Coluna quinzenal da jornalista Maria Fernanda Rodrigues com dicas de leitura

Opinião|‘O luto é um poço cheio de egoísmo’, reflete personagem de ‘Não Fossem as Sílabas do Sábado’


Romance de Mariana Salomão Carrara conta a improvável história da amizade entre duas jovens mulheres que ficaram viúvas no mesmo momento

Por Maria Fernanda Rodrigues

Era uma manhã de sábado e Ana estava feliz. Da loja de molduras, ela liga para André pedindo ajuda com o pôster do filme preferido do jovem casal, ambos perto dos 30, finalmente enquadrado, porque ela não consegue carregá-lo até a casa. Era pertinho, ele chegaria num instante. Mas ele não chegou.

Um instante. 10 segundos. André está morto. Uma morte estúpida e ridícula ligada à outra morte – de Miguel, que, ao morrer, matou André.

Assim começa Não Fossem As Sílabas do Sábado, mais recente romance lançado por Mariana Salomão Carrara, autora também de Se Deus Me Chamar Não Vou e de É Sempre A Hora da Nossa Morte Amém – que já teve os direitos vendidos para o cinema (Não Fossem As Sílabas do Sábado também daria um belo filme).

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'Não Fossem as Sílabas do Sábado', de Mariana Salomão Carrara, conta a história de duas vizinhas vítimas da mesma tragédia Foto: fda54/Pixabay

Na delegacia, Ana conhece Madalena, mulher de Miguel e sua vizinha, e ela está desfigurada pela dor. Passado um tempo, Madalena toca o interfone, depois a campainha, e vai entrando aos poucos na casa e na vida de Ana, ou no que restou dela. Quer ajudar. Precisa. Ana está grávida – ela ia contar isso ao marido no dia do acidente.

Do fundo da sua dor, Ana não resiste à presença da vizinha, que já entra sem bater, leva bolo, se serve de vinho e nina sua filha. Uma relação de afeto construída lentamente em meio a um processo de luto mútuo e solitário e baseada em sentimentos de raiva e de culpa.

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“Se o assassino morre junto é preciso punir depressa qualquer outro culpado, senão fica em nós”, Ana diz. Para ela, havia muito o que Madalena podia ter feito para evitar a tragédia. Culpar a outra viúva, no entanto, não minimiza a culpa que sente. E se ela não tivesse ligado? E se tivesse pego um táxi? E se não tivessem mudado para aquele apartamento maior, pensando num futuro com filhos?

Ana é a narradora desta história iniciada 10, 12 anos antes, naquele sábado que mudaria tudo e que uniria essas duas mulheres numa relação improvável, de altos e baixos. E de silêncios – porque Ana não quer saber nada sobre o passado da nova amiga, sobre Miguel ou aquele dia infeliz. “O luto é um poço cheio de egoísmos”, diz a narradora. Só a sua dor importa.

Tem também Catarina, a filha, que conhece o pai pelas memórias da mãe, e Francisca, a babá. É uma história de mulheres fortes, marcadas pela ausência de homens, que “fogem”, “não dão conta” ou “morrem”.

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Uma reflexão sobre vida e impermanência. Sobre o que fica de quem vai embora. Memória e apagamento. Maternidade, depressão e privilégio. Resistência e recomeço. Sobre se abrir ao outro – e acolher o outro. Sobre o tempo de sofrer e o tempo de viver. É bonito.

Leia trechos iniciais de ‘Não Fossem as Sílabas do Sábado’

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“Não teria feito a menor diferença. Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente.

“A primeira vez que reparei na Madalena foi na sala de espera do Instituto Médico Legal e ela era um desfiguramento. Uma mulher em ruínas, e eu quis saber se eu já estava aquilo também, se em algumas horas já tinha me tornado aquele espantalho desencarnado e talhado, o rosto dobrado em vincos de uma cor que ia forçando as expressões de dentro pra fora até que toda a cara era um grito travado, e por isso eu procurava nela uma boca escancarada que não vinha, uma boca tão aberta que justificasse o esgar de todo o resto, mas a boca imóvel quase pacífica e eu de novo quis saber se eu já estava assim, mas não, meu rosto ainda nem tinha percebido de vez a minha calamidade. Madalena tinha começado a doer muito antes.”

“A partir de quanto tempo o atraso de alguém começa a ser suspeito, eu era uma pessoa tranquila, nunca tinha me perguntado isso. O André reclamou do meu telefonema disparatado (...) e então disse que ia se vestir e eu insisti que viesse rápido, eu estava no sol e bloqueando quase toda a calçada com o quadro.

