Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|E se Tancredo tivesse subido a rampa?


Ele teria mais legitimidade para mudar o País, romper com o passado, propor o novo

Por Marcelo Rubens Paiva

É difícil explicar o ano de 1985 para quem não o viveu. A esperança era unanimidade. Confiávamos em políticos, na nova política e democracia que construíamos, depois de 21 anos de ditadura.

Acreditávamos que, então, as injustiças sociais seriam combatidas, a economia entraria nos eixos, a liberdade reinaria sobre nós. Com debate, respeitaríamos as diferenças, entenderíamos os conflitos, buscaríamos uma síntese, a solução.

Uma nova Constituição seria costurada democraticamente e resolveria os problemas do País: verbas justas à educação e saúde, direitos individuais, respeito à natureza, reservas indígenas, geraria riqueza, organizaria tributos, política, infraestrutura, Judiciário, polícias, acabaria com a violência urbana. 

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Quase todos participaram das Diretas Já. Todos quiseram participar do processo democrático. Nos unimos em torno do consenso, Tancredo Neves. Foi ministro de Getúlio, o único primeiro-ministro da República, oposição por toda a ditadura, governador, era a mineirice no Poder, de boa prosa, lábia, sábio, calmo, negociador, agregador. 

Foram anos de luta. Professores, funcionários e estudantes, imprensa, artistas, formadores de opinião, parte do empresariado, OAB, ABI, Igreja, e o que interessava, os trabalhadores, tinham a mesma agenda: queremos democracia. 

No dia 15 de março de 1985, ela retornaria. Brasília estava em festa. Mais de 150 chefes de Estado desembarcaram. Porém, deu entrada com forte dor no abdômen, horas antes da posse, no Hospital de Base, o paciente Tancredo Neves. Estava em casa com familiares, ensaiando o discurso de posse. 

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Um diagnóstico errado, de apendicite supurada, levou à internação e a uma cirurgia desnecessária. Cirurgia que o paciente recusava a fazer. Tinha que subir a rampa, tomar posse, ou a transição estaria comprometida. Afinal, o vice, José Sarney, braço civil dos militares, tornara-se um traidor por quem deveria passar a faixa, general Figueiredo, ao mudar de lado e ampliar a ruptura do regime.

O historiador Luis Mir teve aceso a laudos médicos e bastidores do que aconteceu durante as cirurgias e os 39 dias de internação do presidente eleito. Baseado nele, foi produzido O Paciente – O Caso Tancredo Neves, de Sérgio Rezende, que promete ser o filme que dará um nó nas nossas cabeças, feito na hora certa, no lugar certo. E que deve ser visto!

Para Mir, que entrevistou 40 médicos envolvidos, Tancredo poderia ter tomado posse. Bastava antibióticos. Não era caso de cirurgia urgente. Tinha, na verdade, uma infecção e um tumor benigno no intestino, que poderia extrair com calma, depois. 

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Mas o médico Pinheiro Rocha, chamado pelo médico da Câmara, Renault Ribeiro, o operou, não viu apendicite e acreditou ser um divertículo de Meckel. A extração não foi a padrão. A sutura, feita por Rocha, deu em sangramento. Os erros médicos foram se sucedendo. 

Walter Pinotti foi enviado com sua equipe pelo governador Franco Montoro. Rocha impedira a família de levá-lo a São Paulo. Como se dizia no Rio e em Brasília, a “ponte aérea” era o melhor hospital da cidade.

Divergência e vaidade. Acusações. Pânico entre a equipe médica. O médico da família acusou uma obstrução intestinal. Abriram novamente. Não era. Chegaram a falsificar boletins médicos. 

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O paciente de mais de 75 anos teve hemorragia interna, pegou pneumonia, foi transferido para São Paulo, mudou de equipe médica. Tarde demais. Teve infecção generalizada, depois de sete cirurgias.

O filme deixa a política em paralelo. Não vilaniza ninguém. Todos cometerem erros absurdos. Seu elenco é primoroso. Renault (Otavio Muller), Rocha (Leonardo Medeiros), Pinotti (Paulo Betti) viviam sob uma pressão incomparável. O paciente era o líder da transição, pacificação. Atraiu para si a esperança de milhões. Era a cara da Nova República. Precisava tomar posse. A pressa o matou.

Acompanhamos os erros desde o início da internação: a decisão de operar de madrugada; parte da equipe foi a uma ala do hospital, parte para outra; desentubaram o paciente antes do prazo.

