contente que você tenha perguntado isso porque me dá oportunidade de falar da avó de Manu e de outras personagens, e as relações são fundamentais pro caminho de Manu, que vai se descobrindo, encontrando e desencontrando à medida que entra em contato com esses outros e outras. No bom e no mau sentido. Manu não narra só a si, mas também as pessoas e os encontros que participam do seu crescimento. A avó Teresa — o nome é uma homenagem à minha irmã Tere — traz a carga de uma geração marcada por tabus e contenções extremas, ao mesmo tempo que atravessa as revoluções culturais que aconteceram ao longo do século 20. O resultado, nela, é a liberação do desejo, o desbunde. Ela quer curtir e pela primeira vez pode fazer isso sem contenções. A ideia dessa avó veio, em parte, de uma senhora que frequentava o mesmo mercadinho que eu em Copacabana. Sempre que nos cruzávamos, ela estava comprando chocolates, guaraná em pó, estimulantes naturais, animadíssima, a caminho de algum evento. Um dos donos comentou que ela namorava muito e saía muito pra dançar, o que estava perturbando a família. Alguma coisa mais a ver com dinheiro do que com o fato de que ela estava vivendo como queria. Fiquei fascinada. Espero que ela tenha feito o mesmo que a Teresa fez e seguido em frente. Giorgos, que Manu conhece em Paris, assim como Ewa, são pessoas que precisam abrir mão das raízes para viver sua sexualidade. Tem também Raimundo e Maria, no sertão... todas essas personagens me permitiram avançar em questões importantes como a perda do lar, coisa muito comum em vidas dissidentes, e as respostas que se dá às formas de controle da sexualidade.

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‘Vinco’ é estruturado a partir da geografia — Rio, Paris o sertão. Como você chegou a esse formato e quais tensões existentes entre corpo e espaço quis explorar na escrita do romance?

Um dos pontos-chave da minha pesquisa acadêmica é o cruzamento entre geografia, corpo e gênero. Eu quis pensar, por exemplo, no corpo como um território e nos gêneros como estrangeiros que cruzam por ali. Crossdessers, travestis, drag kings e queens, certos artistas atuam nessa lógica do trânsito, do cruzamento, da ocupação e da desocupação, da escrita, do apagamento e da reescrita. Eu me interesso muito por esses fluxos, por essa reinvenção permanente, por gestos que desmentem a ideia de “natureza”, porque, em termos de gênero, tudo o que entendemos hoje como “homem e mulher”, essa besteira toda de “meninas usam rosa, meninos usam azul”, é construção humana. Construção que só quer uma coisa, o controle.

Participantes na parada LGBT+ 2022 da cidade de Seul  Foto: ANTHONY WALLACE/AFP
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Partindo daquelas práticas, procurei pensar nas relações entre o que é visível e invisível nos corpos, entre conformação e invenção. Como seria fazer esse trânsito sem fixação e sem ponto de chegada? Como o corpo responderia? E o mundo? E a linguagem?

E a geografia era fundamental pra contar a história de Manu. Existe ali um percurso literal e também um percurso da memória — por isso o vai-e-vem Rio-Paris-Rio-Paris até chegar ao sertão, lugar que funciona como um acelerador de partículas.

A questão da memória é crucial porque, e quem vai embora sabe do que tô falando, a gente segue caminho, mas os lugares, ou o que vivemos nos lugares, com frequências maiores ou menores, se tornam presentes, por mais longe que se consiga ir. Aí acontecem essas sobreposições. Você pode estar, sei lá, em Nova York ou São Paulo, mas viver parte do seu tempo não ali, ou não totalmente, mas em outro lugar, o lugar de onde você veio e que deixou marcas. Por isso também a voz de Manu se altera um pouco em cada lugar por onde passa.

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‘Vinco’ se passa nos anos 1990, uma década que ainda não parece ter engrenado na atual literatura brasileira contemporânea. Por que situar o livro naqueles anos e como você acha que sua geração lida com o legado dos anos 1990, principalmente na escrita?

