Marlon James une folclore africano a elemento fantástico em novo livro; leia trecho exclusivo


Novo livro do autor jamaicano vencedor do Booker Prize, 'Leopardo Negro, Lobo Vermelho' deve ganhar uma adaptação para o cinema

Por Redação

O escritor jamaicano Marlon James, vencedor do Booker Prize pelo livro Breve História de Sete Assassinatos, volta com um novo romance, Leopardo Negro, Lobo Vermelho, publicado no Brasil pela Intrínseca.

A obra mescla lendas da mitologia do continente africano a elementos contemporâneos da literatura fantástica para narrar a história do Rastreador, um protagonista que deve encontrar um garoto desaparecido. 

O romance se passa em um cenário místico em que dois reinos, o do Norte e o do Sul, estão em constante tensão. 

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O escritor jamaicano Marlon James Foto: Bryan Derballa/The New York Times

Leia abaixo um trecho exclusivo do livro:

Kava é como a maioria dos homens; ele carrega dois cheiros. Um do suor que escorre por suas costas e seca, o suor do trabalho duro. Outro que se esconde debaixo dos braços, por entre as pernas, no meio das nádegas, aquilo que você respira quando está perto o suficiente para tocar com os lábios. O Leopardo negro tinha apenas aquele segundo cheiro. Eu nunca tinha visto aquilo, um homem cujo cabelo era algodão negro. Em suas costas e pernas, ao me ultrapassar para tomar o bebê de Kava. Seu peitoral, duas pequenas montanhas, suas nádegas grandes, grossas as pernas. Ele parecia que ia esmagar o bebê em seus braços, mas lambeu poeira da testa da criança. Só pássaros falavam. Aqui estávamos nós, um homem branco como a lua, um Leopardo que andava como homem, um homem e uma mulher da altura de um arbusto, e um bebê maior que os dois. A escuridão se espalhava. A pequena mulher saltou dos ombros de Kava para os do Leopardo e sentou em seu braço, rindo com o bebê. Uma voz dentro de mim prenunciava um tipo de laço de sangue entre eles, e que eu era o estranho ali. Kava não disse a ninguém quem eu era.

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Chegamos a um pequeno córrego selvagem. Grandes rochas e pedras delimitavam as margens, e musgo verde as revestia como um tapete. O córrego estalava e esguichava uma névoa que atingia os galhos, as samambaias e os talos de bambu pendentes. O Leopardo pôs o bebêem cima de uma rocha, agachou-se na margem e começou a beber água. Kava encheu seus odres. O pequeno homem ficou brincando com o bebê. Fiquei surpreso por ele estar acordado. Permaneci parado ao lado do Leopardo, mas, mesmo assim, ele não deu atenção. Kava foi mais longe, procurando por peixes.

  —Para onde estamos indo? — perguntei.

  —Eu te disse.

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  —Aqui não é a montanha. Nós a contornamos e nos afastamos dela há muitos passos.

  — Vamos chegar lá em mais dois dias.

  — Onde?

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Ele se agachou, pegou um pouco de água com a mão e bebeu.

  — Eu quero voltar — pedi.

  — Não existe volta — respondeu ele.

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  — Eu quero voltar.

  — Então vá.

  — Quem é o Leopardo para você?

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Kava olhou para mim e riu. Uma risada que dizia: “Eu ainda nem sou um homem, mas você está me criando os problemas de um.” Talvez fosse a mulher aflorando dentro de mim. Talvez eu devesse ter esmagado a pele do meu pau com uma pedra até aquilo sair. Isso é o que eu deveria ter dito. Eu não gostava do homem-Leopardo. Eu nem o conhecia para não gostar dele, mas não gostava mesmo assim. Ele tinha um cheiro de cu de velho. Isso é o que eu teria dito. Vocês conversam sem falar? Vocês se conhecem como irmãos? Você dorme com suas mãos entre as pernas dele? Para ver se ele vem até você, eu deveria me manter acordado atéa lua ficar gorda e até as feras noturnas dormirem — ou você vai até o Leopardo e se deita sobre ele, ou ele em cima de você, ou talvez ele seja como um daqueles de quem meu pai gostava na cidade, que colocavam homens dentro de suas bocas?

