Masp reúne 40 obras de Gauguin e discute relação do pintor com os taitianos


Exposição traz obras-primas de museus internacionais como o Metropolitan e a National Gallery para a exposição, aberta até agosto

Por Antonio Gonçalves Filho

A inclusão da retrospectiva do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) na programação anual do Masp dedicada às Histórias Indígenas pode parecer estranha, mas os curadores da mostra, que será aberta dia 28 de abril, têm uma explicação: frequentemente suas pinturas que foram realizadas no Taiti “são vistas como reproduções fiéis da Polinésia Francesa, mas essas obras carregam em si as fantasias que um homem branco europeu e branco tinha de uma região considerada paradisíaca”.

Sua visão dos nativos passou mesmo pela redução dos taitianos a estereótipos. E mais: há algum tempo os grandes museus internacionais parecem exibir com algum constrangimento pinturas suas que retratam adolescentes da Polinésia Francesa – uma delas, de 13 anos, foi sua amante e aparece na tela Manao Tupapan (O Espírito das Trevas Vigia), de 1892, espécie de tributo a um ícone da pintura moderna na França, a voluptuosa Olympia (1863), de Manet.

Autorretrato de Gauguin, 'Perto do Gólgota', de 1896, pertencente ao Masp Foto: WERTHER SANTANA/ ESTADAO
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Bem, o fato é que as salas de concerto não “cancelam” Richard Wagner por seu antissemitismo. Assim, não seria justo banir as telas de Gauguin dos museus por ser o grande pintor francês um predador sexual, vítima da própria compulsão – ele morreu sifilítico.

Uma das 40 obras expostas no Masp até agosto, o seu Autorretrato (Perto do Gólgota, 1896), no acervo do museu desde 1951, mostra Gauguin como um Cristo próximo do calvário. O pintor seria vítima do sofrimento imposto pela civilização europeia – com ancestrais incas, ele buscou nos antípodas uma saída para o conservadorismo da sociedade francesa da época e acabou renegado também por eles. Ex-corretor, Gauguin decidiu, aos 35 anos, ser pintor em período integral quando a Bolsa de Valores de Paris desmoronou. Em 1891, ele partiu para o Taiti.

'Duas Mulheres Taitianas', ou 'Na Praia', de 1899: visão do paraíso Foto: Masp
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A exposição do Masp traz essas obras produzidas na Polinésia Francesa e quatro autorretratos reveladores, dois deles da coleção permanente do Masp. Foram necessários cinco anos para reunir as 40 obras da mostra (21 pinturas e 19 gravuras) pertencentes a grandes museus internacionais, entre eles o Metropolitan de Nova York, o Museu d’Orsay de Paris, a National Gallery e o Tate Museum de Londres, o que atesta a reconquista do prestígio internacional do Masp.

Em muitas dessas telas os personagens se repetem. Gauguin “recombina figuras e se apropria de imagens de outras culturas”, observa a curadora assistente do Masp, Laura Consendey – a mostra tem curadoria do diretor artístico do museu, Adriano Pedrosa, do curador Fernando Oliva e dela. Exemplo disso é a tela Pobre Pescador (1896), do acervo do Masp, cuja postura replica a de um faraó egípcio e a paisagem remete à estrutura formal das ondas nas gravuras japonesas Ukiyo-e.

No Taiti, referências passam a ser os deuses e mitos locais Foto: Masp
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Outra apropriação, desta vez mais próxima da cultura de seus ancestrais (a mãe era peruana), pode ser vista na tela Arii Matamoe (O Fim Real, 1892), obra de transição que exibe a cabeça de um rei taitiano morto e retratado como uma múmia inca, segundo a leitura do curador Fernando Oliva.

O empréstimo de algumas telas da exposição foi complicado, caso da obra-prima Deux Femmes Tahitiennes (Duas Mulheres Taitianas, 1899), pertencente ao Metropolitan de Nova York. Isso não só pelo alto valor das telas de Gauguin ( Nafea Faa Ipoipo, de 1892, é a mais cara, vendida num leilão de 2015 por US$ 300 milhões). “Os museus sempre pedem uma contrapartida, não em dinheiro, mas empréstimos de outras obras à altura”, conta o curador Fernando Oliva.