Noventa é aquela década que ninguém quer assumir, né? (risos) Mas eu estive lá e sobrevivi. Mais ou menos... Mas, falando sério, eu queria pensar sobre vidas correndo em paralelo por um mesmo tempo, em espaços simultaneamente comuns e distantes. E queria que, nesse movimento, as experiências dessas duas vidas pudessem se tocar e se afastar. Então tem Manu que nasceu em 1978 numa cidadezinha do sul do Brasil, criada como menina, e tem Manu que nasceu no mesmo ano, mas no Rio de Janeiro, criado como um menino. Veja só, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul são Brasil, mas eu só conheci o mar quando tinha uns 10 anos. Então eu e Manu vivemos nossas adolescências, essa fase louquíssima, em que acontecem tantas transições, em que estamos literalmente entre mundos, o infantil e o adulto, nos anos 1990. Olha que azar. Ressaca da ditadura, a televisão no centro das vidas, plasmando a cultura, mediando os desejos, Xuxa, Collor, confisco da poupança, a sociedade tropeçando nas ruínas do século, mal se equilibrando entre tudo o que as vanguardas fizeram por nós e a herança imensa e maldita do conservadorismo. Pensando agora, depois de tudo o que aconteceu em termos de arte, cultura e política nos anos 1960 e 1970, 1990 é uma espécie de década adolescente por excelência, não acha?

A sensação de deslocamento acompanhou Manoela Sawitzki por toda a vida. Foi a partir de uma performance de seu irmão, o artista Biño Sauitzvi, em 2007, que ela se viu tomada por uma “primeira explosão”. O resultado foi um mestrado e um doutorado explorando “o corpo como um território e os gêneros como estrangeiros que se cruzam por ali”. Essa bagagem serviu para a escrita de Vinco, seu terceiro romance, recém-publicado pela Companhia das Letras.

No livro, o jovem Manu vive na Copacabana dos anos 1990, enquanto se descobre queer por filtros muito particulares, como a brutalidade de uma família de classe média e a liberdade sexual da avó. Na entrevista a seguir, Manoela Sawitzki reflete sobre vidas dissidentes, os anos 1990 como a década adolescente por excelência e a questão da memória, que define como crucial.

A escritora gaúcha Manoela Sawitzki, autora de 'Vinco'  Foto: Companhia das Letras

Você e Manu, o protagonista, têm o mesmo apelido. Você já declarou que o livro surgiu dos seus próprios anseios em relação à identidade e o corpo. Houve algum cálculo do quanto Manu e Manoela seriam parecidos? A experiência de certo deslocamento como mulher contribuiu ou dificultou o processo de escrita? Como foi a construção do Manu?

Hoje eu não sei se o livro surgiu dos meus próprios anseios em relação à identidade e ao corpo, ou se ele jogou uma luz nova sobre essas questões pra mim mesma. E quando falo em livro, incluo a pesquisa que antecedeu e acompanhou a escrita de Vinco, porque são coisas inseparáveis. Esse mergulho nas questões de gênero, corpo, alteridade e na condição estrangeira levou a um pensamento mais abrangente sobre os mecanismos por trás da formação da minha identidade e do meu corpo, sim, assim como me permitiu observar de forma mais minuciosa como esses mecanismos operam e modelam a sociedade ocidental. E em tudo isso entra, certamente, o deslocamento como lugar da existência, do pensamento e da criação. A sensação de deslocamento me acompanhou por toda a vida. Estar fora de lugar, não ter lugar, ocupar determinado lugar por achar que não possa existir outro, mudar de lugar de novo e de novo. O processo de me tornar mulher aconteceu inteiramente nessa corda bamba. Mas só por volta de 2012 comecei a questionar como seria essa identidade, como seria esse corpo sem as pressões e as determinações que agiram e continuam agindo sobre eles. Sobre o que me aproxima de Manu, não houve exatamente um cálculo. Em certa altura, depois de fazer muitas perguntas, eu me senti capaz de me aproximar do processo de crescimento de Manu, que envolve, também, não poder ter um corpo para tudo. Envolve sentir e sofrer as consequências de deixar partes importantes sem um lugar onde elas possam se tornar visíveis, materiais, exprimíveis. E envolve precisar ir embora pra continuar tentando em outra parte.

