Margaret Atwood reconta 'Ilíada' e 'Odisseia' em releitura feminista


‘A Odisseia de Penélope’ acompanha a mulher de Odisseu, que o espera enquanto ele vive as aventuras narradas por Homero em seus épicos

Por André Cáceres

Os poemas homéricos estão por toda parte. Obras fundadoras da tradição literária ocidental, a Ilíada e a Odisseia são recontadas desde a antiguidade. Em 2005, a escritora canadense Margaret Atwood propôs uma releitura desses épicos gregos do ponto de vista de uma coadjuvante: Penélope, mulher do protagonista Odisseu. O resultado é um olhar irônico da perspectiva feminina não apenas para a antiguidade, mas sobre todos os tempos. Após anos fora de catálogo, A Odisseia de Penélope ganha uma nova edição no Brasil pela Rocco, abrindo novas interpretações da mitologia grega.

A escritora canadense Margaret Atwood Foto: Arden Wray/The New York Times

É evidente que Atwood não foi a primeira pessoa a especular sobre as narrativas de Homero. A Divina Comédia mostra brevemente um encontro de Dante Alighieri com o vagante herói Odisseu, imaginando um final alternativo de sua jornada, em que ele não regressava a Ítaca; em 1922, James Joyce levou a Odisseia da Grécia antiga à Dublin moderna em Ulisses; na ópera, Claudio Monteverdi levou a obra aos palcos em 1640 e, no cinema, Kirk Douglas foi Odisseu em um filme italiano de 1954; até a editora Marvel chegou a transformar a Odisseia para os quadrinhos. Enfim, adaptações não faltam. 

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Contudo, há uma tendência mais recente de subvertê-los por meio de uma perspectiva contemporânea, repensando seu contexto e problematizando algumas de suas questões. Nesse filão estão The Lost Books of the Odyssey (Os Livros Perdidos da Odisseia, 2007), de Zachary Mason, e Circe (2018), de Madeline Miller (lançado no ano passado no Brasil pela editora Minotauro). É nessa chave de leitura que funciona A Odisseia de Penélope. O romance perpassa os acontecimentos da Ilíada, da Odisseia e eventos anteriores e posteriores aos épicos, com uma linguagemteatralizada ea mescla de elementos da estrutura formal da tragédia grega. O monólogo em primeira pessoa de Penélope é entrecortado pelo coro composto porsuas doze escravas, que declamam poemas, entoam cantos e encenam curtas peças ao longo do livro, comentando a ação narrada. Mortas por Odisseupor terem se deitado (mesmo que tenham sido forçadas) com os pretendentes de Penélope, as escravas injustiçadas vão aos poucos se revelando quase tão protagonistas quanto ela.  A maneira como Penélope é retratada na Odisseia reforçapadrões de representação femininas que enfatizam a virtude da espera e da passividade. Enquanto seu marido combate na Guerra de Troia e leva dez anos vivendo aventuras tentando regressar, elao aguarda diligentemente, resistindo às investidas dos pretendentes. “Quão valoroso juízo teve a impecável Penélope”, exalta o canto 24 na tradução de Christian Werner, publicada pela editora Ubu. “Por isso sua fama nunca findará / a de sua excelência, e aos humanos farão um canto / agradável os imortais pela prudente Penélope.” A espera narrada por Penélope no romance de Atwood é bem menos épica: “Odisseu zarpou para Troia. Eu fiquei em Ítaca. O sol se levantava, atravessava o céu e se punha. Só de vez em quando eu pensava nele como a carruagem flamejante de Hélios. A luz fazia o mesmo, mudando conforme a fase. Só de vez em quando eu pensava nela como o barco de prata de Ártemis. Primavera, verão, outono e inverno sucediam-se conforme a ordem prescrita. O vento soprava quase sempre. Telêmaco crescia, ano após ano, comendo muita carne, mimado por todos.” Atwood reverte a situação não como mera estratégia de representatividade, mas para examinar mais de perto as supostas virtudes femininas. Ao narrar suas memórias, Penélope se ressente por ter se tornado uma “lenda edificante”, um “chicote para fustigar outras mulheres”. E alerta as leitoras: “Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês”. Diferente da esposa fiel e dedicada pintada pelos versos homéricos, Atwood encontra em sua Penélope a ambiguidade de uma mulher atormentada – não só por sua espera angustiante, mas pelas calúnias atribuídas a sua personagem pelos intérpretes da Odisseia ao longo dos séculos. “Ele me fez de tola, alguns dizem. Era sua especialidade: fazer os outros de tolos”, desabafa a personagem, que narra o livro postumamente. Sendo um defunto autor, não um autor defunto, Penélope descreve sua condição no além e a culpa que sente ao encontrar suas escravas. Sua narração se dámilênios após os eventos da Guerra de Troia e a justificativa antecipa em anos a era do #MeToo: “O que uma mulher pode fazer quando mexericos escandalosos percorrem o mundo? Se ela se defende, soa culpada. Por isso, esperei”. Ao fim da obra, Odisseu é “julgado” por um tribunalencenado pelos espíritos das escravas – elas passam facilmente despercebidas na Odisseia, mas Atwood buscou outras fontes para recriar seu drama. A conclusão do juiz sobre as acusações contra o heróié uma pérola irônica que hoje poderia ser aplicada para livrar as reputações de muitos figurões de Hollywood de sua irremediável misoginia: “Seria uma pena que esse incidente lamentável, mas menor, manchasse uma carreira que, sob todos os outros aspectos, foi notável.” Margaret Atwood já havia abordado as injustiças históricas derivadas do machismo em obras como O Conto da Aia (1985), uma distopia teocrática em que as mulheres são reduzidas à condição de reprodutoras, e Vulgo Grace (1996), uma ficção histórica sobre uma empregada acusada de assassinato. Em A Odisseia de Penélope, a autora dá voz não só à “prudente” mulher de Odisseu, mas ao espírito feminino, silenciado desde a antiguidade como as doze escravas de Penélope.

