Mário Bortolotto: Nem deus nem Diabo, em coma o dramaturgo diz ter visto o ator Paulo César Pereio. Foto: Ernesto Rodrigues/AE
SÃO PAULO - No dia 5 de dezembro, após a sessão noturna de sua peça Brutal, do Espaço Parlapatões, na Praça Roosevelt (corredor cênico que se tornou uma espécie de Off-Off-Broadway nacional), o dramaturgo e ator Mário Bortolotto, de 47 anos, confraternizava com colegas de palco quando se viu envolvido em kafkiana situação. Dois bandidos armados invadiram o teatro, cujas portas estavam semifechadas, e começaram a barbarizar.
Atores foram agredidos e Bortolotto (vencedor dos prêmios Shell, APCA e Mambembe), após levar uma coronhada na cabeça, partiu para cima do agressor. Levou quatro tiros, um deles no coração, e foi levado para a Santa Casa em estado grave. Praticamente desenganado, recuperou-se surpreendentemente, assombrando até seus médicos.
Anteontem, ao receber a reportagem do Estado, parecia plenamente recuperado. Já sai à rua sem problemas, recebe encomendas no elevador. E já marcou até data para voltar aos palcos: 18 de março, no Festival de Teatro de Curitiba, com o texto inédito Música para Ninar Dinossauros.
E os tiros, onde pegaram?
Cara, eu sou o menos indicado para falar dos tiros. Não sei direito. Sei que um pegou no coração. Foi o que mais deu problema, foram nove horas de cirurgia. Era para morrer, né? Os médicos mesmo falam que foi milagre eu ter sobrevivido, porque ninguém chega ao hospital vivo com um tiro no coração, morre no caminho. Em segundo lugar, ninguém sobrevive à operação. Eu consegui chegar ao hospital e sobreviver à operação. Os médicos não botam fé, dizem: "Bicho, é muito milagre."
É verdade que você ficou com duas balas no corpo?
Tem uma aqui, perto da coluna. Se pega, eu tava aleijado. E tem uma outra aqui atrás... sei lá. No raio X tem, tá ali, não sei onde é direito. Sei que tem duas balas-souvenir aí dentro.
E qual eles tiraram?
A que foi no coração.
No seu blog, muita gente pergunta o que você viu enquanto estava em coma, se viu Deus ou se viu o Diabo...
Rarararará! Cara, eu vi o Pereio (Paulo Cesar Pereio, ator).
É sério?
Sério. Eu lembro que não tive sonhos. O que tive foi... Sabe aquela brincadeira que a gente fazia quando era criança, de jogar um palito de fósforo no café e aí formava imagens? Lembra disso? A coisa do palito de fósforo no café era a coisa de formar imagens mesmo, a avó da gente sabia fazer isso. E aí tinha isso, cara: do nada começavam a se formar imagens. Eu via tudo como se fosse uma tela preta e ia se formando uma imagem de fumaça. E eu lembro nitidamente do Pereio, que depois se transformava em Stalin. Eu achava muito engraçado: o que tem a ver o Stalin comigo? O Pereio tudo bem, é meu amigo.
Ademais, você nunca teve pendores para a política...
Pois é, bicho! Apareceu o Stalin, e depois o Príncipe Valente. Sabe umas coisas assim? Meio estranho, umas referências estranhas. Eu me lembro disso dos dois dias em coma. E demorava muito para formar a imagem, era uma coisa que ia muito devagarzinho. E quando aparecia o Pereio era sempre do mesmo jeito, cabeça meio abaixada. Sempre assim.
E a sensação dos tiros? O que você sentiu?
Cara, eu me lembro do impacto. Não chegou a me jogar, porque eu segurei a onda e ainda fui para cima do cara. Levei três tiros, e um de raspão, quando o cara foi dar o tiro de misericórdia, que pegou de raspão, no pescoço. Isso me contaram, que o cara foi embora e voltou. E errou. Eu lembro do primeiro impacto, parece que você está levando um murro muito bem dado no peito. Aí eu caí. Eu estava muito bêbado, muito bêbado.
