Marina Abramovic fala sobre sua vida e arte em livro de memórias


'Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic'

Por Dirce Waltrick do Amarante
A artista sérvia Marina Abramovic atua em 'The Biography Remix', dirigida pelo holandêsMichael Laub em 2005, em Avignon, na França Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP/Getty Images

Em Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic, que acaba de ser publicado no Brasil, a performer, nascida em 1946, em Belgrado, na antiga Iugoslávia, hoje Sérvia, divide com os leitores alguns momentos importantes de sua vida, que, como ela mesma faz questão de frisar, não se separa de sua obra: “Meu trabalho e minha vida são muito interligados. Ao longo de toda a minha carreira, produzi obras cujo significado inconsciente só se tornou claro para mim com o passar do tempo.”

De fato, a vida de Marina se reflete em sua obra. Seus pais eram partisans, membros do Partido Comunista iugoslavo, e lutaram contra a ocupação nazista durante a 2ª. Guerra Mundial. Deles, Marina teria herdado a força e a determinação. Ao falar de Gold Found by The Artist (Ouro Descoberto pelo Artista, 1981), performance em que ela e seu parceiro Ulay deveriam permanecer por oito horas, ao longo de algumas semanas, sentados cada um de um lado de uma mesa sobre a qual havia pepitas de ouro, olhando-se sem se mexer, Marina lembra que, numa das apresentações, Ulay, depois de fortes dores no corpo, desistiu de atuar, ao contrário dela, que se manteve firme, apesar do cansaço e das dores, até o final do trabalho. Segundo Marina, a diferença entre eles estava na herança dos “partisans, aquela determinação de atravessar paredes que meus pais tinham transmitido a mim”. 

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Quanto à sua mãe, ela a descreve como uma mulher autoritária, que sabia suportar a dor e que nunca se queixava nem permitia que a filha o fizesse, de modo que as enxaquecas que assolavam a jovem Marina deveriam ser suportadas sem reclamações. Muitas performances exigem de Marina controle absoluto sobre o sofrimento corporal. Esse era o caso de Thomas Lips (Lábios de Thomas, 1975), em que a artista desenhava com gilete uma estrela em seu abdômen e se “açoitava até não sentir mais dor nenhuma”. Esse controle, imagino, ela aprendeu desde cedo com a sua mãe. 

As lembranças com seus familiares são terríveis. Seus momentos de felicidade são descritos ao lado dos amigos e também dos amantes Ulay e Paolo, apesar de eles terem lhe causado profunda dor espiritual; essa, para Marina, era incontrolável. A artista destaca em suas memórias a vida ao lado de Ulay, suas aventuras pelo mundo, desde a visita ao deserto central da Austrália e do contato com os aborígines até a vida errante pela Europa dentro de um furgão. Essas aventuras são descritas como laboratórios de criação para novas performances. Em pleno deserto australiano, por exemplo, surgiu a ideia para The Lovers (Os Amantes, 1988): na solidão absoluta do lugar, lembraram-se do verso de um poema chinês do século 2, Confissões da Grande Muralha: “A Terra é pequena e azul, e eu sou uma pequena fissura nela.” 

Em The Lovers, eles, os amantes, partiriam, solitários, das extremidades da Grande Muralha e se encontrariam no meio dela, onde se casariam. Mas quando, por fim, conseguiram vencer a burocracia chinesa dos anos 1980 e executar o trabalho, a relação entre eles havia se deteriorado. Porém, não desistiram da performance; apenas mudaram seu final e, em vez de se casarem no meio do caminho, selaram sua separação. As memórias de Marina revelam como essa e outras performances foram concebidas. 

