Mas a miséria moral não ficou para trás. O que prevaleceu na tediosa sessão do “juízo final” foi o extremo cinismo dos discursos com voz de empáfia de vários senadores, alguns notórios fichas-sujas, que dificilmente perderão o mandato. Numa verdadeira democracia, o presidente da República pode ser julgado por políticos que cometeram crimes ou estão sendo investigados? Qual é o significado dessa aberração?
O momento mais interessante do julgamento foi o diálogo ou embate entre dois senadores e a então presidente. Os três militaram em organizações clandestinas que combateram a ditadura, e agora estavam em lados opostos.
A acusação e a defesa alternaram discursos previsíveis, e era difícil acreditar que a crise no setor elétrico em 2014 e a suposta omissão de passivos no Banco Central fossem o cerne do problema. O olhar e a expressão reflexiva dos acusadores e da ré eram às vezes interrompidos por gestos nervosos, impacientes. Pareciam um pouco alheios à tarifa de luz, ao calote, à dívida, às pedaladas, ao Banco Central e ao Diabo.
Em que pensavam? Nas reuniões clandestinas da mocidade, numa época já distante? Na militância da luta armada, posterior a esse tempo? Será que em algum momento os julgadores e a então presidente cruzaram seus pensamentos? Lembraram-se da coragem e do medo, antes e depois das perigosas, ousadas ações radicais? Pensaram na amizade rompida, no heroísmo, no sonho libertário? Na traição? Pensaram na morte?
Muito antes do fim da sessão no plenário, os dois senadores já haviam condenado a presidente. Talvez tenham esperado meio século para selar a sentença final. Há algo de subjetivo e misterioso nessa longa espera, que poderia ser um tema de uma narrativa literária: a história de traidores e heróis.
Afinal, os senadores, mesmo a contragosto, estavam alinhados com o ex-presidente da Câmara, o meliante-mor do Legislativo, chefe de uma quadrilha de deputados, aqueles sete políticos do “Conselho de Ética”, todos investigados, três deles réus no STF. Todos soltos, rindo do Judiciário e da gente. Estavam no mesmo campo do deputado fascista, o idólatra da tortura e da repressão durante a ditadura, idólatra talvez dos campos de refugiados e de outros campos mais sinistros.
O que leva uma pessoa que combateu pela liberdade e pela democracia a se alinhar com os setores políticos mais obscuros deste país? Será apenas a luta pelo poder? Ou será uma vingança que parecia adormecida, escondida nos últimos 50 anos, com seus dias e noites?
Às vezes, na política e no amor, alguém espera a vida toda o momento da vingança. Mas como escreveu Shakespeare: “A esperança da vingança esconderá nosso luto íntimo”.