Os poemas homéricos estão por toda parte. Obras fundadoras da tradição literária ocidental, a Ilíada e a Odisseia são recontadas desde a antiguidade. Em 2005, a escritora canadense Margaret Atwood propôs uma releitura desses épicos gregos do ponto de vista de uma coadjuvante: Penélope, mulher do protagonista Odisseu. O resultado é um olhar irônico da perspectiva feminina não apenas para a antiguidade, mas sobre todos os tempos. Após anos fora de catálogo, A Odisseia de Penélope ganha uma nova edição no Brasil pela Rocco, abrindo novas interpretações da mitologia grega.

A escritora canadense Margaret Atwood Foto: Arden Wray/The New York Times

É evidente que Atwood não foi a primeira pessoa a especular sobre as narrativas de Homero. A Divina Comédia mostra brevemente um encontro de Dante Alighieri com o vagante herói Odisseu, imaginando um final alternativo de sua jornada, em que ele não regressava a Ítaca; em 1922, James Joyce levou a Odisseia da Grécia antiga à Dublin moderna em Ulisses; na ópera, Claudio Monteverdi levou a obra aos palcos em 1640 e, no cinema, Kirk Douglas foi Odisseu em um filme italiano de 1954; até a editora Marvel chegou a transformar a Odisseia para os quadrinhos. Enfim, adaptações não faltam. 

