Briga por herança bilionária de Pierre Cardin abala a família e o mundo da moda francesa; entenda


Os herdeiros do estilista protagonizam batalha épica que envolve 22 sobrinhas e sobrinhos-netos por patrimônio que pode valer mais de R$ 4 bilhões

Por Dana Thomas

O estilista francês Pierre Cardin gostava de se gabar de tudo o que havia conquistado desde que fundara sua marca, em 1950. Quando recebeu um repórter em seu estúdio na Avenue de Marigny, em 1999, exibiu grandes fotografias em preto e branco de sua fábrica na França da década de 1970; fotos dele com modelos na Praça Vermelha em 1986; itens com o logotipo Cardin produzidos por centenas de licenças; e um catálogo de seus looks futuristas mais famosos.

“Influenciei todos os estilistas”, disse ele. “Todo mundo conhece Pierre Cardin”.

O que ele não gostava de falar era o que seria de sua empresa depois que ele partisse. Três meses antes de Cardin morrer, em dezembro de 2020, aos 98 anos, após complicações de covid-19, ele disse a um repórter da Paris Match: “Depois da minha morte? Não penso sobre isso. Não organizei nada. NADA”.

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A lenda da moda francesa Pierre Cardin em Moscou, em 28 de maio de 2010 Foto: Reuters/Alexander Natruskin

Testamento não assinado e não registrado

Essa falta de organização gerou uma épica batalha jurídica entre 22 sobrinhas e sobrinhos-netos de Cardin que afirmam ser seus herdeiros, uma vez que ele nunca se casou nem teve filhos. Seu companheiro de longa data nos negócios e na vida, André Oliver, morreu em 1993.

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De um lado da luta está Rodrigo Basilicati-Cardin, neto italiano de 52 anos do irmão mais velho de Cardin, Erminio. (Pierre Cardin, nascido Pietro Cardini em 1922, perto de Treviso, Itália, era o mais novo de treze filhos). Basilicati-Cardin – ele adotou o nome Cardin em 2018 – trabalhou para o tio-avô por mais de vinte anos.

Desde 2020, é gerente geral da holding Pierre Cardin Evolution e diretor artístico da marca Pierre Cardin. Na noite de segunda-feira, ele organizou um desfile de moda Pierre Cardin na sede do Partido Comunista Francês, em Paris.

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Basilicati-Cardin insiste que é o herdeiro legítimo – um herdeiro designado por Cardin, por testamento não assinado e não registrado – e seu irmão e sua irmã apoiam a reivindicação. Ele quer manter a propriedade da empresa e continuar como chefe de negócios e à frente do lado criativo.

Acusações de crimes e fraude

No outro campo estão 19 primos de outros seis ramos familiares, que querem vender a empresa e ficar com o dinheiro. Quatro dessas primas, Patricia, Laurence, Régine e Marie-Christine (netas de Giovanna Cardin, irmã de Cardin), entraram com ações judiciais e queixas criminais contra Basilicati-Cardin, acusando-o de crimes como abuso de idosos e falsificação, todos os quais Basílicati-Cardin nega.

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“É triste que uma casa tão histórica chegue a este ponto”, disse Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, que trabalhou no estúdio Pierre Cardin por vinte anos e foi demitido por Basilicati-Cardin dias depois da morte do fundador da marca.

“Muito deselegante”

Louis Cardin-Edwards

Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, ao lado de Pierre Cardin Foto: Reprodução/Instagram/@_louiscardin_
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Da fuga de Mussolini a dono da própria marca

Cardin chegou ainda criança à França, quando seus pais fugiram da Itália de Benito Mussolini, após a Primeira Guerra Mundial. O clã Cardini se estabeleceu em Saint-Étienne, uma pequena cidade no centro da França, e o nome foi abreviado para Cardin.

Cardin estudou arquitetura, mas seu amor pela moda e pela alfaiataria era mais forte. Ele chegou a Paris depois da Segunda Guerra Mundial e trabalhou para as casas de alta costura Paquin e Schiaparelli antes de conseguir um emprego no estúdio de um jovem designer chamado Christian Dior. Entre os conjuntos que Cardin cortou e costurou pessoalmente para a coleção de estreia de Dior em fevereiro de 1947 estava o Bar, um terninho ampulheta preto e branco que passou a simbolizar o “New Look” da casa.

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Três anos depois, Cardin fundou sua casa homônima. Ele ganhou reputação no ano seguinte, quando desenhou trinta figurinos para o extravagante baile de máscaras de Carlos de Beistegui em Veneza, Itália. Em 1958, Cardin lançou a moda masculina, que ainda é um negócio forte para a marca. Também se credita a ele a invenção do bubble dress, um corpete justo com uma saia rodada na altura dos joelhos.