Você pesquisou corpo e identidade de gênero no mestrado e no doutorado. Ao final de ‘Vinco’ há uma nota jogando luz sobre as relações entre a pesquisa e a escrita do romance. Como surgiu esse interesse pela temática e como você conciliou a Manoela ficcionista e a pesquisadora?

Olha, acho que a pesquisadora mastigou, engoliu e depois cuspiu uma outra ficcionista. Quero dizer, esses anos de pesquisa alteraram a minha voz, a minha forma de estar no mundo e de olhar para as coisas. Eles também me impediram de escrever ficção por algum tempo. Até consegui trabalhar em alguns roteiros no meio do caminho, mas o livro, como ele tinha que ser, não saía. Nem ele, nem nada além da tese, porque eu tentava e sentia que ainda não conseguia dar conta da tarefa. Era difícil, não quero romantizar, porque isso, mais uma vez, envolvia um deslocamento. E fazia sentido que fosse assim. A pesquisa é uma viagem que a gente faz. No decorrer do caminho, a gente descobre o que não conhecia antes. E a viagem altera, não é? Se não altera, é porque, trazendo a Hilda Hilst para a conversa, você não se moveu de si. E quanto ao interesse pelos temas do livro, o primeiro disparador da minha pesquisa foi o artista Biño Sauitzvy, um brasileiro radicado na França há quase 20 anos, e que é meu irmão. Eu também falo disso na nota final do livro, e dedico o livro a ele, porque Biño, com as performances H to H e La Divina, que vi em 2007, foi responsável pela primeira explosão. Ali, eu vi uma irmã que desconhecia, o feminino enterrado sob camadas acumuladas para que aquele corpo pudesse sobreviver. E esse processo de apagamento se misturava e continuava na experiência do estrangeiro, do intruso, do sem lugar, aquele que encontra lugar nos intervalos da hostilidade. Então voltei às nossas infâncias, ao fato de que Biño havia sido uma criança queer, hipercriativa, uma superstar para mim, num ambiente nada propício para isso. Eu era diferente dele, mas também não era “adequada”. E ambos passamos por processos “corretivos”, experiências deformantes. Olhar de novo para isso com o que eu havia aprendido e entendido me colocou em movimento, me fez ir além da minha própria história, na direção de outras. E foi nesse movimento que encontrei Manu. Da mesma forma, o trabalho de Biño permitiu que eu encontrasse e entrasse em relação com outras e outros artistas, como Nando Messias, Yasumasa Morimura, Steven Cohen, Cindy Sherman, Catherine Opie, Kazuo Ohno, Nan Goldin, Ana Mendieta, que também operam borrando, ultrapassando as fronteiras do corpo. E eu poderia seguir por pensadores e pensadores – Foucault, Deleuze e Guattari, Butler, Preciado, Dri Azevedo, Kristeva... a lista é imensa.

No filme ‘Algo a Romper’, desenrola-se um caso de amor entre um menino andrógino e um heterossexual  Foto: Mix Brasil

Este é seu terceiro romance, e sai 20 anos após o primeiro. Que aproximações e transformações você identifica na sua escrita nessas quase duas décadas — e como elas contribuíram durante a feitura de ’Vinco’?