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Seu livro destaca ainda o aspecto místico de sua obra e de sua personalidade. Marina teria herdado esse misticismo de sua avó materna, Milica, que lia a sorte e costumava derramar um copo de água por cima da neta antes de ela ir para a escola. Esse ritual, acreditava a avó, a faria tirar notas altas. De acordo com a artista, “esses sinais e rituais eram uma espécie de espiritualidade para mim. Eles também me conectavam à minha vida interior e aos meus sonhos”. A espiritualidade está presente em muitas de suas performances, entre elas, The Artist Is Present (A Artista Está Presente, 2010) e 512 Hours (512 horas), da qual participei, em 2014, na Serpentine Gallery, em Londres. 

Marina lembra que, ao vir ao Brasil estudar xamanismo, “os xamãs ensinavam os mesmos tipos de sinais”. A propósito do Brasil, Marina conta sua viagem a Serra Pelada, a Curitiba, a São Paulo e a Abadiânia. Revela ainda ter encontrado na Europa, nos anos 1970, o artista brasileiro Antonio Dias, que a teria impressionado.

Há passagens hilariantes no livro de Marina Abramovic, que tem muito bom humor, um humor balcânico, como ela diz. Numa dessas passagens, ela conta uma experiência com monges budistas que a convidaram para prepará-los para uma apresentação num festival étnico em Berlim. Marina viajou ao Tibete e passou algum tempo lá ensaiando 12 monges para a apresentação. Feito isso, voltou para a Alemanha. Cinco dias antes da apresentação, 12 monges chegaram a Berlim, mas não eram os 12 que ela havia preparado, eram outros completamente desconhecidos. Ao perguntar onde estavam “seus monges”, responderam-lhe que aqueles não tinham passaporte; então, vieram esses no lugar. Marina enlouqueceu, mas tudo deu certo ao final.

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*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de 'Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo' (Ed. Iluminuras)

Capa do livro de memórias 'Pelas Paredes', de Marina Abramovic 

Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic Autora: Marina AbramovicTradução: Waldea PereiraEditora: José Olympio 416 páginas R$ 69,90

A artista sérvia Marina Abramovic atua em 'The Biography Remix', dirigida pelo holandêsMichael Laub em 2005, em Avignon, na França Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP/Getty Images

Em Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic, que acaba de ser publicado no Brasil, a performer, nascida em 1946, em Belgrado, na antiga Iugoslávia, hoje Sérvia, divide com os leitores alguns momentos importantes de sua vida, que, como ela mesma faz questão de frisar, não se separa de sua obra: “Meu trabalho e minha vida são muito interligados. Ao longo de toda a minha carreira, produzi obras cujo significado inconsciente só se tornou claro para mim com o passar do tempo.”

De fato, a vida de Marina se reflete em sua obra. Seus pais eram partisans, membros do Partido Comunista iugoslavo, e lutaram contra a ocupação nazista durante a 2ª. Guerra Mundial. Deles, Marina teria herdado a força e a determinação. Ao falar de Gold Found by The Artist (Ouro Descoberto pelo Artista, 1981), performance em que ela e seu parceiro Ulay deveriam permanecer por oito horas, ao longo de algumas semanas, sentados cada um de um lado de uma mesa sobre a qual havia pepitas de ouro, olhando-se sem se mexer, Marina lembra que, numa das apresentações, Ulay, depois de fortes dores no corpo, desistiu de atuar, ao contrário dela, que se manteve firme, apesar do cansaço e das dores, até o final do trabalho. Segundo Marina, a diferença entre eles estava na herança dos “partisans, aquela determinação de atravessar paredes que meus pais tinham transmitido a mim”. 

Quanto à sua mãe, ela a descreve como uma mulher autoritária, que sabia suportar a dor e que nunca se queixava nem permitia que a filha o fizesse, de modo que as enxaquecas que assolavam a jovem Marina deveriam ser suportadas sem reclamações. Muitas performances exigem de Marina controle absoluto sobre o sofrimento corporal. Esse era o caso de Thomas Lips (Lábios de Thomas, 1975), em que a artista desenhava com gilete uma estrela em seu abdômen e se “açoitava até não sentir mais dor nenhuma”. Esse controle, imagino, ela aprendeu desde cedo com a sua mãe. 