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Dezenas de pessoas, deputados, senadores, apertaram-se no centro cirúrgico e acompanharam a operação. Quem iria barrá-los? É a terra do “sabe com quem está falando?”. 

O Brasil acompanhou perplexo pela TV os quase 40 dias de agonia e mistério. Uma multidão acampou nas calçadas do Incor, na Avenida Rebouças: rezas e rituais de muitas religiões; até xamanismo. Uma multidão levou o caixão, junto a um carro de bombeiros, até o aeroporto. O Brasil viu mudo, com lágrimas escorrendo, incrédulo, seu enterro em São João del-Rei.

Tancredo (Othon Bastos), num dado momento, diz: “Eu não merecia”. O Brasil não merecia. O que ficou é a pergunta: “E se?”. Sarney herdou uma economia destroçada: dívida externa enorme, pouca reserva, protecionismo, estatais improdutivas, que só davam prejuízos, sob as garras do dragão da inflação. Fez um governo medíocre, chamado de “década perdida”. 

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Sem coragem, não rompeu com o entulho do regime anterior. Instaurou planos econômicos que desestabilizaram ainda mais a economia, com o forçado congelamento de preços. Pagamos o preço até hoje (literalmente, já que o STF mandou os bancos devolverem perdas sofridas por poupadores dos planos econômicos Bresser, de 1987, e Verão, de 1989). 

Governou como um coronel, graças à distribuição de concessões de rádios e TVs a políticos aliados, patrocinada por outro velho aliado dos militares, ACM. Se Tancredo tivesse assumido, teria mais legitimidade para mudar o País, romper com o passado, propor o novo. O novo que virou um velho doente.

É difícil explicar o ano de 1985 para quem não o viveu. A esperança era unanimidade. Confiávamos em políticos, na nova política e democracia que construíamos, depois de 21 anos de ditadura.

Acreditávamos que, então, as injustiças sociais seriam combatidas, a economia entraria nos eixos, a liberdade reinaria sobre nós. Com debate, respeitaríamos as diferenças, entenderíamos os conflitos, buscaríamos uma síntese, a solução.

Uma nova Constituição seria costurada democraticamente e resolveria os problemas do País: verbas justas à educação e saúde, direitos individuais, respeito à natureza, reservas indígenas, geraria riqueza, organizaria tributos, política, infraestrutura, Judiciário, polícias, acabaria com a violência urbana. 

Quase todos participaram das Diretas Já. Todos quiseram participar do processo democrático. Nos unimos em torno do consenso, Tancredo Neves. Foi ministro de Getúlio, o único primeiro-ministro da República, oposição por toda a ditadura, governador, era a mineirice no Poder, de boa prosa, lábia, sábio, calmo, negociador, agregador. 

Foram anos de luta. Professores, funcionários e estudantes, imprensa, artistas, formadores de opinião, parte do empresariado, OAB, ABI, Igreja, e o que interessava, os trabalhadores, tinham a mesma agenda: queremos democracia. 

No dia 15 de março de 1985, ela retornaria. Brasília estava em festa. Mais de 150 chefes de Estado desembarcaram. Porém, deu entrada com forte dor no abdômen, horas antes da posse, no Hospital de Base, o paciente Tancredo Neves. Estava em casa com familiares, ensaiando o discurso de posse. 

Um diagnóstico errado, de apendicite supurada, levou à internação e a uma cirurgia desnecessária. Cirurgia que o paciente recusava a fazer. Tinha que subir a rampa, tomar posse, ou a transição estaria comprometida. Afinal, o vice, José Sarney, braço civil dos militares, tornara-se um traidor por quem deveria passar a faixa, general Figueiredo, ao mudar de lado e ampliar a ruptura do regime.

O historiador Luis Mir teve aceso a laudos médicos e bastidores do que aconteceu durante as cirurgias e os 39 dias de internação do presidente eleito. Baseado nele, foi produzido O Paciente – O Caso Tancredo Neves, de Sérgio Rezende, que promete ser o filme que dará um nó nas nossas cabeças, feito na hora certa, no lugar certo. E que deve ser visto!

Para Mir, que entrevistou 40 médicos envolvidos, Tancredo poderia ter tomado posse. Bastava antibióticos. Não era caso de cirurgia urgente. Tinha, na verdade, uma infecção e um tumor benigno no intestino, que poderia extrair com calma, depois. 