Algumas das pinturas mais raras de Gauguin estão, por exemplo, na Rússia (no Museu Pushkin e Hermitage), o que inviabiliza, neste período de guerra, qualquer empréstimo, mas o Masp conseguiu telas de museus distantes, como a Ny Carlsberg Glyptotek de Copenhague, uma magnífica paisagem (Apataroe, 1893), e outra do Museu de Belas Artes de Budapeste (Os Porcos Negros, 1891), pintada no ano da mudança para o Taiti.

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É possível identificar as mudanças formais nessa fase de transição, pois há na mostra exemplos de telas pintadas na Bretanha como Bonjour Monsieur Gauguin, 1889, autorretrato que remete a outra tela famosa, Bonjour Monsieur Courbet (1854) do mestre realista Gustave Courbet, também um autorretrato em que ele se pinta como gostaria de ser visto – ou como via a si mesmo.

'Bonjour Monsieur Gauguin' remete a 'Bonjour Monsieur Courbet': visão do 'outro' Foto: Masp

Em seu livro de memórias, Avant et Aprés (publicação póstuma, de 1918), Gauguin resume sua vida na Polinésia Francesa como uma luta existencial para reconciliar opostos. De formação católica – ele frequentou um seminário por três anos-, o pintor passou a abraçar a cultura do antípoda ao construir uma nova identidade na convivência com deuses e mitos pagãos. Basta comparar sua pintura religiosa na Bretanha (a tela Jacó luta com o Anjo, 1888, hoje na Galeria Nacional da Escócia) e uma tela exposta no Masp, Mahana no Atua (O Dia de Deus, 1894), obra do Instituto de Arte de Chicago em que a relação com o sagrado não é conflituosa, mas sensual.

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Gauguin foi um visionário. Pós-impressionsita, ele abjurou o impressionismo em nome de uma narrativa primitiva, deixando para trás a arte religiosa do passado e buscando superar o pensamento binário de seus contemporâneos. Autocentrado, ele tentou criar um mito da própria figura – motivo provável de seu rompimento com Van Gogh, que tampouco era uma pessoa fácil. No entanto, foi uma figura importante do movimento simbolista, que teve Ambroise Vollard por trás da venda de suas obras na França e influenciou gênios da pintura como Matisse e Picasso. Não é pouco.

A inclusão da retrospectiva do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) na programação anual do Masp dedicada às Histórias Indígenas pode parecer estranha, mas os curadores da mostra, que será aberta dia 28 de abril, têm uma explicação: frequentemente suas pinturas que foram realizadas no Taiti “são vistas como reproduções fiéis da Polinésia Francesa, mas essas obras carregam em si as fantasias que um homem branco europeu e branco tinha de uma região considerada paradisíaca”.

Sua visão dos nativos passou mesmo pela redução dos taitianos a estereótipos. E mais: há algum tempo os grandes museus internacionais parecem exibir com algum constrangimento pinturas suas que retratam adolescentes da Polinésia Francesa – uma delas, de 13 anos, foi sua amante e aparece na tela Manao Tupapan (O Espírito das Trevas Vigia), de 1892, espécie de tributo a um ícone da pintura moderna na França, a voluptuosa Olympia (1863), de Manet.

Autorretrato de Gauguin, 'Perto do Gólgota', de 1896, pertencente ao Masp Foto: WERTHER SANTANA/ ESTADAO

Bem, o fato é que as salas de concerto não “cancelam” Richard Wagner por seu antissemitismo. Assim, não seria justo banir as telas de Gauguin dos museus por ser o grande pintor francês um predador sexual, vítima da própria compulsão – ele morreu sifilítico.

Uma das 40 obras expostas no Masp até agosto, o seu Autorretrato (Perto do Gólgota, 1896), no acervo do museu desde 1951, mostra Gauguin como um Cristo próximo do calvário. O pintor seria vítima do sofrimento imposto pela civilização europeia – com ancestrais incas, ele buscou nos antípodas uma saída para o conservadorismo da sociedade francesa da época e acabou renegado também por eles. Ex-corretor, Gauguin decidiu, aos 35 anos, ser pintor em período integral quando a Bolsa de Valores de Paris desmoronou. Em 1891, ele partiu para o Taiti.