As lembranças com seus familiares são terríveis. Seus momentos de felicidade são descritos ao lado dos amigos e também dos amantes Ulay e Paolo, apesar de eles terem lhe causado profunda dor espiritual; essa, para Marina, era incontrolável. A artista destaca em suas memórias a vida ao lado de Ulay, suas aventuras pelo mundo, desde a visita ao deserto central da Austrália e do contato com os aborígines até a vida errante pela Europa dentro de um furgão. Essas aventuras são descritas como laboratórios de criação para novas performances. Em pleno deserto australiano, por exemplo, surgiu a ideia para The Lovers (Os Amantes, 1988): na solidão absoluta do lugar, lembraram-se do verso de um poema chinês do século 2, Confissões da Grande Muralha: “A Terra é pequena e azul, e eu sou uma pequena fissura nela.” 

Em The Lovers, eles, os amantes, partiriam, solitários, das extremidades da Grande Muralha e se encontrariam no meio dela, onde se casariam. Mas quando, por fim, conseguiram vencer a burocracia chinesa dos anos 1980 e executar o trabalho, a relação entre eles havia se deteriorado. Porém, não desistiram da performance; apenas mudaram seu final e, em vez de se casarem no meio do caminho, selaram sua separação. As memórias de Marina revelam como essa e outras performances foram concebidas. 

Seu livro destaca ainda o aspecto místico de sua obra e de sua personalidade. Marina teria herdado esse misticismo de sua avó materna, Milica, que lia a sorte e costumava derramar um copo de água por cima da neta antes de ela ir para a escola. Esse ritual, acreditava a avó, a faria tirar notas altas. De acordo com a artista, “esses sinais e rituais eram uma espécie de espiritualidade para mim. Eles também me conectavam à minha vida interior e aos meus sonhos”. A espiritualidade está presente em muitas de suas performances, entre elas, The Artist Is Present (A Artista Está Presente, 2010) e 512 Hours (512 horas), da qual participei, em 2014, na Serpentine Gallery, em Londres. 

Marina lembra que, ao vir ao Brasil estudar xamanismo, “os xamãs ensinavam os mesmos tipos de sinais”. A propósito do Brasil, Marina conta sua viagem a Serra Pelada, a Curitiba, a São Paulo e a Abadiânia. Revela ainda ter encontrado na Europa, nos anos 1970, o artista brasileiro Antonio Dias, que a teria impressionado.

Há passagens hilariantes no livro de Marina Abramovic, que tem muito bom humor, um humor balcânico, como ela diz. Numa dessas passagens, ela conta uma experiência com monges budistas que a convidaram para prepará-los para uma apresentação num festival étnico em Berlim. Marina viajou ao Tibete e passou algum tempo lá ensaiando 12 monges para a apresentação. Feito isso, voltou para a Alemanha. Cinco dias antes da apresentação, 12 monges chegaram a Berlim, mas não eram os 12 que ela havia preparado, eram outros completamente desconhecidos. Ao perguntar onde estavam “seus monges”, responderam-lhe que aqueles não tinham passaporte; então, vieram esses no lugar. Marina enlouqueceu, mas tudo deu certo ao final.

*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de 'Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo' (Ed. Iluminuras)

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Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic Autora: Marina AbramovicTradução: Waldea PereiraEditora: José Olympio 416 páginas R$ 69,90

A artista sérvia Marina Abramovic atua em 'The Biography Remix', dirigida pelo holandêsMichael Laub em 2005, em Avignon, na França Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP/Getty Images

Em Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic, que acaba de ser publicado no Brasil, a performer, nascida em 1946, em Belgrado, na antiga Iugoslávia, hoje Sérvia, divide com os leitores alguns momentos importantes de sua vida, que, como ela mesma faz questão de frisar, não se separa de sua obra: “Meu trabalho e minha vida são muito interligados. Ao longo de toda a minha carreira, produzi obras cujo significado inconsciente só se tornou claro para mim com o passar do tempo.”