O bebê, sentado, ria para o homenzinho e para a mulherzinha fazendo caretas e pulando pra cima e para baixo como macacos.

  — Diga o nome dele.

Eu me virei. O Leopardo.

  — Ele precisa de um nome — disse ele.

  — Eu nem sequer sei o seu.

  — Eu não preciso de um nome. Do que o seu pai o chamava?

  — Eu não conheço meu pai.

  — Até mesmo eu conheço o meu pai. Ele enfrentou um crocodilo e uma cobra e uma hiena só para enlouquecer com inveja humana. Mas ele perseguia com mais rapidez o antílope do que faz o guepardo. Você já fez isso? Mordeu fundo com seus dentes mais afiados até o sangue quente jorrar em sua boca, a carne ainda pulsando, cheia de vida?

  —Não.

  —Então você é como Asani.

  —Meu tio o chama de Kava, e todos na aldeia.

  —Você queima comida, depois come. Você come cinzas.

  —Você irá embora esta noite?

  —Eu vou embora só quando quiser. Vamos dormir aqui esta noite. Pela manhã, levamos o bebê por novas terras. Vou encontrar comida, mas não muita, já que todas as feras ouviram nossa aproximação.

Eu sabia que ficaria acordado aquela noite. Vi Kava e o Leopardo se afastando, as chamas crescendo, bloqueando minha visão. Disse a mim mesmo que ficaria acordado e os vigiaria. E fiz isso. Cheguei tão perto que as chamas quase chamuscaram minhas sobrancelhas. Fui até o rio, agora gelado o suficiente para fazer os ossos tremerem, e joguei água no meu rosto. Fiquei olhando pelo escuro, acompanhando as pintas brancas na pele de Kava. Fechei meu punho com tanta força que cravei as unhas na palma da mão. Seja lá o que aqueles dois fossem fazer, eu veria, e eu gritaria, ou chiaria, ou xingaria. Então, quando o Leopardo me sa- cudiu para me acordar, eu dei um pulo, perplexo por ter caído no sono. Kava jogou água na fogueira bem quando me levantei.

  —Vamos — ordenou o Leopardo.

  —Por quê?

  —Vamos — disse ele, e me deu as costas.

Ele se transformou em felino. Kava enrolou o bebê num pano e o pendurou nas costas do Leopardo. Ele não esperou. Esfreguei meus olhos e os abri novamente. O homenzinho e a mulherzinha estavam de volta aos ombros de Kava.

  —Uma coruja falou comigo — comentou a mulherzinha. — Um dia atrás no mato. Dizem que você lê o vento. Não, então? Diz que você tem um bom faro.

  —Não estou entendendo.

  — Alguém segue a gente — disse ela.

  — Quem?

  — Asani, dizendo que você tem bom faro.

  — Quem?

  — Asani.

  — Não, quem está nos seguindo?

  — Avançando de noite, não de dia — disse Kava.

  — Ele disse que eu tenho um bom faro?

  — Dizendo que você foi rastreador. Kava já estava andando quando disse:

  — Vamos.

Mais adiante, dentro da escuridão, Leopardo saltava de galho em galho com um bebê preso às suas costas. Kava me chamou.

  — Nós temos que avançar — disse ele.

Tudo ao redor era preto, azul noturno, verde e cinza; até mesmo o céu tinha poucas estrelas. Então o mato começou a fazer sentido. Árvores eram mãos despontando da terra e esticando dedos tortuosos. A cobra que serpenteia era um caminho. As tremulantes asas noturnas pertenciam a corujas, não a demônios.

  — Siga o Leopardo — disse Kava.

  — Eu não sei pra onde ele foi — repliquei.

  — Sim, você sabe.