Foi tudo muito rápido, não?
Muito. A polícia veio me pedir para identificar o cara. Mas eu não lembro, como é que vou identificar? Eu achava que o cara que atirou em mim estava com camiseta branca. Aí eu fui ver na imagem da câmera interna da TV e ele estava com uma jaqueta verde. Como é que vou identificar o cara? Que espécie de testemunha confiável eu sou? Aí ficam falando que eu tô com medo de represália. Medo? Eu não tenho medo de p... nenhuma! Não tenho medo de ir para cima de um cara armado, vou ter medo de represália? Se eu soubesse quem foi o cara que atirou em mim, fazia questão de falar. E não acho que isso seja delação. Delator, o cacete! O cara atirou em mim, pô! Eu não tô me metendo na vida dos outros. Delator é para quem é de gangue, eu não sou de gangue de bandido.
Parece que é mais um estigma se formando. Assim como se diz que em peça do Zé Celso vai ter um ator querendo te beijar, dizem agora que em torno do Mário Bortolotto tá cheio de bandido...
Aliás, eu escrevo muito pouco sobre isso. Se pegar, 10% do meu trabalho é sobre marginalidade. E ficam insistindo nisso. Eu acho uma pena....
Essa nova peça sua que vai estrear em Curitiba no dia 18 de março....
Música para Ninar Dinossauros. É uma peça sobre velhos amigos, eu, o Picanha (o ator Paulo de Tharso) e o (Lourenço) Mutarelli. Não lembro se foi o Mutarelli, quando a gente estava em um bar, que sugeriu uma peça sobre nós três. Aí eu disse: vamos fazer, então. Não terminei o texto ainda, mas eu avisei o festival, eles sabem disso. Vamos começar a ensaiar depois do carnaval. Não somos só nós três em cena, tem um monte de gente na peça. São três caras que só transam com putas. É uma história da nossa geração, uma geração que foi pega no contrapé. Nós nascemos nos anos 1960, não fomos os caras que vivemos as revoluções, as mudanças. A gente nasceu ali sem saber o que estava acontecendo. E, nos anos 1970, enquanto tava todo mundo na luta armada, etc., a gente estava colecionando figurinha do Geisel. Cantando Incríveis, Eu te Amo Meu Brasil, colecionando figurinhas Brasil Pátria Amada. A gente começou a tomar pé da situação nos anos 80, quando já estava acabando. Aí ficou aquela sensação: para que a gente serve? Então a peça é sobre essa dificuldade. Mostra os três jovens, 20 anos antes, e eles também só transavam com putas. Ou seja: eles não mudaram nada.
Quando você chegou com seu teatro à Praça Roosevelt?
Foi quando os Sátiros abriram ali. A gente começou a frequentar o bar do lado, o La Barca. Onde hoje é o Sátiros 2 era o Teatro X. A gente só ficava bebendo ali e começamos a apresentar algumas peças nos Sátiros, como um grupo convidado.
Nunca teve uma ajuda do poder público ali, teve?
Que eu saiba, não. Só tinha os Sátiros. E era muito barra-pesada aquilo.
E hoje não é barra-pesada?
Hoje não é, cara. Aconteceu o seguinte: enquanto os bares e os teatros estão abertos é muito tranquilo. O problema é quando eles fecham as portas. É aí que os noias (viciados em crack) descem. O que aconteceu no dia é que tem essa p... da Lei do Silêncio. Se os Parlapatões baixam as portas, vira uma arapuca, uma armadilha para quem está lá dentro. A gente baixou as portas, o ladrão entrou e baixou de novo. Quem está lá fora não sabe o que está acontecendo lá dentro. Quem está lá dentro vira refém. E é por causa da Lei do Silêncio, porque senão as portas estariam abertas até as 6 horas da manhã. Entendeu? E aí nenhum ladrão vai entrar lá com a porta toda aberta. A praça fica segura. Agora, começa a baixar porta à 1 hora da manhã, vira um lugar ermo, fica perigoso. Não fosse a Lei do Silêncio não tinha acontecido.