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Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora. O ódio que eu tenho por mim por ter odiado o André tão lento, o calor escorrendo por dentro do meu vestido (...)”

Não Fossem as Sílabas do Sábado

Autora: Mariana Carrara

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Editora: Todavia (168 págs.; R$ 62,90; R$ 39,90 o e-book)

Era uma manhã de sábado e Ana estava feliz. Da loja de molduras, ela liga para André pedindo ajuda com o pôster do filme preferido do jovem casal, ambos perto dos 30, finalmente enquadrado, porque ela não consegue carregá-lo até a casa. Era pertinho, ele chegaria num instante. Mas ele não chegou.

Um instante. 10 segundos. André está morto. Uma morte estúpida e ridícula ligada à outra morte – de Miguel, que, ao morrer, matou André.

Assim começa Não Fossem As Sílabas do Sábado, mais recente romance lançado por Mariana Salomão Carrara, autora também de Se Deus Me Chamar Não Vou e de É Sempre A Hora da Nossa Morte Amém – que já teve os direitos vendidos para o cinema (Não Fossem As Sílabas do Sábado também daria um belo filme).

'Não Fossem as Sílabas do Sábado', de Mariana Salomão Carrara, conta a história de duas vizinhas vítimas da mesma tragédia Foto: fda54/Pixabay

Na delegacia, Ana conhece Madalena, mulher de Miguel e sua vizinha, e ela está desfigurada pela dor. Passado um tempo, Madalena toca o interfone, depois a campainha, e vai entrando aos poucos na casa e na vida de Ana, ou no que restou dela. Quer ajudar. Precisa. Ana está grávida – ela ia contar isso ao marido no dia do acidente.

Do fundo da sua dor, Ana não resiste à presença da vizinha, que já entra sem bater, leva bolo, se serve de vinho e nina sua filha. Uma relação de afeto construída lentamente em meio a um processo de luto mútuo e solitário e baseada em sentimentos de raiva e de culpa.

“Se o assassino morre junto é preciso punir depressa qualquer outro culpado, senão fica em nós”, Ana diz. Para ela, havia muito o que Madalena podia ter feito para evitar a tragédia. Culpar a outra viúva, no entanto, não minimiza a culpa que sente. E se ela não tivesse ligado? E se tivesse pego um táxi? E se não tivessem mudado para aquele apartamento maior, pensando num futuro com filhos?

Ana é a narradora desta história iniciada 10, 12 anos antes, naquele sábado que mudaria tudo e que uniria essas duas mulheres numa relação improvável, de altos e baixos. E de silêncios – porque Ana não quer saber nada sobre o passado da nova amiga, sobre Miguel ou aquele dia infeliz. “O luto é um poço cheio de egoísmos”, diz a narradora. Só a sua dor importa.

Tem também Catarina, a filha, que conhece o pai pelas memórias da mãe, e Francisca, a babá. É uma história de mulheres fortes, marcadas pela ausência de homens, que “fogem”, “não dão conta” ou “morrem”.

Uma reflexão sobre vida e impermanência. Sobre o que fica de quem vai embora. Memória e apagamento. Maternidade, depressão e privilégio. Resistência e recomeço. Sobre se abrir ao outro – e acolher o outro. Sobre o tempo de sofrer e o tempo de viver. É bonito.

Leia trechos iniciais de ‘Não Fossem as Sílabas do Sábado’

“Não teria feito a menor diferença. Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente.

“A primeira vez que reparei na Madalena foi na sala de espera do Instituto Médico Legal e ela era um desfiguramento. Uma mulher em ruínas, e eu quis saber se eu já estava aquilo também, se em algumas horas já tinha me tornado aquele espantalho desencarnado e talhado, o rosto dobrado em vincos de uma cor que ia forçando as expressões de dentro pra fora até que toda a cara era um grito travado, e por isso eu procurava nela uma boca escancarada que não vinha, uma boca tão aberta que justificasse o esgar de todo o resto, mas a boca imóvel quase pacífica e eu de novo quis saber se eu já estava assim, mas não, meu rosto ainda nem tinha percebido de vez a minha calamidade. Madalena tinha começado a doer muito antes.”

“A partir de quanto tempo o atraso de alguém começa a ser suspeito, eu era uma pessoa tranquila, nunca tinha me perguntado isso. O André reclamou do meu telefonema disparatado (...) e então disse que ia se vestir e eu insisti que viesse rápido, eu estava no sol e bloqueando quase toda a calçada com o quadro.

Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora. O ódio que eu tenho por mim por ter odiado o André tão lento, o calor escorrendo por dentro do meu vestido (...)”

Não Fossem as Sílabas do Sábado

Autora: Mariana Carrara

Editora: Todavia (168 págs.; R$ 62,90; R$ 39,90 o e-book)

Era uma manhã de sábado e Ana estava feliz. Da loja de molduras, ela liga para André pedindo ajuda com o pôster do filme preferido do jovem casal, ambos perto dos 30, finalmente enquadrado, porque ela não consegue carregá-lo até a casa. Era pertinho, ele chegaria num instante. Mas ele não chegou.

Um instante. 10 segundos. André está morto. Uma morte estúpida e ridícula ligada à outra morte – de Miguel, que, ao morrer, matou André.

Assim começa Não Fossem As Sílabas do Sábado, mais recente romance lançado por Mariana Salomão Carrara, autora também de Se Deus Me Chamar Não Vou e de É Sempre A Hora da Nossa Morte Amém – que já teve os direitos vendidos para o cinema (Não Fossem As Sílabas do Sábado também daria um belo filme).

'Não Fossem as Sílabas do Sábado', de Mariana Salomão Carrara, conta a história de duas vizinhas vítimas da mesma tragédia Foto: fda54/Pixabay

Na delegacia, Ana conhece Madalena, mulher de Miguel e sua vizinha, e ela está desfigurada pela dor. Passado um tempo, Madalena toca o interfone, depois a campainha, e vai entrando aos poucos na casa e na vida de Ana, ou no que restou dela. Quer ajudar. Precisa. Ana está grávida – ela ia contar isso ao marido no dia do acidente.

Do fundo da sua dor, Ana não resiste à presença da vizinha, que já entra sem bater, leva bolo, se serve de vinho e nina sua filha. Uma relação de afeto construída lentamente em meio a um processo de luto mútuo e solitário e baseada em sentimentos de raiva e de culpa.

“Se o assassino morre junto é preciso punir depressa qualquer outro culpado, senão fica em nós”, Ana diz. Para ela, havia muito o que Madalena podia ter feito para evitar a tragédia. Culpar a outra viúva, no entanto, não minimiza a culpa que sente. E se ela não tivesse ligado? E se tivesse pego um táxi? E se não tivessem mudado para aquele apartamento maior, pensando num futuro com filhos?

Ana é a narradora desta história iniciada 10, 12 anos antes, naquele sábado que mudaria tudo e que uniria essas duas mulheres numa relação improvável, de altos e baixos. E de silêncios – porque Ana não quer saber nada sobre o passado da nova amiga, sobre Miguel ou aquele dia infeliz. “O luto é um poço cheio de egoísmos”, diz a narradora. Só a sua dor importa.

Tem também Catarina, a filha, que conhece o pai pelas memórias da mãe, e Francisca, a babá. É uma história de mulheres fortes, marcadas pela ausência de homens, que “fogem”, “não dão conta” ou “morrem”.

Uma reflexão sobre vida e impermanência. Sobre o que fica de quem vai embora. Memória e apagamento. Maternidade, depressão e privilégio. Resistência e recomeço. Sobre se abrir ao outro – e acolher o outro. Sobre o tempo de sofrer e o tempo de viver. É bonito.

Leia trechos iniciais de ‘Não Fossem as Sílabas do Sábado’

“Não teria feito a menor diferença. Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente.

“A primeira vez que reparei na Madalena foi na sala de espera do Instituto Médico Legal e ela era um desfiguramento. Uma mulher em ruínas, e eu quis saber se eu já estava aquilo também, se em algumas horas já tinha me tornado aquele espantalho desencarnado e talhado, o rosto dobrado em vincos de uma cor que ia forçando as expressões de dentro pra fora até que toda a cara era um grito travado, e por isso eu procurava nela uma boca escancarada que não vinha, uma boca tão aberta que justificasse o esgar de todo o resto, mas a boca imóvel quase pacífica e eu de novo quis saber se eu já estava assim, mas não, meu rosto ainda nem tinha percebido de vez a minha calamidade. Madalena tinha começado a doer muito antes.”

“A partir de quanto tempo o atraso de alguém começa a ser suspeito, eu era uma pessoa tranquila, nunca tinha me perguntado isso. O André reclamou do meu telefonema disparatado (...) e então disse que ia se vestir e eu insisti que viesse rápido, eu estava no sol e bloqueando quase toda a calçada com o quadro.

Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora. O ódio que eu tenho por mim por ter odiado o André tão lento, o calor escorrendo por dentro do meu vestido (...)”