Como disse, essa escrita mudou muito. Mudou de um livro pra outro, e mudou radicalmente se pensar em Vinco em relação aos outros dois. Hoje eu não me reconheço mais nos primeiros livros (no final de julho, uma pessoa chegou com os meus dois primeiros livros no lançamento de Vinco no Rio de Janeiro, e eu brinquei que ia ter que psicografar aquelas dedicatórias), e acho que isso só confirma a ideia de que, na melhor das hipóteses, nos transformamos ao longo da vida. Então, tudo bem. Eu tinha uns 22, 23 anos quando escrevi o primeiro romance, e ele reflete não só a minha pouca experiência, como as minhas leituras da época, assim como traços de identidade que já se alteraram ou que não expresso da mesma forma. É um livro barroco e derramado. No segundo, essas características são um pouco atenuadas, mas seguem lá. É engraçado, pra mim, pensar neles agora é um pouco como olhar pra um álbum antigo. Lá estava você, usando ombreias e calças de cintura baixa e se sentindo ótima. Hoje eu estou atrás do oposto do que perseguia antes: a linguagem mais simples e direta possível. Me interessa conseguir chegar em estruturas estranhas e complexas com uma linguagem muito simples.

Vinco explora bastante a sexualidade em seus diversos aspectos – de um adolescente queer ou a de uma senhora, a avó de Manu. Como você pensou essa questão e como foi escrever perspectivas tão diferentes?

Fico contente que você tenha perguntado isso porque me dá oportunidade de falar da avó de Manu e de outras personagens, e as relações são fundamentais pro caminho de Manu, que vai se descobrindo, encontrando e desencontrando à medida que entra em contato com esses outros e outras. No bom e no mau sentido. Manu não narra só a si, mas também as pessoas e os encontros que participam do seu crescimento. A avó Teresa — o nome é uma homenagem à minha irmã Tere — traz a carga de uma geração marcada por tabus e contenções extremas, ao mesmo tempo que atravessa as revoluções culturais que aconteceram ao longo do século 20. O resultado, nela, é a liberação do desejo, o desbunde. Ela quer curtir e pela primeira vez pode fazer isso sem contenções. A ideia dessa avó veio, em parte, de uma senhora que frequentava o mesmo mercadinho que eu em Copacabana. Sempre que nos cruzávamos, ela estava comprando chocolates, guaraná em pó, estimulantes naturais, animadíssima, a caminho de algum evento. Um dos donos comentou que ela namorava muito e saía muito pra dançar, o que estava perturbando a família. Alguma coisa mais a ver com dinheiro do que com o fato de que ela estava vivendo como queria. Fiquei fascinada. Espero que ela tenha feito o mesmo que a Teresa fez e seguido em frente. Giorgos, que Manu conhece em Paris, assim como Ewa, são pessoas que precisam abrir mão das raízes para viver sua sexualidade. Tem também Raimundo e Maria, no sertão... todas essas personagens me permitiram avançar em questões importantes como a perda do lar, coisa muito comum em vidas dissidentes, e as respostas que se dá às formas de controle da sexualidade.

‘Vinco’ é estruturado a partir da geografia — Rio, Paris o sertão. Como você chegou a esse formato e quais tensões existentes entre corpo e espaço quis explorar na escrita do romance?

Um dos pontos-chave da minha pesquisa acadêmica é o cruzamento entre geografia, corpo e gênero. Eu quis pensar, por exemplo, no corpo como um território e nos gêneros como estrangeiros que cruzam por ali. Crossdessers, travestis, drag kings e queens, certos artistas atuam nessa lógica do trânsito, do cruzamento, da ocupação e da desocupação, da escrita, do apagamento e da reescrita. Eu me interesso muito por esses fluxos, por essa reinvenção permanente, por gestos que desmentem a ideia de “natureza”, porque, em termos de gênero, tudo o que entendemos hoje como “homem e mulher”, essa besteira toda de “meninas usam rosa, meninos usam azul”, é construção humana. Construção que só quer uma coisa, o controle.