Contudo, há uma tendência mais recente de subvertê-los por meio de uma perspectiva contemporânea, repensando seu contexto e problematizando algumas de suas questões. Nesse filão estão The Lost Books of the Odyssey (Os Livros Perdidos da Odisseia, 2007), de Zachary Mason, e Circe (2018), de Madeline Miller (lançado no ano passado no Brasil pela editora Minotauro). É nessa chave de leitura que funciona A Odisseia de Penélope. O romance perpassa os acontecimentos da Ilíada, da Odisseia e eventos anteriores e posteriores aos épicos, com uma linguagemteatralizada ea mescla de elementos da estrutura formal da tragédia grega. O monólogo em primeira pessoa de Penélope é entrecortado pelo coro composto porsuas doze escravas, que declamam poemas, entoam cantos e encenam curtas peças ao longo do livro, comentando a ação narrada. Mortas por Odisseupor terem se deitado (mesmo que tenham sido forçadas) com os pretendentes de Penélope, as escravas injustiçadas vão aos poucos se revelando quase tão protagonistas quanto ela.  A maneira como Penélope é retratada na Odisseia reforçapadrões de representação femininas que enfatizam a virtude da espera e da passividade. Enquanto seu marido combate na Guerra de Troia e leva dez anos vivendo aventuras tentando regressar, elao aguarda diligentemente, resistindo às investidas dos pretendentes. “Quão valoroso juízo teve a impecável Penélope”, exalta o canto 24 na tradução de Christian Werner, publicada pela editora Ubu. “Por isso sua fama nunca findará / a de sua excelência, e aos humanos farão um canto / agradável os imortais pela prudente Penélope.” A espera narrada por Penélope no romance de Atwood é bem menos épica: “Odisseu zarpou para Troia. Eu fiquei em Ítaca. O sol se levantava, atravessava o céu e se punha. Só de vez em quando eu pensava nele como a carruagem flamejante de Hélios. A luz fazia o mesmo, mudando conforme a fase. Só de vez em quando eu pensava nela como o barco de prata de Ártemis. Primavera, verão, outono e inverno sucediam-se conforme a ordem prescrita. O vento soprava quase sempre. Telêmaco crescia, ano após ano, comendo muita carne, mimado por todos.” Atwood reverte a situação não como mera estratégia de representatividade, mas para examinar mais de perto as supostas virtudes femininas. Ao narrar suas memórias, Penélope se ressente por ter se tornado uma “lenda edificante”, um “chicote para fustigar outras mulheres”. E alerta as leitoras: “Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês”. Diferente da esposa fiel e dedicada pintada pelos versos homéricos, Atwood encontra em sua Penélope a ambiguidade de uma mulher atormentada – não só por sua espera angustiante, mas pelas calúnias atribuídas a sua personagem pelos intérpretes da Odisseia ao longo dos séculos. “Ele me fez de tola, alguns dizem. Era sua especialidade: fazer os outros de tolos”, desabafa a personagem, que narra o livro postumamente. Sendo um defunto autor, não um autor defunto, Penélope descreve sua condição no além e a culpa que sente ao encontrar suas escravas. Sua narração se dámilênios após os eventos da Guerra de Troia e a justificativa antecipa em anos a era do #MeToo: “O que uma mulher pode fazer quando mexericos escandalosos percorrem o mundo? Se ela se defende, soa culpada. Por isso, esperei”. Ao fim da obra, Odisseu é “julgado” por um tribunalencenado pelos espíritos das escravas – elas passam facilmente despercebidas na Odisseia, mas Atwood buscou outras fontes para recriar seu drama. A conclusão do juiz sobre as acusações contra o heróié uma pérola irônica que hoje poderia ser aplicada para livrar as reputações de muitos figurões de Hollywood de sua irremediável misoginia: “Seria uma pena que esse incidente lamentável, mas menor, manchasse uma carreira que, sob todos os outros aspectos, foi notável.” Margaret Atwood já havia abordado as injustiças históricas derivadas do machismo em obras como O Conto da Aia (1985), uma distopia teocrática em que as mulheres são reduzidas à condição de reprodutoras, e Vulgo Grace (1996), uma ficção histórica sobre uma empregada acusada de assassinato. Em A Odisseia de Penélope, a autora dá voz não só à “prudente” mulher de Odisseu, mas ao espírito feminino, silenciado desde a antiguidade como as doze escravas de Penélope.

Os poemas homéricos estão por toda parte. Obras fundadoras da tradição literária ocidental, a Ilíada e a Odisseia são recontadas desde a antiguidade. Em 2005, a escritora canadense Margaret Atwood propôs uma releitura desses épicos gregos do ponto de vista de uma coadjuvante: Penélope, mulher do protagonista Odisseu. O resultado é um olhar irônico da perspectiva feminina não apenas para a antiguidade, mas sobre todos os tempos. Após anos fora de catálogo, A Odisseia de Penélope ganha uma nova edição no Brasil pela Rocco, abrindo novas interpretações da mitologia grega.

A escritora canadense Margaret Atwood Foto: Arden Wray/The New York Times

É evidente que Atwood não foi a primeira pessoa a especular sobre as narrativas de Homero. A Divina Comédia mostra brevemente um encontro de Dante Alighieri com o vagante herói Odisseu, imaginando um final alternativo de sua jornada, em que ele não regressava a Ítaca; em 1922, James Joyce levou a Odisseia da Grécia antiga à Dublin moderna em Ulisses; na ópera, Claudio Monteverdi levou a obra aos palcos em 1640 e, no cinema, Kirk Douglas foi Odisseu em um filme italiano de 1954; até a editora Marvel chegou a transformar a Odisseia para os quadrinhos. Enfim, adaptações não faltam. 