Mas o médico Pinheiro Rocha, chamado pelo médico da Câmara, Renault Ribeiro, o operou, não viu apendicite e acreditou ser um divertículo de Meckel. A extração não foi a padrão. A sutura, feita por Rocha, deu em sangramento. Os erros médicos foram se sucedendo. 

Walter Pinotti foi enviado com sua equipe pelo governador Franco Montoro. Rocha impedira a família de levá-lo a São Paulo. Como se dizia no Rio e em Brasília, a “ponte aérea” era o melhor hospital da cidade.

Divergência e vaidade. Acusações. Pânico entre a equipe médica. O médico da família acusou uma obstrução intestinal. Abriram novamente. Não era. Chegaram a falsificar boletins médicos. 

O paciente de mais de 75 anos teve hemorragia interna, pegou pneumonia, foi transferido para São Paulo, mudou de equipe médica. Tarde demais. Teve infecção generalizada, depois de sete cirurgias.

O filme deixa a política em paralelo. Não vilaniza ninguém. Todos cometerem erros absurdos. Seu elenco é primoroso. Renault (Otavio Muller), Rocha (Leonardo Medeiros), Pinotti (Paulo Betti) viviam sob uma pressão incomparável. O paciente era o líder da transição, pacificação. Atraiu para si a esperança de milhões. Era a cara da Nova República. Precisava tomar posse. A pressa o matou.

Acompanhamos os erros desde o início da internação: a decisão de operar de madrugada; parte da equipe foi a uma ala do hospital, parte para outra; desentubaram o paciente antes do prazo.

Dezenas de pessoas, deputados, senadores, apertaram-se no centro cirúrgico e acompanharam a operação. Quem iria barrá-los? É a terra do “sabe com quem está falando?”. 

O Brasil acompanhou perplexo pela TV os quase 40 dias de agonia e mistério. Uma multidão acampou nas calçadas do Incor, na Avenida Rebouças: rezas e rituais de muitas religiões; até xamanismo. Uma multidão levou o caixão, junto a um carro de bombeiros, até o aeroporto. O Brasil viu mudo, com lágrimas escorrendo, incrédulo, seu enterro em São João del-Rei.

Tancredo (Othon Bastos), num dado momento, diz: “Eu não merecia”. O Brasil não merecia. O que ficou é a pergunta: “E se?”. Sarney herdou uma economia destroçada: dívida externa enorme, pouca reserva, protecionismo, estatais improdutivas, que só davam prejuízos, sob as garras do dragão da inflação. Fez um governo medíocre, chamado de “década perdida”. 

Sem coragem, não rompeu com o entulho do regime anterior. Instaurou planos econômicos que desestabilizaram ainda mais a economia, com o forçado congelamento de preços. Pagamos o preço até hoje (literalmente, já que o STF mandou os bancos devolverem perdas sofridas por poupadores dos planos econômicos Bresser, de 1987, e Verão, de 1989). 

Governou como um coronel, graças à distribuição de concessões de rádios e TVs a políticos aliados, patrocinada por outro velho aliado dos militares, ACM. Se Tancredo tivesse assumido, teria mais legitimidade para mudar o País, romper com o passado, propor o novo. O novo que virou um velho doente.

É difícil explicar o ano de 1985 para quem não o viveu. A esperança era unanimidade. Confiávamos em políticos, na nova política e democracia que construíamos, depois de 21 anos de ditadura.

Acreditávamos que, então, as injustiças sociais seriam combatidas, a economia entraria nos eixos, a liberdade reinaria sobre nós. Com debate, respeitaríamos as diferenças, entenderíamos os conflitos, buscaríamos uma síntese, a solução.

Uma nova Constituição seria costurada democraticamente e resolveria os problemas do País: verbas justas à educação e saúde, direitos individuais, respeito à natureza, reservas indígenas, geraria riqueza, organizaria tributos, política, infraestrutura, Judiciário, polícias, acabaria com a violência urbana. 

Quase todos participaram das Diretas Já. Todos quiseram participar do processo democrático. Nos unimos em torno do consenso, Tancredo Neves. Foi ministro de Getúlio, o único primeiro-ministro da República, oposição por toda a ditadura, governador, era a mineirice no Poder, de boa prosa, lábia, sábio, calmo, negociador, agregador. 

Foram anos de luta. Professores, funcionários e estudantes, imprensa, artistas, formadores de opinião, parte do empresariado, OAB, ABI, Igreja, e o que interessava, os trabalhadores, tinham a mesma agenda: queremos democracia. 