Participantes na parada LGBT+ 2022 da cidade de Seul  Foto: ANTHONY WALLACE/AFP

Partindo daquelas práticas, procurei pensar nas relações entre o que é visível e invisível nos corpos, entre conformação e invenção. Como seria fazer esse trânsito sem fixação e sem ponto de chegada? Como o corpo responderia? E o mundo? E a linguagem?

E a geografia era fundamental pra contar a história de Manu. Existe ali um percurso literal e também um percurso da memória — por isso o vai-e-vem Rio-Paris-Rio-Paris até chegar ao sertão, lugar que funciona como um acelerador de partículas.

A questão da memória é crucial porque, e quem vai embora sabe do que tô falando, a gente segue caminho, mas os lugares, ou o que vivemos nos lugares, com frequências maiores ou menores, se tornam presentes, por mais longe que se consiga ir. Aí acontecem essas sobreposições. Você pode estar, sei lá, em Nova York ou São Paulo, mas viver parte do seu tempo não ali, ou não totalmente, mas em outro lugar, o lugar de onde você veio e que deixou marcas. Por isso também a voz de Manu se altera um pouco em cada lugar por onde passa.

‘Vinco’ se passa nos anos 1990, uma década que ainda não parece ter engrenado na atual literatura brasileira contemporânea. Por que situar o livro naqueles anos e como você acha que sua geração lida com o legado dos anos 1990, principalmente na escrita?

Noventa é aquela década que ninguém quer assumir, né? (risos) Mas eu estive lá e sobrevivi. Mais ou menos... Mas, falando sério, eu queria pensar sobre vidas correndo em paralelo por um mesmo tempo, em espaços simultaneamente comuns e distantes. E queria que, nesse movimento, as experiências dessas duas vidas pudessem se tocar e se afastar. Então tem Manu que nasceu em 1978 numa cidadezinha do sul do Brasil, criada como menina, e tem Manu que nasceu no mesmo ano, mas no Rio de Janeiro, criado como um menino. Veja só, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul são Brasil, mas eu só conheci o mar quando tinha uns 10 anos. Então eu e Manu vivemos nossas adolescências, essa fase louquíssima, em que acontecem tantas transições, em que estamos literalmente entre mundos, o infantil e o adulto, nos anos 1990. Olha que azar. Ressaca da ditadura, a televisão no centro das vidas, plasmando a cultura, mediando os desejos, Xuxa, Collor, confisco da poupança, a sociedade tropeçando nas ruínas do século, mal se equilibrando entre tudo o que as vanguardas fizeram por nós e a herança imensa e maldita do conservadorismo. Pensando agora, depois de tudo o que aconteceu em termos de arte, cultura e política nos anos 1960 e 1970, 1990 é uma espécie de década adolescente por excelência, não acha?

A sensação de deslocamento acompanhou Manoela Sawitzki por toda a vida. Foi a partir de uma performance de seu irmão, o artista Biño Sauitzvi, em 2007, que ela se viu tomada por uma “primeira explosão”. O resultado foi um mestrado e um doutorado explorando “o corpo como um território e os gêneros como estrangeiros que se cruzam por ali”. Essa bagagem serviu para a escrita de Vinco, seu terceiro romance, recém-publicado pela Companhia das Letras.

No livro, o jovem Manu vive na Copacabana dos anos 1990, enquanto se descobre queer por filtros muito particulares, como a brutalidade de uma família de classe média e a liberdade sexual da avó. Na entrevista a seguir, Manoela Sawitzki reflete sobre vidas dissidentes, os anos 1990 como a década adolescente por excelência e a questão da memória, que define como crucial.

A escritora gaúcha Manoela Sawitzki, autora de 'Vinco'  Foto: Companhia das Letras

Você e Manu, o protagonista, têm o mesmo apelido. Você já declarou que o livro surgiu dos seus próprios anseios em relação à identidade e o corpo. Houve algum cálculo do quanto Manu e Manoela seriam parecidos? A experiência de certo deslocamento como mulher contribuiu ou dificultou o processo de escrita? Como foi a construção do Manu?