Ele esfregou a mão direita no meu nariz. O Leopardo ganhou vida bem na minha frente. Eu podia vê-lo e também o seu rastro, polpudo como sua pele em meio à mata. Eu apontei.

O Leopardo tinha virado à direita, depois dado cinquenta passos, cruzando o córrego pulando de árvore em árvore, então rumou ao Sul. Parou para mijar em quatro árvores para confundir qualquer um que estivesse nos seguindo. Eu sabia que tinha o faro, como disse Kava, mas não sabia que poderia rastrear. Mesmo com o Leopardo distante, ele ainda estava bem debaixo do meu nariz. E Kava, e seus cheiros, e a pequena mulher, e a rosa que ela havia esfregado em suas dobras, e o homem, e o néctar que ele bebeu, e os insetos que ele comeu, muito do amargo quando ele precisava do doce, e os odres, e a água dentro deles que ainda cheirava a búfalo, e o córrego. E mais, e mais que isso, mais ainda, o suficiente para me deixar um pouco louco.

  —Expire tudo — disse Kava. — Expire tudo. Expire tudo. Eu exalei longa e lentamente.

  —Agora inspire o Leopardo.

Ele tocou meu peito e esfregou a região do coração. Queria ver seus olhos no escuro.

  —Inspire o Leopardo.

E então eu o vi, novamente, com o meu nariz. Eu sabia para onde ele estava indo. E quem quer que houvesse assustado o Leopardo estava começando a me assustar também. Eu apontei para a direita.

  —Vamos nessa direção.

O escritor jamaicano Marlon James, vencedor do Booker Prize pelo livro Breve História de Sete Assassinatos, volta com um novo romance, Leopardo Negro, Lobo Vermelho, publicado no Brasil pela Intrínseca.

A obra mescla lendas da mitologia do continente africano a elementos contemporâneos da literatura fantástica para narrar a história do Rastreador, um protagonista que deve encontrar um garoto desaparecido. 

O romance se passa em um cenário místico em que dois reinos, o do Norte e o do Sul, estão em constante tensão. 

O escritor jamaicano Marlon James Foto: Bryan Derballa/The New York Times

Leia abaixo um trecho exclusivo do livro:

Kava é como a maioria dos homens; ele carrega dois cheiros. Um do suor que escorre por suas costas e seca, o suor do trabalho duro. Outro que se esconde debaixo dos braços, por entre as pernas, no meio das nádegas, aquilo que você respira quando está perto o suficiente para tocar com os lábios. O Leopardo negro tinha apenas aquele segundo cheiro. Eu nunca tinha visto aquilo, um homem cujo cabelo era algodão negro. Em suas costas e pernas, ao me ultrapassar para tomar o bebê de Kava. Seu peitoral, duas pequenas montanhas, suas nádegas grandes, grossas as pernas. Ele parecia que ia esmagar o bebê em seus braços, mas lambeu poeira da testa da criança. Só pássaros falavam. Aqui estávamos nós, um homem branco como a lua, um Leopardo que andava como homem, um homem e uma mulher da altura de um arbusto, e um bebê maior que os dois. A escuridão se espalhava. A pequena mulher saltou dos ombros de Kava para os do Leopardo e sentou em seu braço, rindo com o bebê. Uma voz dentro de mim prenunciava um tipo de laço de sangue entre eles, e que eu era o estranho ali. Kava não disse a ninguém quem eu era.

Chegamos a um pequeno córrego selvagem. Grandes rochas e pedras delimitavam as margens, e musgo verde as revestia como um tapete. O córrego estalava e esguichava uma névoa que atingia os galhos, as samambaias e os talos de bambu pendentes. O Leopardo pôs o bebêem cima de uma rocha, agachou-se na margem e começou a beber água. Kava encheu seus odres. O pequeno homem ficou brincando com o bebê. Fiquei surpreso por ele estar acordado. Permaneci parado ao lado do Leopardo, mas, mesmo assim, ele não deu atenção. Kava foi mais longe, procurando por peixes.

