O romance da escritora argentina María Negroni (1951) é, pode-se dizer, usando uma expressão que ela mesma usa no livro para se referir à literatura, uma “forma elegante de rancor”. Ela escreve à mãe, “a ocupação mais fervorosa e mais danosa” de sua vida. E escreve com o material da sua infância, com seu ressentimento por não ter sido considerada, cuidada. Ou assim lhe parecia. “Vou criar o que aconteceu” - a frase de Clarice Lispector como epígrafe.
O Coração do Dano, publicado originalmente em 2021 e, no Brasil, no final de 2023, pelo novo selo Poente, da WMF Martins Fontes, dedicado a autores contemporâneos, é uma longa carta à essa mulher idealizada na infância, abandonada na vida adulta e já morta quando a narradora revolve essa relação nesta obra que explora os limites da ficção. Trata-se de um inventário de culpas feito de frases curtas e de voltas ao passado, repleto de referências literárias e reflexões sobre o processo criativo, e de autoexame. “Coloco em primeiro plano a intriga, adiciono o ângulo paranoico, subtraio o erro de entender. O resultado é um conto gótico, no meio do caminho entre o cemitério e o monólogo interior.”
Tudo começa com uma “advertência” no lugar da apresentação: “Pensei que talvez, nas bifurcações do caminho, lembrar pudesse equivaler a unir (e a perdoar). Então valeria a pena”, María escreve. Ela diz ainda: “Pelos meandros das páginas, eu poderia olhar as coisas que nem sequer acabam, sem cair e me assustar, sem renunciar de todo à instituição. Não sei se consegui morder o que eu buscava. Não sei, o que é pior, se era imperioso iluminar cada canto do medo”. Resta, ela prossegue, o consolo de ter deixado coisas sem esclarecer - “algo que frutifique no futuro como essas profecias que demoram anos em ser atingidas. Nesse futuro, que pode estar no passado, aposto tudo”.
A autora volta a citar Clarice. E completa a frase da brasileira - “escrever é horrível” - acrescentando que escrever é, também, trapaceiro. “Pois enfeita a dor, coloca plantinhas, fotos, toalha de mesa e depois fica morando lá para sempre, na capela ardente da linguagem, confiando que nada pode piorar porque, se já dói, como poderia doer mais?”
María nos leva neste seu passeio por marcos de sua vida: a infância, a relação entre os pais e o papel de cada um naquela casa, a adolescência, o envolvimento com a política e a militância, o casamento, os filhos, a literatura, seus conflitos, o divórcio. Encontros e desencontros repletos de ditos e não ditos, de culpas e dores. A vida imperfeita. A família disfuncional. Espelho e fuga.
E nos mostra tudo a partir deste seu olhar de vítima em constante diálogo com “sua algoz”, cuja voz também ouvimos iluminando sombras, expondo contradições. Frases, broncas, cartas. A voz ecoando em todas as direções.
A narrativa que María constrói traz memórias de várias épocas - a mãe presente, a mãe morrendo, a mãe morta, a autora menina, a menina escritora. Passado, presente e futuro misturados porque o sentimento é atemporal: desamparo. De outros autores, ela empresta justificativas e validações para o que vive e escreve. De outros - de Marguerite Duras, Camus, Alejandra Pizarnik, Susan Sontag, Simone de Beauvoir, Stendhal -, empresta também frases para construir um “coro de mães letais”.
María Negroni diz que este livro é a prova de que a obra de um autor gira em torno de uma única paisagem. “Nunca saí da casa da infância. Daqui ninguém me tira.”
O Coração do Dano é um livro sobre rancor. E sobre o amor. “Um cemitério belo”, como ela diz.
Coração do Dano
- Autora: María Negroni
- Tradução: Paloma Vidal
- Editora: Poente (R$ 59,90; R$ 41,90 o e-book)