Hoje eu não sei se o livro surgiu dos meus próprios anseios em relação à identidade e ao corpo, ou se ele jogou uma luz nova sobre essas questões pra mim mesma. E quando falo em livro, incluo a pesquisa que antecedeu e acompanhou a escrita de Vinco, porque são coisas inseparáveis. Esse mergulho nas questões de gênero, corpo, alteridade e na condição estrangeira levou a um pensamento mais abrangente sobre os mecanismos por trás da formação da minha identidade e do meu corpo, sim, assim como me permitiu observar de forma mais minuciosa como esses mecanismos operam e modelam a sociedade ocidental. E em tudo isso entra, certamente, o deslocamento como lugar da existência, do pensamento e da criação. A sensação de deslocamento me acompanhou por toda a vida. Estar fora de lugar, não ter lugar, ocupar determinado lugar por achar que não possa existir outro, mudar de lugar de novo e de novo. O processo de me tornar mulher aconteceu inteiramente nessa corda bamba. Mas só por volta de 2012 comecei a questionar como seria essa identidade, como seria esse corpo sem as pressões e as determinações que agiram e continuam agindo sobre eles. Sobre o que me aproxima de Manu, não houve exatamente um cálculo. Em certa altura, depois de fazer muitas perguntas, eu me senti capaz de me aproximar do processo de crescimento de Manu, que envolve, também, não poder ter um corpo para tudo. Envolve sentir e sofrer as consequências de deixar partes importantes sem um lugar onde elas possam se tornar visíveis, materiais, exprimíveis. E envolve precisar ir embora pra continuar tentando em outra parte.

Você pesquisou corpo e identidade de gênero no mestrado e no doutorado. Ao final de ‘Vinco’ há uma nota jogando luz sobre as relações entre a pesquisa e a escrita do romance. Como surgiu esse interesse pela temática e como você conciliou a Manoela ficcionista e a pesquisadora?

Olha, acho que a pesquisadora mastigou, engoliu e depois cuspiu uma outra ficcionista. Quero dizer, esses anos de pesquisa alteraram a minha voz, a minha forma de estar no mundo e de olhar para as coisas. Eles também me impediram de escrever ficção por algum tempo. Até consegui trabalhar em alguns roteiros no meio do caminho, mas o livro, como ele tinha que ser, não saía. Nem ele, nem nada além da tese, porque eu tentava e sentia que ainda não conseguia dar conta da tarefa. Era difícil, não quero romantizar, porque isso, mais uma vez, envolvia um deslocamento. E fazia sentido que fosse assim. A pesquisa é uma viagem que a gente faz. No decorrer do caminho, a gente descobre o que não conhecia antes. E a viagem altera, não é? Se não altera, é porque, trazendo a Hilda Hilst para a conversa, você não se moveu de si. E quanto ao interesse pelos temas do livro, o primeiro disparador da minha pesquisa foi o artista Biño Sauitzvy, um brasileiro radicado na França há quase 20 anos, e que é meu irmão. Eu também falo disso na nota final do livro, e dedico o livro a ele, porque Biño, com as performances H to H e La Divina, que vi em 2007, foi responsável pela primeira explosão. Ali, eu vi uma irmã que desconhecia, o feminino enterrado sob camadas acumuladas para que aquele corpo pudesse sobreviver. E esse processo de apagamento se misturava e continuava na experiência do estrangeiro, do intruso, do sem lugar, aquele que encontra lugar nos intervalos da hostilidade. Então voltei às nossas infâncias, ao fato de que Biño havia sido uma criança queer, hipercriativa, uma superstar para mim, num ambiente nada propício para isso. Eu era diferente dele, mas também não era “adequada”. E ambos passamos por processos “corretivos”, experiências deformantes. Olhar de novo para isso com o que eu havia aprendido e entendido me colocou em movimento, me fez ir além da minha própria história, na direção de outras. E foi nesse movimento que encontrei Manu. Da mesma forma, o trabalho de Biño permitiu que eu encontrasse e entrasse em relação com outras e outros artistas, como Nando Messias, Yasumasa Morimura, Steven Cohen, Cindy Sherman, Catherine Opie, Kazuo Ohno, Nan Goldin, Ana Mendieta, que também operam borrando, ultrapassando as fronteiras do corpo. E eu poderia seguir por pensadores e pensadores – Foucault, Deleuze e Guattari, Butler, Preciado, Dri Azevedo, Kristeva... a lista é imensa.

