Evitei os livros, os filmes, as séries sobre a pandemia. Viver aquilo já tinha sido suficiente. Mas comecei a ler Depois da Chuva, livro de estreia de Clarisse Escorel, mesmo com o alerta: a maioria das crônicas foi escrita entre junho de 2020 e de 2022. Histórias, portanto, situadas nesta primeira pandemia que vivemos, e sobrevivemos.
Há angústia e aflição, mas não há morte nem o peso da tragédia. Ela descreve as novas rotinas de uma população que teve o privilégio de poder ficar em casa, que redescobriu a vida em família, passou mais tempo com os filhos, cuidou da limpeza, lavou embalagem por embalagem, viveu o looping da rotina com prazo indeterminado e da louça sobre a pia. Máscaras e placas de acrílico, os novos barulhos no prédio com os vizinhos presentes. O silêncio das ruas. Os filhos entrando pré-adolescentes no isolamento, as aulas online, o medo pelos pais já mais velhos. Um registro do que foi novo e imprevisível, mas contornável, para uma parcela da população (embora a conta continue chegando), diante de todo o resto trágico.
A crônica que dá nome ao livro conta uma história de 2019. Durante aquela grande chuva que atingiu o Rio num dia de abril, ela, a mãe, num carro, saindo do trabalho, pensa nos filhos também ilhados, num táxi. Clarisse é advogada. Conta isso em algumas crônicas, fala da “fantasia” que vestiu por muitos anos. Uma advogada numa família de artistas e intelectuais. Natural que a literatura aparecesse.
Em Hemingway, ela leu que entre as precondições para ser um bom escritor se inclui uma infância infeliz. Mas foi de suas memórias mais afetuosas da infância, do amor que sentiu e que recebeu, que nasceram suas crônicas mais bonitas. Aqui, não há traumas sendo transformados em outra coisa. Há memória e há saudade. E esse lugar-família para onde voltar – nem que seja puxando o fio da memória – quando a angústia bate.
Independentemente de ela escrever sobre Antonio Candido ou Gilda de Mello e Souza, seus avós, ou de Ana Luisa e Eduardo Escorel, seus pais, ela escreve sobre avós e pais, e sobre filhos. Sobre ser mãe, filha e irmã. Alguns desses textos dialogam entre si. São bonitos.
Há crônicas sobre a escritora Lucia Berlin e relembrando um encontro com Clarice. A polarização política recente também está lá. O pano de fundo é quase sempre a zona sul do Rio.
Em Jardineiro, ela propõe uma “poda periódica nas pessoas”: um jardineiro tirando de nós o que não serve mais – “sentimentos, pessoas, memórias remoídas. Meus ramos praguejados, improdutivos, doentes ou mortos”. Para crescermos mais fortes.
Depois da Chuva
Autora: Clarisse Escorel
Editora: Ouro Sobre Azul (208 págs.; R$ 79)