De fato, a vida de Marina se reflete em sua obra. Seus pais eram partisans, membros do Partido Comunista iugoslavo, e lutaram contra a ocupação nazista durante a 2ª. Guerra Mundial. Deles, Marina teria herdado a força e a determinação. Ao falar de Gold Found by The Artist (Ouro Descoberto pelo Artista, 1981), performance em que ela e seu parceiro Ulay deveriam permanecer por oito horas, ao longo de algumas semanas, sentados cada um de um lado de uma mesa sobre a qual havia pepitas de ouro, olhando-se sem se mexer, Marina lembra que, numa das apresentações, Ulay, depois de fortes dores no corpo, desistiu de atuar, ao contrário dela, que se manteve firme, apesar do cansaço e das dores, até o final do trabalho. Segundo Marina, a diferença entre eles estava na herança dos “partisans, aquela determinação de atravessar paredes que meus pais tinham transmitido a mim”. 

Quanto à sua mãe, ela a descreve como uma mulher autoritária, que sabia suportar a dor e que nunca se queixava nem permitia que a filha o fizesse, de modo que as enxaquecas que assolavam a jovem Marina deveriam ser suportadas sem reclamações. Muitas performances exigem de Marina controle absoluto sobre o sofrimento corporal. Esse era o caso de Thomas Lips (Lábios de Thomas, 1975), em que a artista desenhava com gilete uma estrela em seu abdômen e se “açoitava até não sentir mais dor nenhuma”. Esse controle, imagino, ela aprendeu desde cedo com a sua mãe. 

As lembranças com seus familiares são terríveis. Seus momentos de felicidade são descritos ao lado dos amigos e também dos amantes Ulay e Paolo, apesar de eles terem lhe causado profunda dor espiritual; essa, para Marina, era incontrolável. A artista destaca em suas memórias a vida ao lado de Ulay, suas aventuras pelo mundo, desde a visita ao deserto central da Austrália e do contato com os aborígines até a vida errante pela Europa dentro de um furgão. Essas aventuras são descritas como laboratórios de criação para novas performances. Em pleno deserto australiano, por exemplo, surgiu a ideia para The Lovers (Os Amantes, 1988): na solidão absoluta do lugar, lembraram-se do verso de um poema chinês do século 2, Confissões da Grande Muralha: “A Terra é pequena e azul, e eu sou uma pequena fissura nela.” 

Em The Lovers, eles, os amantes, partiriam, solitários, das extremidades da Grande Muralha e se encontrariam no meio dela, onde se casariam. Mas quando, por fim, conseguiram vencer a burocracia chinesa dos anos 1980 e executar o trabalho, a relação entre eles havia se deteriorado. Porém, não desistiram da performance; apenas mudaram seu final e, em vez de se casarem no meio do caminho, selaram sua separação. As memórias de Marina revelam como essa e outras performances foram concebidas. 

Seu livro destaca ainda o aspecto místico de sua obra e de sua personalidade. Marina teria herdado esse misticismo de sua avó materna, Milica, que lia a sorte e costumava derramar um copo de água por cima da neta antes de ela ir para a escola. Esse ritual, acreditava a avó, a faria tirar notas altas. De acordo com a artista, “esses sinais e rituais eram uma espécie de espiritualidade para mim. Eles também me conectavam à minha vida interior e aos meus sonhos”. A espiritualidade está presente em muitas de suas performances, entre elas, The Artist Is Present (A Artista Está Presente, 2010) e 512 Hours (512 horas), da qual participei, em 2014, na Serpentine Gallery, em Londres. 