Não Fossem as Sílabas do Sábado

Autora: Mariana Carrara

Editora: Todavia (168 págs.; R$ 62,90; R$ 39,90 o e-book)

Era uma manhã de sábado e Ana estava feliz. Da loja de molduras, ela liga para André pedindo ajuda com o pôster do filme preferido do jovem casal, ambos perto dos 30, finalmente enquadrado, porque ela não consegue carregá-lo até a casa. Era pertinho, ele chegaria num instante. Mas ele não chegou.

Um instante. 10 segundos. André está morto. Uma morte estúpida e ridícula ligada à outra morte – de Miguel, que, ao morrer, matou André.

Assim começa Não Fossem As Sílabas do Sábado, mais recente romance lançado por Mariana Salomão Carrara, autora também de Se Deus Me Chamar Não Vou e de É Sempre A Hora da Nossa Morte Amém – que já teve os direitos vendidos para o cinema (Não Fossem As Sílabas do Sábado também daria um belo filme).

'Não Fossem as Sílabas do Sábado', de Mariana Salomão Carrara, conta a história de duas vizinhas vítimas da mesma tragédia Foto: fda54/Pixabay

Na delegacia, Ana conhece Madalena, mulher de Miguel e sua vizinha, e ela está desfigurada pela dor. Passado um tempo, Madalena toca o interfone, depois a campainha, e vai entrando aos poucos na casa e na vida de Ana, ou no que restou dela. Quer ajudar. Precisa. Ana está grávida – ela ia contar isso ao marido no dia do acidente.

Do fundo da sua dor, Ana não resiste à presença da vizinha, que já entra sem bater, leva bolo, se serve de vinho e nina sua filha. Uma relação de afeto construída lentamente em meio a um processo de luto mútuo e solitário e baseada em sentimentos de raiva e de culpa.

“Se o assassino morre junto é preciso punir depressa qualquer outro culpado, senão fica em nós”, Ana diz. Para ela, havia muito o que Madalena podia ter feito para evitar a tragédia. Culpar a outra viúva, no entanto, não minimiza a culpa que sente. E se ela não tivesse ligado? E se tivesse pego um táxi? E se não tivessem mudado para aquele apartamento maior, pensando num futuro com filhos?

Ana é a narradora desta história iniciada 10, 12 anos antes, naquele sábado que mudaria tudo e que uniria essas duas mulheres numa relação improvável, de altos e baixos. E de silêncios – porque Ana não quer saber nada sobre o passado da nova amiga, sobre Miguel ou aquele dia infeliz. “O luto é um poço cheio de egoísmos”, diz a narradora. Só a sua dor importa.

Tem também Catarina, a filha, que conhece o pai pelas memórias da mãe, e Francisca, a babá. É uma história de mulheres fortes, marcadas pela ausência de homens, que “fogem”, “não dão conta” ou “morrem”.

Uma reflexão sobre vida e impermanência. Sobre o que fica de quem vai embora. Memória e apagamento. Maternidade, depressão e privilégio. Resistência e recomeço. Sobre se abrir ao outro – e acolher o outro. Sobre o tempo de sofrer e o tempo de viver. É bonito.

Leia trechos iniciais de ‘Não Fossem as Sílabas do Sábado’

“Não teria feito a menor diferença. Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente.

“A primeira vez que reparei na Madalena foi na sala de espera do Instituto Médico Legal e ela era um desfiguramento. Uma mulher em ruínas, e eu quis saber se eu já estava aquilo também, se em algumas horas já tinha me tornado aquele espantalho desencarnado e talhado, o rosto dobrado em vincos de uma cor que ia forçando as expressões de dentro pra fora até que toda a cara era um grito travado, e por isso eu procurava nela uma boca escancarada que não vinha, uma boca tão aberta que justificasse o esgar de todo o resto, mas a boca imóvel quase pacífica e eu de novo quis saber se eu já estava assim, mas não, meu rosto ainda nem tinha percebido de vez a minha calamidade. Madalena tinha começado a doer muito antes.”

“A partir de quanto tempo o atraso de alguém começa a ser suspeito, eu era uma pessoa tranquila, nunca tinha me perguntado isso. O André reclamou do meu telefonema disparatado (...) e então disse que ia se vestir e eu insisti que viesse rápido, eu estava no sol e bloqueando quase toda a calçada com o quadro.

Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora. O ódio que eu tenho por mim por ter odiado o André tão lento, o calor escorrendo por dentro do meu vestido (...)”