'Duas Mulheres Taitianas', ou 'Na Praia', de 1899: visão do paraíso Foto: Masp

A exposição do Masp traz essas obras produzidas na Polinésia Francesa e quatro autorretratos reveladores, dois deles da coleção permanente do Masp. Foram necessários cinco anos para reunir as 40 obras da mostra (21 pinturas e 19 gravuras) pertencentes a grandes museus internacionais, entre eles o Metropolitan de Nova York, o Museu d’Orsay de Paris, a National Gallery e o Tate Museum de Londres, o que atesta a reconquista do prestígio internacional do Masp.

Em muitas dessas telas os personagens se repetem. Gauguin “recombina figuras e se apropria de imagens de outras culturas”, observa a curadora assistente do Masp, Laura Consendey – a mostra tem curadoria do diretor artístico do museu, Adriano Pedrosa, do curador Fernando Oliva e dela. Exemplo disso é a tela Pobre Pescador (1896), do acervo do Masp, cuja postura replica a de um faraó egípcio e a paisagem remete à estrutura formal das ondas nas gravuras japonesas Ukiyo-e.

No Taiti, referências passam a ser os deuses e mitos locais Foto: Masp

Outra apropriação, desta vez mais próxima da cultura de seus ancestrais (a mãe era peruana), pode ser vista na tela Arii Matamoe (O Fim Real, 1892), obra de transição que exibe a cabeça de um rei taitiano morto e retratado como uma múmia inca, segundo a leitura do curador Fernando Oliva.

O empréstimo de algumas telas da exposição foi complicado, caso da obra-prima Deux Femmes Tahitiennes (Duas Mulheres Taitianas, 1899), pertencente ao Metropolitan de Nova York. Isso não só pelo alto valor das telas de Gauguin ( Nafea Faa Ipoipo, de 1892, é a mais cara, vendida num leilão de 2015 por US$ 300 milhões). “Os museus sempre pedem uma contrapartida, não em dinheiro, mas empréstimos de outras obras à altura”, conta o curador Fernando Oliva.

Algumas das pinturas mais raras de Gauguin estão, por exemplo, na Rússia (no Museu Pushkin e Hermitage), o que inviabiliza, neste período de guerra, qualquer empréstimo, mas o Masp conseguiu telas de museus distantes, como a Ny Carlsberg Glyptotek de Copenhague, uma magnífica paisagem (Apataroe, 1893), e outra do Museu de Belas Artes de Budapeste (Os Porcos Negros, 1891), pintada no ano da mudança para o Taiti.

É possível identificar as mudanças formais nessa fase de transição, pois há na mostra exemplos de telas pintadas na Bretanha como Bonjour Monsieur Gauguin, 1889, autorretrato que remete a outra tela famosa, Bonjour Monsieur Courbet (1854) do mestre realista Gustave Courbet, também um autorretrato em que ele se pinta como gostaria de ser visto – ou como via a si mesmo.

'Bonjour Monsieur Gauguin' remete a 'Bonjour Monsieur Courbet': visão do 'outro' Foto: Masp

Em seu livro de memórias, Avant et Aprés (publicação póstuma, de 1918), Gauguin resume sua vida na Polinésia Francesa como uma luta existencial para reconciliar opostos. De formação católica – ele frequentou um seminário por três anos-, o pintor passou a abraçar a cultura do antípoda ao construir uma nova identidade na convivência com deuses e mitos pagãos. Basta comparar sua pintura religiosa na Bretanha (a tela Jacó luta com o Anjo, 1888, hoje na Galeria Nacional da Escócia) e uma tela exposta no Masp, Mahana no Atua (O Dia de Deus, 1894), obra do Instituto de Arte de Chicago em que a relação com o sagrado não é conflituosa, mas sensual.

Gauguin foi um visionário. Pós-impressionsita, ele abjurou o impressionismo em nome de uma narrativa primitiva, deixando para trás a arte religiosa do passado e buscando superar o pensamento binário de seus contemporâneos. Autocentrado, ele tentou criar um mito da própria figura – motivo provável de seu rompimento com Van Gogh, que tampouco era uma pessoa fácil. No entanto, foi uma figura importante do movimento simbolista, que teve Ambroise Vollard por trás da venda de suas obras na França e influenciou gênios da pintura como Matisse e Picasso. Não é pouco.