Marina lembra que, ao vir ao Brasil estudar xamanismo, “os xamãs ensinavam os mesmos tipos de sinais”. A propósito do Brasil, Marina conta sua viagem a Serra Pelada, a Curitiba, a São Paulo e a Abadiânia. Revela ainda ter encontrado na Europa, nos anos 1970, o artista brasileiro Antonio Dias, que a teria impressionado.

Há passagens hilariantes no livro de Marina Abramovic, que tem muito bom humor, um humor balcânico, como ela diz. Numa dessas passagens, ela conta uma experiência com monges budistas que a convidaram para prepará-los para uma apresentação num festival étnico em Berlim. Marina viajou ao Tibete e passou algum tempo lá ensaiando 12 monges para a apresentação. Feito isso, voltou para a Alemanha. Cinco dias antes da apresentação, 12 monges chegaram a Berlim, mas não eram os 12 que ela havia preparado, eram outros completamente desconhecidos. Ao perguntar onde estavam “seus monges”, responderam-lhe que aqueles não tinham passaporte; então, vieram esses no lugar. Marina enlouqueceu, mas tudo deu certo ao final.

*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de 'Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo' (Ed. Iluminuras)

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Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic Autora: Marina AbramovicTradução: Waldea PereiraEditora: José Olympio 416 páginas R$ 69,90

A artista sérvia Marina Abramovic atua em 'The Biography Remix', dirigida pelo holandêsMichael Laub em 2005, em Avignon, na França Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP/Getty Images

Em Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic, que acaba de ser publicado no Brasil, a performer, nascida em 1946, em Belgrado, na antiga Iugoslávia, hoje Sérvia, divide com os leitores alguns momentos importantes de sua vida, que, como ela mesma faz questão de frisar, não se separa de sua obra: “Meu trabalho e minha vida são muito interligados. Ao longo de toda a minha carreira, produzi obras cujo significado inconsciente só se tornou claro para mim com o passar do tempo.”

De fato, a vida de Marina se reflete em sua obra. Seus pais eram partisans, membros do Partido Comunista iugoslavo, e lutaram contra a ocupação nazista durante a 2ª. Guerra Mundial. Deles, Marina teria herdado a força e a determinação. Ao falar de Gold Found by The Artist (Ouro Descoberto pelo Artista, 1981), performance em que ela e seu parceiro Ulay deveriam permanecer por oito horas, ao longo de algumas semanas, sentados cada um de um lado de uma mesa sobre a qual havia pepitas de ouro, olhando-se sem se mexer, Marina lembra que, numa das apresentações, Ulay, depois de fortes dores no corpo, desistiu de atuar, ao contrário dela, que se manteve firme, apesar do cansaço e das dores, até o final do trabalho. Segundo Marina, a diferença entre eles estava na herança dos “partisans, aquela determinação de atravessar paredes que meus pais tinham transmitido a mim”. 

Quanto à sua mãe, ela a descreve como uma mulher autoritária, que sabia suportar a dor e que nunca se queixava nem permitia que a filha o fizesse, de modo que as enxaquecas que assolavam a jovem Marina deveriam ser suportadas sem reclamações. Muitas performances exigem de Marina controle absoluto sobre o sofrimento corporal. Esse era o caso de Thomas Lips (Lábios de Thomas, 1975), em que a artista desenhava com gilete uma estrela em seu abdômen e se “açoitava até não sentir mais dor nenhuma”. Esse controle, imagino, ela aprendeu desde cedo com a sua mãe. 

As lembranças com seus familiares são terríveis. Seus momentos de felicidade são descritos ao lado dos amigos e também dos amantes Ulay e Paolo, apesar de eles terem lhe causado profunda dor espiritual; essa, para Marina, era incontrolável. A artista destaca em suas memórias a vida ao lado de Ulay, suas aventuras pelo mundo, desde a visita ao deserto central da Austrália e do contato com os aborígines até a vida errante pela Europa dentro de um furgão. Essas aventuras são descritas como laboratórios de criação para novas performances. Em pleno deserto australiano, por exemplo, surgiu a ideia para The Lovers (Os Amantes, 1988): na solidão absoluta do lugar, lembraram-se do verso de um poema chinês do século 2, Confissões da Grande Muralha: “A Terra é pequena e azul, e eu sou uma pequena fissura nela.” 