Contudo, há uma tendência mais recente de subvertê-los por meio de uma perspectiva contemporânea, repensando seu contexto e problematizando algumas de suas questões. Nesse filão estão The Lost Books of the Odyssey (Os Livros Perdidos da Odisseia, 2007), de Zachary Mason, e Circe (2018), de Madeline Miller (lançado no ano passado no Brasil pela editora Minotauro). É nessa chave de leitura que funciona A Odisseia de Penélope. O romance perpassa os acontecimentos da Ilíada, da Odisseia e eventos anteriores e posteriores aos épicos, com uma linguagemteatralizada ea mescla de elementos da estrutura formal da tragédia grega. O monólogo em primeira pessoa de Penélope é entrecortado pelo coro composto porsuas doze escravas, que declamam poemas, entoam cantos e encenam curtas peças ao longo do livro, comentando a ação narrada. Mortas por Odisseupor terem se deitado (mesmo que tenham sido forçadas) com os pretendentes de Penélope, as escravas injustiçadas vão aos poucos se revelando quase tão protagonistas quanto ela.  A maneira como Penélope é retratada na Odisseia reforçapadrões de representação femininas que enfatizam a virtude da espera e da passividade. Enquanto seu marido combate na Guerra de Troia e leva dez anos vivendo aventuras tentando regressar, elao aguarda diligentemente, resistindo às investidas dos pretendentes. “Quão valoroso juízo teve a impecável Penélope”, exalta o canto 24 na tradução de Christian Werner, publicada pela editora Ubu. “Por isso sua fama nunca findará / a de sua excelência, e aos humanos farão um canto / agradável os imortais pela prudente Penélope.” A espera narrada por Penélope no romance de Atwood é bem menos épica: “Odisseu zarpou para Troia. Eu fiquei em Ítaca. O sol se levantava, atravessava o céu e se punha. Só de vez em quando eu pensava nele como a carruagem flamejante de Hélios. A luz fazia o mesmo, mudando conforme a fase. Só de vez em quando eu pensava nela como o barco de prata de Ártemis. Primavera, verão, outono e inverno sucediam-se conforme a ordem prescrita. O vento soprava quase sempre. Telêmaco crescia, ano após ano, comendo muita carne, mimado por todos.” Atwood reverte a situação não como mera estratégia de representatividade, mas para examinar mais de perto as supostas virtudes femininas. Ao narrar suas memórias, Penélope se ressente por ter se tornado uma “lenda edificante”, um “chicote para fustigar outras mulheres”. E alerta as leitoras: “Não sigam meu exemplo, sinto vontade de gritar nos ouvidos de vocês”. Diferente da esposa fiel e dedicada pintada pelos versos homéricos, Atwood encontra em sua Penélope a ambiguidade de uma mulher atormentada – não só por sua espera angustiante, mas pelas calúnias atribuídas a sua personagem pelos intérpretes da Odisseia ao longo dos séculos. “Ele me fez de tola, alguns dizem. Era sua especialidade: fazer os outros de tolos”, desabafa a personagem, que narra o livro postumamente. Sendo um defunto autor, não um autor defunto, Penélope descreve sua condição no além e a culpa que sente ao encontrar suas escravas. Sua narração se dámilênios após os eventos da Guerra de Troia e a justificativa antecipa em anos a era do #MeToo: “O que uma mulher pode fazer quando mexericos escandalosos percorrem o mundo? Se ela se defende, soa culpada. Por isso, esperei”. Ao fim da obra, Odisseu é “julgado” por um tribunalencenado pelos espíritos das escravas – elas passam facilmente despercebidas na Odisseia, mas Atwood buscou outras fontes para recriar seu drama. A conclusão do juiz sobre as acusações contra o heróié uma pérola irônica que hoje poderia ser aplicada para livrar as reputações de muitos figurões de Hollywood de sua irremediável misoginia: “Seria uma pena que esse incidente lamentável, mas menor, manchasse uma carreira que, sob todos os outros aspectos, foi notável.” Margaret Atwood já havia abordado as injustiças históricas derivadas do machismo em obras como O Conto da Aia (1985), uma distopia teocrática em que as mulheres são reduzidas à condição de reprodutoras, e Vulgo Grace (1996), uma ficção histórica sobre uma empregada acusada de assassinato. Em A Odisseia de Penélope, a autora dá voz não só à “prudente” mulher de Odisseu, mas ao espírito feminino, silenciado desde a antiguidade como as doze escravas de Penélope.

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