A inclusão da retrospectiva do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) na programação anual do Masp dedicada às Histórias Indígenas pode parecer estranha, mas os curadores da mostra, que será aberta dia 28 de abril, têm uma explicação: frequentemente suas pinturas que foram realizadas no Taiti “são vistas como reproduções fiéis da Polinésia Francesa, mas essas obras carregam em si as fantasias que um homem branco europeu e branco tinha de uma região considerada paradisíaca”.

Sua visão dos nativos passou mesmo pela redução dos taitianos a estereótipos. E mais: há algum tempo os grandes museus internacionais parecem exibir com algum constrangimento pinturas suas que retratam adolescentes da Polinésia Francesa – uma delas, de 13 anos, foi sua amante e aparece na tela Manao Tupapan (O Espírito das Trevas Vigia), de 1892, espécie de tributo a um ícone da pintura moderna na França, a voluptuosa Olympia (1863), de Manet.

Autorretrato de Gauguin, 'Perto do Gólgota', de 1896, pertencente ao Masp Foto: WERTHER SANTANA/ ESTADAO

Bem, o fato é que as salas de concerto não “cancelam” Richard Wagner por seu antissemitismo. Assim, não seria justo banir as telas de Gauguin dos museus por ser o grande pintor francês um predador sexual, vítima da própria compulsão – ele morreu sifilítico.

Uma das 40 obras expostas no Masp até agosto, o seu Autorretrato (Perto do Gólgota, 1896), no acervo do museu desde 1951, mostra Gauguin como um Cristo próximo do calvário. O pintor seria vítima do sofrimento imposto pela civilização europeia – com ancestrais incas, ele buscou nos antípodas uma saída para o conservadorismo da sociedade francesa da época e acabou renegado também por eles. Ex-corretor, Gauguin decidiu, aos 35 anos, ser pintor em período integral quando a Bolsa de Valores de Paris desmoronou. Em 1891, ele partiu para o Taiti.

'Duas Mulheres Taitianas', ou 'Na Praia', de 1899: visão do paraíso Foto: Masp

A exposição do Masp traz essas obras produzidas na Polinésia Francesa e quatro autorretratos reveladores, dois deles da coleção permanente do Masp. Foram necessários cinco anos para reunir as 40 obras da mostra (21 pinturas e 19 gravuras) pertencentes a grandes museus internacionais, entre eles o Metropolitan de Nova York, o Museu d’Orsay de Paris, a National Gallery e o Tate Museum de Londres, o que atesta a reconquista do prestígio internacional do Masp.

Em muitas dessas telas os personagens se repetem. Gauguin “recombina figuras e se apropria de imagens de outras culturas”, observa a curadora assistente do Masp, Laura Consendey – a mostra tem curadoria do diretor artístico do museu, Adriano Pedrosa, do curador Fernando Oliva e dela. Exemplo disso é a tela Pobre Pescador (1896), do acervo do Masp, cuja postura replica a de um faraó egípcio e a paisagem remete à estrutura formal das ondas nas gravuras japonesas Ukiyo-e.

No Taiti, referências passam a ser os deuses e mitos locais Foto: Masp

Outra apropriação, desta vez mais próxima da cultura de seus ancestrais (a mãe era peruana), pode ser vista na tela Arii Matamoe (O Fim Real, 1892), obra de transição que exibe a cabeça de um rei taitiano morto e retratado como uma múmia inca, segundo a leitura do curador Fernando Oliva.

O empréstimo de algumas telas da exposição foi complicado, caso da obra-prima Deux Femmes Tahitiennes (Duas Mulheres Taitianas, 1899), pertencente ao Metropolitan de Nova York. Isso não só pelo alto valor das telas de Gauguin ( Nafea Faa Ipoipo, de 1892, é a mais cara, vendida num leilão de 2015 por US$ 300 milhões). “Os museus sempre pedem uma contrapartida, não em dinheiro, mas empréstimos de outras obras à altura”, conta o curador Fernando Oliva.