No dia 15 de março de 1985, ela retornaria. Brasília estava em festa. Mais de 150 chefes de Estado desembarcaram. Porém, deu entrada com forte dor no abdômen, horas antes da posse, no Hospital de Base, o paciente Tancredo Neves. Estava em casa com familiares, ensaiando o discurso de posse. 

Um diagnóstico errado, de apendicite supurada, levou à internação e a uma cirurgia desnecessária. Cirurgia que o paciente recusava a fazer. Tinha que subir a rampa, tomar posse, ou a transição estaria comprometida. Afinal, o vice, José Sarney, braço civil dos militares, tornara-se um traidor por quem deveria passar a faixa, general Figueiredo, ao mudar de lado e ampliar a ruptura do regime.

O historiador Luis Mir teve aceso a laudos médicos e bastidores do que aconteceu durante as cirurgias e os 39 dias de internação do presidente eleito. Baseado nele, foi produzido O Paciente – O Caso Tancredo Neves, de Sérgio Rezende, que promete ser o filme que dará um nó nas nossas cabeças, feito na hora certa, no lugar certo. E que deve ser visto!

Para Mir, que entrevistou 40 médicos envolvidos, Tancredo poderia ter tomado posse. Bastava antibióticos. Não era caso de cirurgia urgente. Tinha, na verdade, uma infecção e um tumor benigno no intestino, que poderia extrair com calma, depois. 

Mas o médico Pinheiro Rocha, chamado pelo médico da Câmara, Renault Ribeiro, o operou, não viu apendicite e acreditou ser um divertículo de Meckel. A extração não foi a padrão. A sutura, feita por Rocha, deu em sangramento. Os erros médicos foram se sucedendo. 

Walter Pinotti foi enviado com sua equipe pelo governador Franco Montoro. Rocha impedira a família de levá-lo a São Paulo. Como se dizia no Rio e em Brasília, a “ponte aérea” era o melhor hospital da cidade.

Divergência e vaidade. Acusações. Pânico entre a equipe médica. O médico da família acusou uma obstrução intestinal. Abriram novamente. Não era. Chegaram a falsificar boletins médicos. 

O paciente de mais de 75 anos teve hemorragia interna, pegou pneumonia, foi transferido para São Paulo, mudou de equipe médica. Tarde demais. Teve infecção generalizada, depois de sete cirurgias.

O filme deixa a política em paralelo. Não vilaniza ninguém. Todos cometerem erros absurdos. Seu elenco é primoroso. Renault (Otavio Muller), Rocha (Leonardo Medeiros), Pinotti (Paulo Betti) viviam sob uma pressão incomparável. O paciente era o líder da transição, pacificação. Atraiu para si a esperança de milhões. Era a cara da Nova República. Precisava tomar posse. A pressa o matou.

Acompanhamos os erros desde o início da internação: a decisão de operar de madrugada; parte da equipe foi a uma ala do hospital, parte para outra; desentubaram o paciente antes do prazo.

Dezenas de pessoas, deputados, senadores, apertaram-se no centro cirúrgico e acompanharam a operação. Quem iria barrá-los? É a terra do “sabe com quem está falando?”. 

O Brasil acompanhou perplexo pela TV os quase 40 dias de agonia e mistério. Uma multidão acampou nas calçadas do Incor, na Avenida Rebouças: rezas e rituais de muitas religiões; até xamanismo. Uma multidão levou o caixão, junto a um carro de bombeiros, até o aeroporto. O Brasil viu mudo, com lágrimas escorrendo, incrédulo, seu enterro em São João del-Rei.

Tancredo (Othon Bastos), num dado momento, diz: “Eu não merecia”. O Brasil não merecia. O que ficou é a pergunta: “E se?”. Sarney herdou uma economia destroçada: dívida externa enorme, pouca reserva, protecionismo, estatais improdutivas, que só davam prejuízos, sob as garras do dragão da inflação. Fez um governo medíocre, chamado de “década perdida”. 

Sem coragem, não rompeu com o entulho do regime anterior. Instaurou planos econômicos que desestabilizaram ainda mais a economia, com o forçado congelamento de preços. Pagamos o preço até hoje (literalmente, já que o STF mandou os bancos devolverem perdas sofridas por poupadores dos planos econômicos Bresser, de 1987, e Verão, de 1989). 

Governou como um coronel, graças à distribuição de concessões de rádios e TVs a políticos aliados, patrocinada por outro velho aliado dos militares, ACM. Se Tancredo tivesse assumido, teria mais legitimidade para mudar o País, romper com o passado, propor o novo. O novo que virou um velho doente.

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