Em The Lovers, eles, os amantes, partiriam, solitários, das extremidades da Grande Muralha e se encontrariam no meio dela, onde se casariam. Mas quando, por fim, conseguiram vencer a burocracia chinesa dos anos 1980 e executar o trabalho, a relação entre eles havia se deteriorado. Porém, não desistiram da performance; apenas mudaram seu final e, em vez de se casarem no meio do caminho, selaram sua separação. As memórias de Marina revelam como essa e outras performances foram concebidas. 

Seu livro destaca ainda o aspecto místico de sua obra e de sua personalidade. Marina teria herdado esse misticismo de sua avó materna, Milica, que lia a sorte e costumava derramar um copo de água por cima da neta antes de ela ir para a escola. Esse ritual, acreditava a avó, a faria tirar notas altas. De acordo com a artista, “esses sinais e rituais eram uma espécie de espiritualidade para mim. Eles também me conectavam à minha vida interior e aos meus sonhos”. A espiritualidade está presente em muitas de suas performances, entre elas, The Artist Is Present (A Artista Está Presente, 2010) e 512 Hours (512 horas), da qual participei, em 2014, na Serpentine Gallery, em Londres. 

Marina lembra que, ao vir ao Brasil estudar xamanismo, “os xamãs ensinavam os mesmos tipos de sinais”. A propósito do Brasil, Marina conta sua viagem a Serra Pelada, a Curitiba, a São Paulo e a Abadiânia. Revela ainda ter encontrado na Europa, nos anos 1970, o artista brasileiro Antonio Dias, que a teria impressionado.

Há passagens hilariantes no livro de Marina Abramovic, que tem muito bom humor, um humor balcânico, como ela diz. Numa dessas passagens, ela conta uma experiência com monges budistas que a convidaram para prepará-los para uma apresentação num festival étnico em Berlim. Marina viajou ao Tibete e passou algum tempo lá ensaiando 12 monges para a apresentação. Feito isso, voltou para a Alemanha. Cinco dias antes da apresentação, 12 monges chegaram a Berlim, mas não eram os 12 que ela havia preparado, eram outros completamente desconhecidos. Ao perguntar onde estavam “seus monges”, responderam-lhe que aqueles não tinham passaporte; então, vieram esses no lugar. Marina enlouqueceu, mas tudo deu certo ao final.

*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de 'Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo' (Ed. Iluminuras)

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Pelas Paredes: Memórias de Marina Abramovic Autora: Marina AbramovicTradução: Waldea PereiraEditora: José Olympio 416 páginas R$ 69,90

A artista sérvia Marina Abramovic atua em 'The Biography Remix', dirigida pelo holandêsMichael Laub em 2005, em Avignon, na França Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP/Getty Images

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De fato, a vida de Marina se reflete em sua obra. Seus pais eram partisans, membros do Partido Comunista iugoslavo, e lutaram contra a ocupação nazista durante a 2ª. Guerra Mundial. Deles, Marina teria herdado a força e a determinação. Ao falar de Gold Found by The Artist (Ouro Descoberto pelo Artista, 1981), performance em que ela e seu parceiro Ulay deveriam permanecer por oito horas, ao longo de algumas semanas, sentados cada um de um lado de uma mesa sobre a qual havia pepitas de ouro, olhando-se sem se mexer, Marina lembra que, numa das apresentações, Ulay, depois de fortes dores no corpo, desistiu de atuar, ao contrário dela, que se manteve firme, apesar do cansaço e das dores, até o final do trabalho. Segundo Marina, a diferença entre eles estava na herança dos “partisans, aquela determinação de atravessar paredes que meus pais tinham transmitido a mim”. 