Você nunca foi assaltado ali?
Eu ando até de madrugada ali, nunca fui assediado, nunca fui assaltado. Eu lembro de flashes do que aconteceu ali. Eu fiquei muito puto.
Tem uma história de que você foi primeiro para cima dos bandidos.
Não agrediram uma ova. Tinham me dado uma coronhada, tinham batido na Guta, na Manu. Entraram lá a fim de barbarizar. "Vamos pegar esses babacas aqui." Subestimaram a gente. Pensaram: aqui vai ser fácil, um bando de atores de teatro, uma rapaziada indefesa. Se tivesse mais uns três amigos malucos meus lá, eles tinham se ferrado. Porque quase eu arranco a arma desse fdp, mesmo sozinho. Se a gente pegasse, a gente quebrava de pau esses caras. Eles levaram sorte, porque fui só eu e o Carcarah para cima deles. Tinha mandado eles para o hospital, igual me mandaram.
Tem essa coisa clichê dos sujeitos que passam por uma coisa extrema como essa e mudam radicalmente. Você não mudou nada.
Eu não mudo. Não sou borboleta. O que acho que muda em mim agora, se é que isso é mudança, é que, se eu vou ficar mais um tempo por aqui, vou fazer umas coisas que gosto de fazer. Não vou ter mais ansiedade, vou fazer com calma, olhar as coisas com serenidade. Não vou mais ter pressa de agarrar o mundo, porque já era para eu ter ido. Tudo que eu fizer agora é faixa-bônus. Tenho duas peças para fazer e mais um filme.
Qual é o filme?
Chama Nove Crônicas para Um Coração aos Berros, um filme do Gustavo Galvão, é o primeiro longa dele. É um filme simples de fazer, vou fazer como ator, são apenas duas diárias. E eu faço de muletas, ou seja, já estou caracterizado.
Houve um momento em que você teve um ponto de contato com o teatrão, quando o Raul Cortez comprou sua peça e montou no Teatro Faap. Você cedeu os direitos porque precisava da grana?
Eu sempre gostei do Raul Cortez. E quanto ao dinheiro... Não foi por estar precisando. Vou falar sério para você: de 2000 para cá eu nunca mais precisei de grana. Até 2000 eu passava fome, não tinha dinheiro para comer. Comia cachorro-quente ali, era meu almoço. Eu sempre ganhei pouco, mas vivo com pouco também. Depois que ganhei o prêmio Shell, o APCA, fiz a mostra no Centro Cultural São Paulo, a partir dali sempre pintou um trabalhinho para mim, eu consegui me manter. Comprei essa quitinete com os direitos que vendi para o Raul Cortez e os diretos de Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet. Não gostei da montagem do Raul porque ele ficou com um pé num barco e com um pé no outro. Vem um cara que é fã dele e não gosta, vem um cara que é fã meu e não gosta. Era tudo muito bonitinho, superprodução. Tinha de fazer num teatro mais modesto, com recursos mínimos, com um diretor que obrigasse a uma interpretação visceral.
O que é uma interpretação visceral, em sua opinião?
Quando falo visceral, falo de interpretar com verdade. Eu não preciso muito disso porque já sei o que tô fazendo. Eu escrevi, eu conheço esse universo. Faço com verdade, neguinho acredita no que estou fazendo. E os atores que eu chamo é porque sei que podem trabalhar na mesma sintonia. Não é assim essa coisa de preparação de atores, de arrancar pedaço do corpo, de sair gritando, rolando no chão. Isso para mim é palhaçada, é histeria, não é ser visceral. Ser visceral é ser verdadeiro, para mim. É ir até o fundo do poço. E quando eu vou ao fundo do poço, eu não vou me cansar muito, porque eu já conheço o fundo do poço.