Até um par de meses atrás a normalidade era apenas normal.
Hoje, porém, podemos apreciar o quão extraordinário era o corriqueiro.
Essa banalização do normal não decorre de ignorância ou burrice, mas da internalização de que o normal é a norma.
O normal é a sobremesa da vida e devemos servir-nos dele com a parcimônia própria do final da refeição, quando já não há mais fome.
A certeza de que tudo acontecerá de forma habitual é um afastamento da vida.
A vida é por essência transformação e tensão e aqueles que alcançam a paz não o fazem por normalização, mas por evolução sincrônica com mudanças e renovações da realidade.
E talvez essa seja a parte mais difícil desse nosso confinamento: a certeza de que nossa geração não reencontrará mais o normal do lado de fora de nossas casas.
O normal foi alterado.
Dois pensadores do confinamento explicam essa mutação do normal: a primeira, Anne Frank, diz que “nossas vidas são talhadas por nossas escolhas num processo em que primeiro fazemos as escolhas e depois essas escolhas, elas mesmas, nos transformam”; significando que “escolhas”, por um lado, são a própria definição de estar fora da normalidade e, por outro, que delas nunca saímos ilesos, mas transfigurados.
O segundo, Viktor Frankl — neuropsiquiatra austríaco que descreve sua experiência em campos de concentração nazistas —, postula que “nos momentos em que não somos mais capazes de mudar a situação, somos então desafiados a mudar a nós mesmos”. Ou seja, para retornar ao normal, impõe-se rever ideias, sentimentos e ações.
E assim, talhados por nossas escolhas e transformados por aquilo que não controlamos, faz-se extinto o antigo normal.
A boa notícia, no entanto, é que, mesmo em sua condição transitória, reencontraremos um novo normal!
Ele chegará tão logo seja possível abrir mão do antigo.
* Nilton Bonder é rabino, autor de 23 livros traduzidos em 18 idiomas, dois deles adaptados ao teatro e cinema. Fundador do Centro Cultural Midrash no RJ, dramaturgo de Cura, próximo trabalho da Cia. de Dança Deborah Colker, e da peça Eros, com direção de Marcio Abreu