Algumas das pinturas mais raras de Gauguin estão, por exemplo, na Rússia (no Museu Pushkin e Hermitage), o que inviabiliza, neste período de guerra, qualquer empréstimo, mas o Masp conseguiu telas de museus distantes, como a Ny Carlsberg Glyptotek de Copenhague, uma magnífica paisagem (Apataroe, 1893), e outra do Museu de Belas Artes de Budapeste (Os Porcos Negros, 1891), pintada no ano da mudança para o Taiti.

É possível identificar as mudanças formais nessa fase de transição, pois há na mostra exemplos de telas pintadas na Bretanha como Bonjour Monsieur Gauguin, 1889, autorretrato que remete a outra tela famosa, Bonjour Monsieur Courbet (1854) do mestre realista Gustave Courbet, também um autorretrato em que ele se pinta como gostaria de ser visto – ou como via a si mesmo.

'Bonjour Monsieur Gauguin' remete a 'Bonjour Monsieur Courbet': visão do 'outro' Foto: Masp

Em seu livro de memórias, Avant et Aprés (publicação póstuma, de 1918), Gauguin resume sua vida na Polinésia Francesa como uma luta existencial para reconciliar opostos. De formação católica – ele frequentou um seminário por três anos-, o pintor passou a abraçar a cultura do antípoda ao construir uma nova identidade na convivência com deuses e mitos pagãos. Basta comparar sua pintura religiosa na Bretanha (a tela Jacó luta com o Anjo, 1888, hoje na Galeria Nacional da Escócia) e uma tela exposta no Masp, Mahana no Atua (O Dia de Deus, 1894), obra do Instituto de Arte de Chicago em que a relação com o sagrado não é conflituosa, mas sensual.

Gauguin foi um visionário. Pós-impressionsita, ele abjurou o impressionismo em nome de uma narrativa primitiva, deixando para trás a arte religiosa do passado e buscando superar o pensamento binário de seus contemporâneos. Autocentrado, ele tentou criar um mito da própria figura – motivo provável de seu rompimento com Van Gogh, que tampouco era uma pessoa fácil. No entanto, foi uma figura importante do movimento simbolista, que teve Ambroise Vollard por trás da venda de suas obras na França e influenciou gênios da pintura como Matisse e Picasso. Não é pouco.

A inclusão da retrospectiva do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) na programação anual do Masp dedicada às Histórias Indígenas pode parecer estranha, mas os curadores da mostra, que será aberta dia 28 de abril, têm uma explicação: frequentemente suas pinturas que foram realizadas no Taiti “são vistas como reproduções fiéis da Polinésia Francesa, mas essas obras carregam em si as fantasias que um homem branco europeu e branco tinha de uma região considerada paradisíaca”.

Sua visão dos nativos passou mesmo pela redução dos taitianos a estereótipos. E mais: há algum tempo os grandes museus internacionais parecem exibir com algum constrangimento pinturas suas que retratam adolescentes da Polinésia Francesa – uma delas, de 13 anos, foi sua amante e aparece na tela Manao Tupapan (O Espírito das Trevas Vigia), de 1892, espécie de tributo a um ícone da pintura moderna na França, a voluptuosa Olympia (1863), de Manet.

Autorretrato de Gauguin, 'Perto do Gólgota', de 1896, pertencente ao Masp Foto: WERTHER SANTANA/ ESTADAO

Bem, o fato é que as salas de concerto não “cancelam” Richard Wagner por seu antissemitismo. Assim, não seria justo banir as telas de Gauguin dos museus por ser o grande pintor francês um predador sexual, vítima da própria compulsão – ele morreu sifilítico.

Uma das 40 obras expostas no Masp até agosto, o seu Autorretrato (Perto do Gólgota, 1896), no acervo do museu desde 1951, mostra Gauguin como um Cristo próximo do calvário. O pintor seria vítima do sofrimento imposto pela civilização europeia – com ancestrais incas, ele buscou nos antípodas uma saída para o conservadorismo da sociedade francesa da época e acabou renegado também por eles. Ex-corretor, Gauguin decidiu, aos 35 anos, ser pintor em período integral quando a Bolsa de Valores de Paris desmoronou. Em 1891, ele partiu para o Taiti.