Não Fossem as Sílabas do Sábado

Autora: Mariana Carrara

Editora: Todavia (168 págs.; R$ 62,90; R$ 39,90 o e-book)

Era uma manhã de sábado e Ana estava feliz. Da loja de molduras, ela liga para André pedindo ajuda com o pôster do filme preferido do jovem casal, ambos perto dos 30, finalmente enquadrado, porque ela não consegue carregá-lo até a casa. Era pertinho, ele chegaria num instante. Mas ele não chegou.

Um instante. 10 segundos. André está morto. Uma morte estúpida e ridícula ligada à outra morte – de Miguel, que, ao morrer, matou André.

Assim começa Não Fossem As Sílabas do Sábado, mais recente romance lançado por Mariana Salomão Carrara, autora também de Se Deus Me Chamar Não Vou e de É Sempre A Hora da Nossa Morte Amém – que já teve os direitos vendidos para o cinema (Não Fossem As Sílabas do Sábado também daria um belo filme).

'Não Fossem as Sílabas do Sábado', de Mariana Salomão Carrara, conta a história de duas vizinhas vítimas da mesma tragédia Foto: fda54/Pixabay

Na delegacia, Ana conhece Madalena, mulher de Miguel e sua vizinha, e ela está desfigurada pela dor. Passado um tempo, Madalena toca o interfone, depois a campainha, e vai entrando aos poucos na casa e na vida de Ana, ou no que restou dela. Quer ajudar. Precisa. Ana está grávida – ela ia contar isso ao marido no dia do acidente.

Do fundo da sua dor, Ana não resiste à presença da vizinha, que já entra sem bater, leva bolo, se serve de vinho e nina sua filha. Uma relação de afeto construída lentamente em meio a um processo de luto mútuo e solitário e baseada em sentimentos de raiva e de culpa.

“Se o assassino morre junto é preciso punir depressa qualquer outro culpado, senão fica em nós”, Ana diz. Para ela, havia muito o que Madalena podia ter feito para evitar a tragédia. Culpar a outra viúva, no entanto, não minimiza a culpa que sente. E se ela não tivesse ligado? E se tivesse pego um táxi? E se não tivessem mudado para aquele apartamento maior, pensando num futuro com filhos?

Ana é a narradora desta história iniciada 10, 12 anos antes, naquele sábado que mudaria tudo e que uniria essas duas mulheres numa relação improvável, de altos e baixos. E de silêncios – porque Ana não quer saber nada sobre o passado da nova amiga, sobre Miguel ou aquele dia infeliz. “O luto é um poço cheio de egoísmos”, diz a narradora. Só a sua dor importa.

Tem também Catarina, a filha, que conhece o pai pelas memórias da mãe, e Francisca, a babá. É uma história de mulheres fortes, marcadas pela ausência de homens, que “fogem”, “não dão conta” ou “morrem”.

Uma reflexão sobre vida e impermanência. Sobre o que fica de quem vai embora. Memória e apagamento. Maternidade, depressão e privilégio. Resistência e recomeço. Sobre se abrir ao outro – e acolher o outro. Sobre o tempo de sofrer e o tempo de viver. É bonito.

Leia trechos iniciais de ‘Não Fossem as Sílabas do Sábado’

“Não teria feito a menor diferença. Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente.

“A primeira vez que reparei na Madalena foi na sala de espera do Instituto Médico Legal e ela era um desfiguramento. Uma mulher em ruínas, e eu quis saber se eu já estava aquilo também, se em algumas horas já tinha me tornado aquele espantalho desencarnado e talhado, o rosto dobrado em vincos de uma cor que ia forçando as expressões de dentro pra fora até que toda a cara era um grito travado, e por isso eu procurava nela uma boca escancarada que não vinha, uma boca tão aberta que justificasse o esgar de todo o resto, mas a boca imóvel quase pacífica e eu de novo quis saber se eu já estava assim, mas não, meu rosto ainda nem tinha percebido de vez a minha calamidade. Madalena tinha começado a doer muito antes.”

“A partir de quanto tempo o atraso de alguém começa a ser suspeito, eu era uma pessoa tranquila, nunca tinha me perguntado isso. O André reclamou do meu telefonema disparatado (...) e então disse que ia se vestir e eu insisti que viesse rápido, eu estava no sol e bloqueando quase toda a calçada com o quadro.

Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora. O ódio que eu tenho por mim por ter odiado o André tão lento, o calor escorrendo por dentro do meu vestido (...)”

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Editora de Cultura e jornalista especializada em literatura e mercado editorial

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