Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

O último dia no Palácio


De onde vem tanto silêncio? Os fiéis e as orações sumiram. Fingiam orar por mim?

Por Milton Hatoum
Atualização:

“Onde estão os outros?”, perguntou para si mesmo, olhando ao redor. “De onde vem tanto silêncio? Os fiéis e as orações sumiram. Fingiam orar por mim?”

Viu no jardim o corre-corre alegre das emas. Até elas! De repente, com uma pontada de ódio, percebeu que dormira quatro anos num palácio desenhado por mãos comunistas; o ódio cresceu quando se lembrou de outros palácios e monumentos. “Até a Catedral e a Igrejinha”, murmurou, rangendo os dentes. “Pode uma coisa dessa? Um comunista projetar templos católicos?”

Sentiu uma pressão no peito, em seguida, uma coceira louca nas pernas. Mais que a solidão, sentiu a ira dos inconformados pela derrota; depois sentiu-se abandonado pelos pares mais fiéis, civis e militares. Abriu as mãos magras: “O poder escorreu entre os meus dedos como se fosse água”. E gritou: “Água imunda, ouviram? Onde vocês estão?”

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O grito ecoou no palácio, assustou as emas, o lago estremeceu. Um coro de vozes femininas bradou:

“O sofrimento não passa sem deixar rastros e testemunhas”.

Girou o corpo: nem uma vivalma no salão. Levou um susto quando viu no espelho seu rosto deformado pela ira. Outro coro, agora masculino, entoou:

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“E você pagará caro por todos os órfãos da pandemia, por todos os mortos e por nós, os enlutados”.

Um sufoco o assaltou. “Esse ar morno não é normal. É o ar ou a febre?” Uma sombra imensa manchou o jardim, o lago e o céu. Olhou o celular: Dia ensolarado. Maldita previsão do tempo! O peso no peito e a falta de ar aumentaram, um calor opressivo invadiu o salão, o celular esquentou, caiu no tapete, e a mão parou diante de uma gelatina em brasa. Então o derrotado gritou três números e esperou. Ouviu chiados, viu o salão escurecer, mas ainda pôde divisar três focinhos grandes que o encaravam com olhar inumano.

“Quem são vocês?”, perguntou, engasgado.

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Julgou estar sonhando, mas ao gargalhar, tenebroso, percebeu que o pesadelo ansiado era uma farsa.

As três ratazanas sumiram; as paredes, os móveis e o tapete ficaram quase indistintos, e os olhos do derrotado, ardidos, umedeceram. Não chorava por seus crimes nem por sua crueldade, mas por sua insignificância de homem. De súbito, um pensamento o surpreendeu: “Sou tão insignificante quanto é imperceptível uma vela acesa num vulcão em erupção”.

Coçou as pernas, arranhando-as com fúria, até sentir a carne viva. Murmúrios irromperam em sua cabeça: vozes de crianças, de jovens e de adultos.

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Por fim, ouviu: “O palácio de seu futuro será uma cela”.

E desmoronou.

“Onde estão os outros?”, perguntou para si mesmo, olhando ao redor. “De onde vem tanto silêncio? Os fiéis e as orações sumiram. Fingiam orar por mim?”

Viu no jardim o corre-corre alegre das emas. Até elas! De repente, com uma pontada de ódio, percebeu que dormira quatro anos num palácio desenhado por mãos comunistas; o ódio cresceu quando se lembrou de outros palácios e monumentos. “Até a Catedral e a Igrejinha”, murmurou, rangendo os dentes. “Pode uma coisa dessa? Um comunista projetar templos católicos?”

Sentiu uma pressão no peito, em seguida, uma coceira louca nas pernas. Mais que a solidão, sentiu a ira dos inconformados pela derrota; depois sentiu-se abandonado pelos pares mais fiéis, civis e militares. Abriu as mãos magras: “O poder escorreu entre os meus dedos como se fosse água”. E gritou: “Água imunda, ouviram? Onde vocês estão?”

O grito ecoou no palácio, assustou as emas, o lago estremeceu. Um coro de vozes femininas bradou:

“O sofrimento não passa sem deixar rastros e testemunhas”.

Girou o corpo: nem uma vivalma no salão. Levou um susto quando viu no espelho seu rosto deformado pela ira. Outro coro, agora masculino, entoou:

“E você pagará caro por todos os órfãos da pandemia, por todos os mortos e por nós, os enlutados”.