No filme ‘Algo a Romper’, desenrola-se um caso de amor entre um menino andrógino e um heterossexual  Foto: Mix Brasil

Este é seu terceiro romance, e sai 20 anos após o primeiro. Que aproximações e transformações você identifica na sua escrita nessas quase duas décadas — e como elas contribuíram durante a feitura de ’Vinco’?

Como disse, essa escrita mudou muito. Mudou de um livro pra outro, e mudou radicalmente se pensar em Vinco em relação aos outros dois. Hoje eu não me reconheço mais nos primeiros livros (no final de julho, uma pessoa chegou com os meus dois primeiros livros no lançamento de Vinco no Rio de Janeiro, e eu brinquei que ia ter que psicografar aquelas dedicatórias), e acho que isso só confirma a ideia de que, na melhor das hipóteses, nos transformamos ao longo da vida. Então, tudo bem. Eu tinha uns 22, 23 anos quando escrevi o primeiro romance, e ele reflete não só a minha pouca experiência, como as minhas leituras da época, assim como traços de identidade que já se alteraram ou que não expresso da mesma forma. É um livro barroco e derramado. No segundo, essas características são um pouco atenuadas, mas seguem lá. É engraçado, pra mim, pensar neles agora é um pouco como olhar pra um álbum antigo. Lá estava você, usando ombreias e calças de cintura baixa e se sentindo ótima. Hoje eu estou atrás do oposto do que perseguia antes: a linguagem mais simples e direta possível. Me interessa conseguir chegar em estruturas estranhas e complexas com uma linguagem muito simples.

Vinco explora bastante a sexualidade em seus diversos aspectos – de um adolescente queer ou a de uma senhora, a avó de Manu. Como você pensou essa questão e como foi escrever perspectivas tão diferentes?

Fico contente que você tenha perguntado isso porque me dá oportunidade de falar da avó de Manu e de outras personagens, e as relações são fundamentais pro caminho de Manu, que vai se descobrindo, encontrando e desencontrando à medida que entra em contato com esses outros e outras. No bom e no mau sentido. Manu não narra só a si, mas também as pessoas e os encontros que participam do seu crescimento. A avó Teresa — o nome é uma homenagem à minha irmã Tere — traz a carga de uma geração marcada por tabus e contenções extremas, ao mesmo tempo que atravessa as revoluções culturais que aconteceram ao longo do século 20. O resultado, nela, é a liberação do desejo, o desbunde. Ela quer curtir e pela primeira vez pode fazer isso sem contenções. A ideia dessa avó veio, em parte, de uma senhora que frequentava o mesmo mercadinho que eu em Copacabana. Sempre que nos cruzávamos, ela estava comprando chocolates, guaraná em pó, estimulantes naturais, animadíssima, a caminho de algum evento. Um dos donos comentou que ela namorava muito e saía muito pra dançar, o que estava perturbando a família. Alguma coisa mais a ver com dinheiro do que com o fato de que ela estava vivendo como queria. Fiquei fascinada. Espero que ela tenha feito o mesmo que a Teresa fez e seguido em frente. Giorgos, que Manu conhece em Paris, assim como Ewa, são pessoas que precisam abrir mão das raízes para viver sua sexualidade. Tem também Raimundo e Maria, no sertão... todas essas personagens me permitiram avançar em questões importantes como a perda do lar, coisa muito comum em vidas dissidentes, e as respostas que se dá às formas de controle da sexualidade.