  —Para onde estamos indo? — perguntei.

  —Eu te disse.

  —Aqui não é a montanha. Nós a contornamos e nos afastamos dela há muitos passos.

  — Vamos chegar lá em mais dois dias.

  — Onde?

Ele se agachou, pegou um pouco de água com a mão e bebeu.

  — Eu quero voltar — pedi.

  — Não existe volta — respondeu ele.

  — Eu quero voltar.

  — Então vá.

  — Quem é o Leopardo para você?

Kava olhou para mim e riu. Uma risada que dizia: “Eu ainda nem sou um homem, mas você está me criando os problemas de um.” Talvez fosse a mulher aflorando dentro de mim. Talvez eu devesse ter esmagado a pele do meu pau com uma pedra até aquilo sair. Isso é o que eu deveria ter dito. Eu não gostava do homem-Leopardo. Eu nem o conhecia para não gostar dele, mas não gostava mesmo assim. Ele tinha um cheiro de cu de velho. Isso é o que eu teria dito. Vocês conversam sem falar? Vocês se conhecem como irmãos? Você dorme com suas mãos entre as pernas dele? Para ver se ele vem até você, eu deveria me manter acordado atéa lua ficar gorda e até as feras noturnas dormirem — ou você vai até o Leopardo e se deita sobre ele, ou ele em cima de você, ou talvez ele seja como um daqueles de quem meu pai gostava na cidade, que colocavam homens dentro de suas bocas?

O bebê, sentado, ria para o homenzinho e para a mulherzinha fazendo caretas e pulando pra cima e para baixo como macacos.

  — Diga o nome dele.

Eu me virei. O Leopardo.

  — Ele precisa de um nome — disse ele.

  — Eu nem sequer sei o seu.

  — Eu não preciso de um nome. Do que o seu pai o chamava?

  — Eu não conheço meu pai.

  — Até mesmo eu conheço o meu pai. Ele enfrentou um crocodilo e uma cobra e uma hiena só para enlouquecer com inveja humana. Mas ele perseguia com mais rapidez o antílope do que faz o guepardo. Você já fez isso? Mordeu fundo com seus dentes mais afiados até o sangue quente jorrar em sua boca, a carne ainda pulsando, cheia de vida?

  —Não.

  —Então você é como Asani.

  —Meu tio o chama de Kava, e todos na aldeia.

  —Você queima comida, depois come. Você come cinzas.

  —Você irá embora esta noite?

  —Eu vou embora só quando quiser. Vamos dormir aqui esta noite. Pela manhã, levamos o bebê por novas terras. Vou encontrar comida, mas não muita, já que todas as feras ouviram nossa aproximação.

Eu sabia que ficaria acordado aquela noite. Vi Kava e o Leopardo se afastando, as chamas crescendo, bloqueando minha visão. Disse a mim mesmo que ficaria acordado e os vigiaria. E fiz isso. Cheguei tão perto que as chamas quase chamuscaram minhas sobrancelhas. Fui até o rio, agora gelado o suficiente para fazer os ossos tremerem, e joguei água no meu rosto. Fiquei olhando pelo escuro, acompanhando as pintas brancas na pele de Kava. Fechei meu punho com tanta força que cravei as unhas na palma da mão. Seja lá o que aqueles dois fossem fazer, eu veria, e eu gritaria, ou chiaria, ou xingaria. Então, quando o Leopardo me sa- cudiu para me acordar, eu dei um pulo, perplexo por ter caído no sono. Kava jogou água na fogueira bem quando me levantei.

  —Vamos — ordenou o Leopardo.

  —Por quê?

  —Vamos — disse ele, e me deu as costas.

Ele se transformou em felino. Kava enrolou o bebê num pano e o pendurou nas costas do Leopardo. Ele não esperou. Esfreguei meus olhos e os abri novamente. O homenzinho e a mulherzinha estavam de volta aos ombros de Kava.