Um sufoco o assaltou. “Esse ar morno não é normal. É o ar ou a febre?” Uma sombra imensa manchou o jardim, o lago e o céu. Olhou o celular: Dia ensolarado. Maldita previsão do tempo! O peso no peito e a falta de ar aumentaram, um calor opressivo invadiu o salão, o celular esquentou, caiu no tapete, e a mão parou diante de uma gelatina em brasa. Então o derrotado gritou três números e esperou. Ouviu chiados, viu o salão escurecer, mas ainda pôde divisar três focinhos grandes que o encaravam com olhar inumano.

“Quem são vocês?”, perguntou, engasgado.

Julgou estar sonhando, mas ao gargalhar, tenebroso, percebeu que o pesadelo ansiado era uma farsa.

As três ratazanas sumiram; as paredes, os móveis e o tapete ficaram quase indistintos, e os olhos do derrotado, ardidos, umedeceram. Não chorava por seus crimes nem por sua crueldade, mas por sua insignificância de homem. De súbito, um pensamento o surpreendeu: “Sou tão insignificante quanto é imperceptível uma vela acesa num vulcão em erupção”.

Coçou as pernas, arranhando-as com fúria, até sentir a carne viva. Murmúrios irromperam em sua cabeça: vozes de crianças, de jovens e de adultos.

Por fim, ouviu: “O palácio de seu futuro será uma cela”.

E desmoronou.

“Onde estão os outros?”, perguntou para si mesmo, olhando ao redor. “De onde vem tanto silêncio? Os fiéis e as orações sumiram. Fingiam orar por mim?”

Viu no jardim o corre-corre alegre das emas. Até elas! De repente, com uma pontada de ódio, percebeu que dormira quatro anos num palácio desenhado por mãos comunistas; o ódio cresceu quando se lembrou de outros palácios e monumentos. “Até a Catedral e a Igrejinha”, murmurou, rangendo os dentes. “Pode uma coisa dessa? Um comunista projetar templos católicos?”

Sentiu uma pressão no peito, em seguida, uma coceira louca nas pernas. Mais que a solidão, sentiu a ira dos inconformados pela derrota; depois sentiu-se abandonado pelos pares mais fiéis, civis e militares. Abriu as mãos magras: “O poder escorreu entre os meus dedos como se fosse água”. E gritou: “Água imunda, ouviram? Onde vocês estão?”

O grito ecoou no palácio, assustou as emas, o lago estremeceu. Um coro de vozes femininas bradou:

“O sofrimento não passa sem deixar rastros e testemunhas”.

Girou o corpo: nem uma vivalma no salão. Levou um susto quando viu no espelho seu rosto deformado pela ira. Outro coro, agora masculino, entoou:

“E você pagará caro por todos os órfãos da pandemia, por todos os mortos e por nós, os enlutados”.

Um sufoco o assaltou. “Esse ar morno não é normal. É o ar ou a febre?” Uma sombra imensa manchou o jardim, o lago e o céu. Olhou o celular: Dia ensolarado. Maldita previsão do tempo! O peso no peito e a falta de ar aumentaram, um calor opressivo invadiu o salão, o celular esquentou, caiu no tapete, e a mão parou diante de uma gelatina em brasa. Então o derrotado gritou três números e esperou. Ouviu chiados, viu o salão escurecer, mas ainda pôde divisar três focinhos grandes que o encaravam com olhar inumano.

“Quem são vocês?”, perguntou, engasgado.

Julgou estar sonhando, mas ao gargalhar, tenebroso, percebeu que o pesadelo ansiado era uma farsa.

As três ratazanas sumiram; as paredes, os móveis e o tapete ficaram quase indistintos, e os olhos do derrotado, ardidos, umedeceram. Não chorava por seus crimes nem por sua crueldade, mas por sua insignificância de homem. De súbito, um pensamento o surpreendeu: “Sou tão insignificante quanto é imperceptível uma vela acesa num vulcão em erupção”.

Coçou as pernas, arranhando-as com fúria, até sentir a carne viva. Murmúrios irromperam em sua cabeça: vozes de crianças, de jovens e de adultos.

Por fim, ouviu: “O palácio de seu futuro será uma cela”.

E desmoronou.

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