Geometria e modernidade como assinatura

Página do Estadão de 18/8/1968 mostra modelos de Pierre Cardin à venda no Mappin Foto: Acervo Estadão

Durante a era espacial e os movimentos da pop art da década de 1960, Cardin abraçou o futurismo, criando roupas modernas em formas geométricas e cores ousadas. Em 1970, ele contratou como assistente um parisiense de 18 anos chamado Jean Paul Gaultier.

“Pierre Cardin inventava coisas”, disse Gaultier durante uma entrevista ao New York Times em 2018. “Foi a verdadeira modernidade”.

Cardin também estava voltado para o futuro nos negócios: vendeu nos inexplorados mercados de luxo do Japão na década de 1950, da China na década de 1970 e da União Soviética na década de 1980. Ele se tornou o rei das licenças, colocando seu logotipo em tudo, desde perfumes até frigideiras. Em 1981, comprou a Maxim’s, a joia do restaurante art nouveau, e também licenciou esse nome.

Pierre Cardin era contra herança?

Nas horas vagas, Cardin comprava imóveis – muitos deles – incluindo prédios e apartamentos próximos ao Palácio do Eliseu, onde era sua casa e a sede de sua empresa. Ele também tinha um moinho na Normandia, França; um apartamento na Quinta Avenida de Nova York; o Palazzo Ca’ Bragadin, do século 13, em Veneza, onde Casanova viveu; o Chateau de Théoule, do século 17, e o vanguardista Palais Bulles na Côte d’Azur da França; e o Château de Lacoste, do século 11, a antiga casa do Marquês de Sade na Provença, França, além de dezenas de apartamentos e casas na aldeia próxima. O que está em disputa é a herança de tudo isso e muito mais.

“Fiquei surpreso com a família, porque meu tio me disse que queria que a empresa continuasse e que não fosse transmitida para a família”, disse Cardin-Edwards, 39 anos, que foi o único parente a trabalhar com Cardin no estúdio. Ele não é herdeiro, embora sua mãe, Marie-Christine, seja (ela está entre as quatro irmãs que entraram com a ação judicial). “Meu tio disse que não entendia o conceito de herança familiar”, disse. “Ele era contra”.

Mas Cardin também era contra lidar com o assunto. “Toda vez que dizíamos: ‘Vamos ao cartório botar isso no papel’, ele cancelava no último minuto”, disse Cardin-Edwards. “Não conseguia imaginar alguém o substituindo”.

Emmanuel Beffy, que Cardin contratou para supervisionar licenças, negócios imobiliários e projetos culturais na Ásia, concordou: “Ele não queria entregar o poder. Quis mantê-lo até o fim”.

Aí entra Basilicati-Cardin. Nascido e criado em Pádua, Itália, era engenheiro civil de formação quando, aos 25 anos, finalmente conheceu seu famoso tio numa exposição de arte em Veneza organizada por ele mesmo. “Ele disse: ‘Me fale sobre você’ e passamos duas horas conversando”, lembrou Basilicati-Cardin durante uma entrevista ao Times. “Aí ele disse: ‘Por que você não vem morar aqui, no meu palácio?’”

Cardin contratou Basilicati-Cardin para supervisionar a fonte toscana que fornecia a água mineral Maxim e, mais tarde, várias outras empresas sediadas na Itália. Em 2018, Cardin nomeou Basilicati-Cardin gerente-geral da holding. Foi então que Basilicati, como era conhecido, decidiu acrescentar Cardin a seu nome. “Fui à Câmara Municipal de Treviso e fiz todos os trâmites administrativos”, disse a La Gazette Drouot.

Em novembro de 2016, Cardin posa como membro da Academia de Belas-Artes de Paris ao lado de modelos no final de desfile de moda que celebrou a carreira dele  Foto: Reuters/Jacky Naegelen

Procuração contestada

Embora Basilicati-Cardin detivesse um cargo importante na empresa, Jean-Louis Rivière, o advogado que representa as quatro irmãs, disse: “Ele não tinha o direito de assinar um contrato nem vender nada. Nenhum tipo de poder”. Basilicati-Cardin disse que o acordo era prepará-lo para, com o tempo, assumir os negócios.

Isso mudou no final de 2020. Enquanto estava gravemente doente após uma infecção por covid-19, Cardin concedeu uma procuração a Basilicati-Cardin. Rivière descreveu a assinatura do documento como “suspeita”, uma vez que, disse ele, “Cardin estava em coma, ou semicoma, na época”.

Não foi bem assim, disse Basilicati-Cardin: o documento foi assinado por Cardin em casa, perante um tabelião e dois médicos que atestaram sua capacidade mental.

As irmãs Cardin acusaram o primo de abuso de idosos, fraude e quebra de confiança. A promotoria de Paris abriu uma investigação no início deste ano.