Quanto à sua mãe, ela a descreve como uma mulher autoritária, que sabia suportar a dor e que nunca se queixava nem permitia que a filha o fizesse, de modo que as enxaquecas que assolavam a jovem Marina deveriam ser suportadas sem reclamações. Muitas performances exigem de Marina controle absoluto sobre o sofrimento corporal. Esse era o caso de Thomas Lips (Lábios de Thomas, 1975), em que a artista desenhava com gilete uma estrela em seu abdômen e se “açoitava até não sentir mais dor nenhuma”. Esse controle, imagino, ela aprendeu desde cedo com a sua mãe. 

As lembranças com seus familiares são terríveis. Seus momentos de felicidade são descritos ao lado dos amigos e também dos amantes Ulay e Paolo, apesar de eles terem lhe causado profunda dor espiritual; essa, para Marina, era incontrolável. A artista destaca em suas memórias a vida ao lado de Ulay, suas aventuras pelo mundo, desde a visita ao deserto central da Austrália e do contato com os aborígines até a vida errante pela Europa dentro de um furgão. Essas aventuras são descritas como laboratórios de criação para novas performances. Em pleno deserto australiano, por exemplo, surgiu a ideia para The Lovers (Os Amantes, 1988): na solidão absoluta do lugar, lembraram-se do verso de um poema chinês do século 2, Confissões da Grande Muralha: “A Terra é pequena e azul, e eu sou uma pequena fissura nela.” 

Em The Lovers, eles, os amantes, partiriam, solitários, das extremidades da Grande Muralha e se encontrariam no meio dela, onde se casariam. Mas quando, por fim, conseguiram vencer a burocracia chinesa dos anos 1980 e executar o trabalho, a relação entre eles havia se deteriorado. Porém, não desistiram da performance; apenas mudaram seu final e, em vez de se casarem no meio do caminho, selaram sua separação. As memórias de Marina revelam como essa e outras performances foram concebidas. 

Seu livro destaca ainda o aspecto místico de sua obra e de sua personalidade. Marina teria herdado esse misticismo de sua avó materna, Milica, que lia a sorte e costumava derramar um copo de água por cima da neta antes de ela ir para a escola. Esse ritual, acreditava a avó, a faria tirar notas altas. De acordo com a artista, “esses sinais e rituais eram uma espécie de espiritualidade para mim. Eles também me conectavam à minha vida interior e aos meus sonhos”. A espiritualidade está presente em muitas de suas performances, entre elas, The Artist Is Present (A Artista Está Presente, 2010) e 512 Hours (512 horas), da qual participei, em 2014, na Serpentine Gallery, em Londres. 

Marina lembra que, ao vir ao Brasil estudar xamanismo, “os xamãs ensinavam os mesmos tipos de sinais”. A propósito do Brasil, Marina conta sua viagem a Serra Pelada, a Curitiba, a São Paulo e a Abadiânia. Revela ainda ter encontrado na Europa, nos anos 1970, o artista brasileiro Antonio Dias, que a teria impressionado.

Há passagens hilariantes no livro de Marina Abramovic, que tem muito bom humor, um humor balcânico, como ela diz. Numa dessas passagens, ela conta uma experiência com monges budistas que a convidaram para prepará-los para uma apresentação num festival étnico em Berlim. Marina viajou ao Tibete e passou algum tempo lá ensaiando 12 monges para a apresentação. Feito isso, voltou para a Alemanha. Cinco dias antes da apresentação, 12 monges chegaram a Berlim, mas não eram os 12 que ela havia preparado, eram outros completamente desconhecidos. Ao perguntar onde estavam “seus monges”, responderam-lhe que aqueles não tinham passaporte; então, vieram esses no lugar. Marina enlouqueceu, mas tudo deu certo ao final.

*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de 'Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo' (Ed. Iluminuras)

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