  —Uma coruja falou comigo — comentou a mulherzinha. — Um dia atrás no mato. Dizem que você lê o vento. Não, então? Diz que você tem um bom faro.

  —Não estou entendendo.

  — Alguém segue a gente — disse ela.

  — Quem?

  — Asani, dizendo que você tem bom faro.

  — Quem?

  — Asani.

  — Não, quem está nos seguindo?

  — Avançando de noite, não de dia — disse Kava.

  — Ele disse que eu tenho um bom faro?

  — Dizendo que você foi rastreador. Kava já estava andando quando disse:

  — Vamos.

Mais adiante, dentro da escuridão, Leopardo saltava de galho em galho com um bebê preso às suas costas. Kava me chamou.

  — Nós temos que avançar — disse ele.

Tudo ao redor era preto, azul noturno, verde e cinza; até mesmo o céu tinha poucas estrelas. Então o mato começou a fazer sentido. Árvores eram mãos despontando da terra e esticando dedos tortuosos. A cobra que serpenteia era um caminho. As tremulantes asas noturnas pertenciam a corujas, não a demônios.

  — Siga o Leopardo — disse Kava.

  — Eu não sei pra onde ele foi — repliquei.

  — Sim, você sabe.

Ele esfregou a mão direita no meu nariz. O Leopardo ganhou vida bem na minha frente. Eu podia vê-lo e também o seu rastro, polpudo como sua pele em meio à mata. Eu apontei.

O Leopardo tinha virado à direita, depois dado cinquenta passos, cruzando o córrego pulando de árvore em árvore, então rumou ao Sul. Parou para mijar em quatro árvores para confundir qualquer um que estivesse nos seguindo. Eu sabia que tinha o faro, como disse Kava, mas não sabia que poderia rastrear. Mesmo com o Leopardo distante, ele ainda estava bem debaixo do meu nariz. E Kava, e seus cheiros, e a pequena mulher, e a rosa que ela havia esfregado em suas dobras, e o homem, e o néctar que ele bebeu, e os insetos que ele comeu, muito do amargo quando ele precisava do doce, e os odres, e a água dentro deles que ainda cheirava a búfalo, e o córrego. E mais, e mais que isso, mais ainda, o suficiente para me deixar um pouco louco.

  —Expire tudo — disse Kava. — Expire tudo. Expire tudo. Eu exalei longa e lentamente.

  —Agora inspire o Leopardo.

Ele tocou meu peito e esfregou a região do coração. Queria ver seus olhos no escuro.

  —Inspire o Leopardo.

E então eu o vi, novamente, com o meu nariz. Eu sabia para onde ele estava indo. E quem quer que houvesse assustado o Leopardo estava começando a me assustar também. Eu apontei para a direita.

  —Vamos nessa direção.

O escritor jamaicano Marlon James, vencedor do Booker Prize pelo livro Breve História de Sete Assassinatos, volta com um novo romance, Leopardo Negro, Lobo Vermelho, publicado no Brasil pela Intrínseca.

A obra mescla lendas da mitologia do continente africano a elementos contemporâneos da literatura fantástica para narrar a história do Rastreador, um protagonista que deve encontrar um garoto desaparecido. 

O romance se passa em um cenário místico em que dois reinos, o do Norte e o do Sul, estão em constante tensão. 

O escritor jamaicano Marlon James Foto: Bryan Derballa/The New York Times

Leia abaixo um trecho exclusivo do livro:

Kava é como a maioria dos homens; ele carrega dois cheiros. Um do suor que escorre por suas costas e seca, o suor do trabalho duro. Outro que se esconde debaixo dos braços, por entre as pernas, no meio das nádegas, aquilo que você respira quando está perto o suficiente para tocar com os lábios. O Leopardo negro tinha apenas aquele segundo cheiro. Eu nunca tinha visto aquilo, um homem cujo cabelo era algodão negro. Em suas costas e pernas, ao me ultrapassar para tomar o bebê de Kava. Seu peitoral, duas pequenas montanhas, suas nádegas grandes, grossas as pernas. Ele parecia que ia esmagar o bebê em seus braços, mas lambeu poeira da testa da criança. Só pássaros falavam. Aqui estávamos nós, um homem branco como a lua, um Leopardo que andava como homem, um homem e uma mulher da altura de um arbusto, e um bebê maior que os dois. A escuridão se espalhava. A pequena mulher saltou dos ombros de Kava para os do Leopardo e sentou em seu braço, rindo com o bebê. Uma voz dentro de mim prenunciava um tipo de laço de sangue entre eles, e que eu era o estranho ali. Kava não disse a ninguém quem eu era.

Chegamos a um pequeno córrego selvagem. Grandes rochas e pedras delimitavam as margens, e musgo verde as revestia como um tapete. O córrego estalava e esguichava uma névoa que atingia os galhos, as samambaias e os talos de bambu pendentes. O Leopardo pôs o bebêem cima de uma rocha, agachou-se na margem e começou a beber água. Kava encheu seus odres. O pequeno homem ficou brincando com o bebê. Fiquei surpreso por ele estar acordado. Permaneci parado ao lado do Leopardo, mas, mesmo assim, ele não deu atenção. Kava foi mais longe, procurando por peixes.

  —Para onde estamos indo? — perguntei.

  —Eu te disse.

  —Aqui não é a montanha. Nós a contornamos e nos afastamos dela há muitos passos.

  — Vamos chegar lá em mais dois dias.

  — Onde?

Ele se agachou, pegou um pouco de água com a mão e bebeu.

  — Eu quero voltar — pedi.

  — Não existe volta — respondeu ele.

  — Eu quero voltar.

  — Então vá.

  — Quem é o Leopardo para você?

Kava olhou para mim e riu. Uma risada que dizia: “Eu ainda nem sou um homem, mas você está me criando os problemas de um.” Talvez fosse a mulher aflorando dentro de mim. Talvez eu devesse ter esmagado a pele do meu pau com uma pedra até aquilo sair. Isso é o que eu deveria ter dito. Eu não gostava do homem-Leopardo. Eu nem o conhecia para não gostar dele, mas não gostava mesmo assim. Ele tinha um cheiro de cu de velho. Isso é o que eu teria dito. Vocês conversam sem falar? Vocês se conhecem como irmãos? Você dorme com suas mãos entre as pernas dele? Para ver se ele vem até você, eu deveria me manter acordado atéa lua ficar gorda e até as feras noturnas dormirem — ou você vai até o Leopardo e se deita sobre ele, ou ele em cima de você, ou talvez ele seja como um daqueles de quem meu pai gostava na cidade, que colocavam homens dentro de suas bocas?

O bebê, sentado, ria para o homenzinho e para a mulherzinha fazendo caretas e pulando pra cima e para baixo como macacos.

  — Diga o nome dele.

Eu me virei. O Leopardo.

  — Ele precisa de um nome — disse ele.

  — Eu nem sequer sei o seu.

  — Eu não preciso de um nome. Do que o seu pai o chamava?

  — Eu não conheço meu pai.

  — Até mesmo eu conheço o meu pai. Ele enfrentou um crocodilo e uma cobra e uma hiena só para enlouquecer com inveja humana. Mas ele perseguia com mais rapidez o antílope do que faz o guepardo. Você já fez isso? Mordeu fundo com seus dentes mais afiados até o sangue quente jorrar em sua boca, a carne ainda pulsando, cheia de vida?

  —Não.

  —Então você é como Asani.

  —Meu tio o chama de Kava, e todos na aldeia.

  —Você queima comida, depois come. Você come cinzas.

  —Você irá embora esta noite?

  —Eu vou embora só quando quiser. Vamos dormir aqui esta noite. Pela manhã, levamos o bebê por novas terras. Vou encontrar comida, mas não muita, já que todas as feras ouviram nossa aproximação.