'Duas Mulheres Taitianas', ou 'Na Praia', de 1899: visão do paraíso Foto: Masp

A exposição do Masp traz essas obras produzidas na Polinésia Francesa e quatro autorretratos reveladores, dois deles da coleção permanente do Masp. Foram necessários cinco anos para reunir as 40 obras da mostra (21 pinturas e 19 gravuras) pertencentes a grandes museus internacionais, entre eles o Metropolitan de Nova York, o Museu d’Orsay de Paris, a National Gallery e o Tate Museum de Londres, o que atesta a reconquista do prestígio internacional do Masp.

Em muitas dessas telas os personagens se repetem. Gauguin “recombina figuras e se apropria de imagens de outras culturas”, observa a curadora assistente do Masp, Laura Consendey – a mostra tem curadoria do diretor artístico do museu, Adriano Pedrosa, do curador Fernando Oliva e dela. Exemplo disso é a tela Pobre Pescador (1896), do acervo do Masp, cuja postura replica a de um faraó egípcio e a paisagem remete à estrutura formal das ondas nas gravuras japonesas Ukiyo-e.

No Taiti, referências passam a ser os deuses e mitos locais Foto: Masp

Outra apropriação, desta vez mais próxima da cultura de seus ancestrais (a mãe era peruana), pode ser vista na tela Arii Matamoe (O Fim Real, 1892), obra de transição que exibe a cabeça de um rei taitiano morto e retratado como uma múmia inca, segundo a leitura do curador Fernando Oliva.

O empréstimo de algumas telas da exposição foi complicado, caso da obra-prima Deux Femmes Tahitiennes (Duas Mulheres Taitianas, 1899), pertencente ao Metropolitan de Nova York. Isso não só pelo alto valor das telas de Gauguin ( Nafea Faa Ipoipo, de 1892, é a mais cara, vendida num leilão de 2015 por US$ 300 milhões). “Os museus sempre pedem uma contrapartida, não em dinheiro, mas empréstimos de outras obras à altura”, conta o curador Fernando Oliva.

Algumas das pinturas mais raras de Gauguin estão, por exemplo, na Rússia (no Museu Pushkin e Hermitage), o que inviabiliza, neste período de guerra, qualquer empréstimo, mas o Masp conseguiu telas de museus distantes, como a Ny Carlsberg Glyptotek de Copenhague, uma magnífica paisagem (Apataroe, 1893), e outra do Museu de Belas Artes de Budapeste (Os Porcos Negros, 1891), pintada no ano da mudança para o Taiti.

É possível identificar as mudanças formais nessa fase de transição, pois há na mostra exemplos de telas pintadas na Bretanha como Bonjour Monsieur Gauguin, 1889, autorretrato que remete a outra tela famosa, Bonjour Monsieur Courbet (1854) do mestre realista Gustave Courbet, também um autorretrato em que ele se pinta como gostaria de ser visto – ou como via a si mesmo.

'Bonjour Monsieur Gauguin' remete a 'Bonjour Monsieur Courbet': visão do 'outro' Foto: Masp

Em seu livro de memórias, Avant et Aprés (publicação póstuma, de 1918), Gauguin resume sua vida na Polinésia Francesa como uma luta existencial para reconciliar opostos. De formação católica – ele frequentou um seminário por três anos-, o pintor passou a abraçar a cultura do antípoda ao construir uma nova identidade na convivência com deuses e mitos pagãos. Basta comparar sua pintura religiosa na Bretanha (a tela Jacó luta com o Anjo, 1888, hoje na Galeria Nacional da Escócia) e uma tela exposta no Masp, Mahana no Atua (O Dia de Deus, 1894), obra do Instituto de Arte de Chicago em que a relação com o sagrado não é conflituosa, mas sensual.

Gauguin foi um visionário. Pós-impressionsita, ele abjurou o impressionismo em nome de uma narrativa primitiva, deixando para trás a arte religiosa do passado e buscando superar o pensamento binário de seus contemporâneos. Autocentrado, ele tentou criar um mito da própria figura – motivo provável de seu rompimento com Van Gogh, que tampouco era uma pessoa fácil. No entanto, foi uma figura importante do movimento simbolista, que teve Ambroise Vollard por trás da venda de suas obras na França e influenciou gênios da pintura como Matisse e Picasso. Não é pouco.

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