‘Vinco’ é estruturado a partir da geografia — Rio, Paris o sertão. Como você chegou a esse formato e quais tensões existentes entre corpo e espaço quis explorar na escrita do romance?

Um dos pontos-chave da minha pesquisa acadêmica é o cruzamento entre geografia, corpo e gênero. Eu quis pensar, por exemplo, no corpo como um território e nos gêneros como estrangeiros que cruzam por ali. Crossdessers, travestis, drag kings e queens, certos artistas atuam nessa lógica do trânsito, do cruzamento, da ocupação e da desocupação, da escrita, do apagamento e da reescrita. Eu me interesso muito por esses fluxos, por essa reinvenção permanente, por gestos que desmentem a ideia de “natureza”, porque, em termos de gênero, tudo o que entendemos hoje como “homem e mulher”, essa besteira toda de “meninas usam rosa, meninos usam azul”, é construção humana. Construção que só quer uma coisa, o controle.

Participantes na parada LGBT+ 2022 da cidade de Seul  Foto: ANTHONY WALLACE/AFP

Partindo daquelas práticas, procurei pensar nas relações entre o que é visível e invisível nos corpos, entre conformação e invenção. Como seria fazer esse trânsito sem fixação e sem ponto de chegada? Como o corpo responderia? E o mundo? E a linguagem?

E a geografia era fundamental pra contar a história de Manu. Existe ali um percurso literal e também um percurso da memória — por isso o vai-e-vem Rio-Paris-Rio-Paris até chegar ao sertão, lugar que funciona como um acelerador de partículas.

A questão da memória é crucial porque, e quem vai embora sabe do que tô falando, a gente segue caminho, mas os lugares, ou o que vivemos nos lugares, com frequências maiores ou menores, se tornam presentes, por mais longe que se consiga ir. Aí acontecem essas sobreposições. Você pode estar, sei lá, em Nova York ou São Paulo, mas viver parte do seu tempo não ali, ou não totalmente, mas em outro lugar, o lugar de onde você veio e que deixou marcas. Por isso também a voz de Manu se altera um pouco em cada lugar por onde passa.

‘Vinco’ se passa nos anos 1990, uma década que ainda não parece ter engrenado na atual literatura brasileira contemporânea. Por que situar o livro naqueles anos e como você acha que sua geração lida com o legado dos anos 1990, principalmente na escrita?

Noventa é aquela década que ninguém quer assumir, né? (risos) Mas eu estive lá e sobrevivi. Mais ou menos... Mas, falando sério, eu queria pensar sobre vidas correndo em paralelo por um mesmo tempo, em espaços simultaneamente comuns e distantes. E queria que, nesse movimento, as experiências dessas duas vidas pudessem se tocar e se afastar. Então tem Manu que nasceu em 1978 numa cidadezinha do sul do Brasil, criada como menina, e tem Manu que nasceu no mesmo ano, mas no Rio de Janeiro, criado como um menino. Veja só, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul são Brasil, mas eu só conheci o mar quando tinha uns 10 anos. Então eu e Manu vivemos nossas adolescências, essa fase louquíssima, em que acontecem tantas transições, em que estamos literalmente entre mundos, o infantil e o adulto, nos anos 1990. Olha que azar. Ressaca da ditadura, a televisão no centro das vidas, plasmando a cultura, mediando os desejos, Xuxa, Collor, confisco da poupança, a sociedade tropeçando nas ruínas do século, mal se equilibrando entre tudo o que as vanguardas fizeram por nós e a herança imensa e maldita do conservadorismo. Pensando agora, depois de tudo o que aconteceu em termos de arte, cultura e política nos anos 1960 e 1970, 1990 é uma espécie de década adolescente por excelência, não acha?

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