Eu sabia que ficaria acordado aquela noite. Vi Kava e o Leopardo se afastando, as chamas crescendo, bloqueando minha visão. Disse a mim mesmo que ficaria acordado e os vigiaria. E fiz isso. Cheguei tão perto que as chamas quase chamuscaram minhas sobrancelhas. Fui até o rio, agora gelado o suficiente para fazer os ossos tremerem, e joguei água no meu rosto. Fiquei olhando pelo escuro, acompanhando as pintas brancas na pele de Kava. Fechei meu punho com tanta força que cravei as unhas na palma da mão. Seja lá o que aqueles dois fossem fazer, eu veria, e eu gritaria, ou chiaria, ou xingaria. Então, quando o Leopardo me sa- cudiu para me acordar, eu dei um pulo, perplexo por ter caído no sono. Kava jogou água na fogueira bem quando me levantei.

  —Vamos — ordenou o Leopardo.

  —Por quê?

  —Vamos — disse ele, e me deu as costas.

Ele se transformou em felino. Kava enrolou o bebê num pano e o pendurou nas costas do Leopardo. Ele não esperou. Esfreguei meus olhos e os abri novamente. O homenzinho e a mulherzinha estavam de volta aos ombros de Kava.

  —Uma coruja falou comigo — comentou a mulherzinha. — Um dia atrás no mato. Dizem que você lê o vento. Não, então? Diz que você tem um bom faro.

  —Não estou entendendo.

  — Alguém segue a gente — disse ela.

  — Quem?

  — Asani, dizendo que você tem bom faro.

  — Quem?

  — Asani.

  — Não, quem está nos seguindo?

  — Avançando de noite, não de dia — disse Kava.

  — Ele disse que eu tenho um bom faro?

  — Dizendo que você foi rastreador. Kava já estava andando quando disse:

  — Vamos.

Mais adiante, dentro da escuridão, Leopardo saltava de galho em galho com um bebê preso às suas costas. Kava me chamou.

  — Nós temos que avançar — disse ele.

Tudo ao redor era preto, azul noturno, verde e cinza; até mesmo o céu tinha poucas estrelas. Então o mato começou a fazer sentido. Árvores eram mãos despontando da terra e esticando dedos tortuosos. A cobra que serpenteia era um caminho. As tremulantes asas noturnas pertenciam a corujas, não a demônios.

  — Siga o Leopardo — disse Kava.

  — Eu não sei pra onde ele foi — repliquei.

  — Sim, você sabe.

Ele esfregou a mão direita no meu nariz. O Leopardo ganhou vida bem na minha frente. Eu podia vê-lo e também o seu rastro, polpudo como sua pele em meio à mata. Eu apontei.

O Leopardo tinha virado à direita, depois dado cinquenta passos, cruzando o córrego pulando de árvore em árvore, então rumou ao Sul. Parou para mijar em quatro árvores para confundir qualquer um que estivesse nos seguindo. Eu sabia que tinha o faro, como disse Kava, mas não sabia que poderia rastrear. Mesmo com o Leopardo distante, ele ainda estava bem debaixo do meu nariz. E Kava, e seus cheiros, e a pequena mulher, e a rosa que ela havia esfregado em suas dobras, e o homem, e o néctar que ele bebeu, e os insetos que ele comeu, muito do amargo quando ele precisava do doce, e os odres, e a água dentro deles que ainda cheirava a búfalo, e o córrego. E mais, e mais que isso, mais ainda, o suficiente para me deixar um pouco louco.

  —Expire tudo — disse Kava. — Expire tudo. Expire tudo. Eu exalei longa e lentamente.

  —Agora inspire o Leopardo.

Ele tocou meu peito e esfregou a região do coração. Queria ver seus olhos no escuro.

  —Inspire o Leopardo.

E então eu o vi, novamente, com o meu nariz. Eu sabia para onde ele estava indo. E quem quer que houvesse assustado o Leopardo estava começando a me assustar também. Eu apontei para a direita.

  —Vamos nessa direção.

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