Justiça francesa decidirá se testamento de Cardin é válido ou não

O mais perturbador para a família é a afirmação de Basilicati-Cardin de que ele é o único herdeiro de Cardin. Ele disse que os desejos de Cardin foram detalhados em um testamento datado de 10 de novembro de 2016, que Basilicati-Cardin disse ter descoberto no ano passado no apartamento de Cardin em Paris, bem no momento em que os herdeiros que são a favor da venda receberam a oferta de um grupo empresarial francês para comprar o grupo Cardin por 800 milhões de euros (RS 4,2 bilhões).

Como o testamento não foi encontrado durante o inventário original dos bens de Cardin e, embora rubricado, não tenha sido assinado e registado junto às autoridades francesas, as quatro irmãs acusam-no de ser inválido. Beffy também está cético:

“Pierre Cardin sempre assinou documentos como ‘Pierre Cardin’, não com iniciais”.

Em março, um juiz declarou o testamento inválido, decisão da qual Basilicati-Cardin apelou. O tribunal de apelações de Paris ouvirá os argumentos em 2 de novembro e deverá decidir até o final do ano.

“Existem duas possibilidades de resolução”, disse Rivière. “Ou o testamento de Basilicati-Cardin é cancelado e meus clientes e seus primos são legitimados como herdeiros, ou é confirmado e ele fica com o controle de tudo”.

Para complicar, Beffy tem outro testamento de Cardin, de 2013. Nele, Cardin afirmava que Beffy receberia a mansão Norman, Marie-Christine Cardin-Edwards ganharia um apartamento, e Beffy e Basilicati-Cardin herdariam tudo o que se “move”, ou seja, móveis, carros, joias, obras de arte e contas bancárias. O documento estava assinado e datado, mas, disse Beffy, “o tabelião não o registrou”.

“Agora estou esperando para ver o que acontece”, disse Beffy.

Família ou não, todos estão de olho no legado do estilista

Há também a questão da propriedade da empresa. No momento da morte, Cardin detinha 99,999% da empresa. Os 0,001% restantes são detidos por Basilicati-Cardin, que disse que sua tia-avó Giovanna, mãe das quatro irmãs que o processam, assinou esse documento para ele um mês antes de morrer em 2000, aos 97 anos.

Impossível, dizem as irmãs, assim como Cardin-Edwards. “Eu a vi naquele mês e ela não me reconheceu, então acho difícil que tenha assinado um documento tão importante”, disse ele.

Todos aguardam julgamento. Compradores potenciais – “grandes grupos”, disse Rivière – estão de olho, caso Basilicati-Cardin perca e a família consiga colocar a empresa à venda.

“Estamos serenos”, disse Rivière, “porque acreditamos na justiça”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O estilista francês Pierre Cardin gostava de se gabar de tudo o que havia conquistado desde que fundara sua marca, em 1950. Quando recebeu um repórter em seu estúdio na Avenue de Marigny, em 1999, exibiu grandes fotografias em preto e branco de sua fábrica na França da década de 1970; fotos dele com modelos na Praça Vermelha em 1986; itens com o logotipo Cardin produzidos por centenas de licenças; e um catálogo de seus looks futuristas mais famosos.

“Influenciei todos os estilistas”, disse ele. “Todo mundo conhece Pierre Cardin”.

O que ele não gostava de falar era o que seria de sua empresa depois que ele partisse. Três meses antes de Cardin morrer, em dezembro de 2020, aos 98 anos, após complicações de covid-19, ele disse a um repórter da Paris Match: “Depois da minha morte? Não penso sobre isso. Não organizei nada. NADA”.

A lenda da moda francesa Pierre Cardin em Moscou, em 28 de maio de 2010 Foto: Reuters/Alexander Natruskin

Testamento não assinado e não registrado

Essa falta de organização gerou uma épica batalha jurídica entre 22 sobrinhas e sobrinhos-netos de Cardin que afirmam ser seus herdeiros, uma vez que ele nunca se casou nem teve filhos. Seu companheiro de longa data nos negócios e na vida, André Oliver, morreu em 1993.

De um lado da luta está Rodrigo Basilicati-Cardin, neto italiano de 52 anos do irmão mais velho de Cardin, Erminio. (Pierre Cardin, nascido Pietro Cardini em 1922, perto de Treviso, Itália, era o mais novo de treze filhos). Basilicati-Cardin – ele adotou o nome Cardin em 2018 – trabalhou para o tio-avô por mais de vinte anos.

Desde 2020, é gerente geral da holding Pierre Cardin Evolution e diretor artístico da marca Pierre Cardin. Na noite de segunda-feira, ele organizou um desfile de moda Pierre Cardin na sede do Partido Comunista Francês, em Paris.

Basilicati-Cardin insiste que é o herdeiro legítimo – um herdeiro designado por Cardin, por testamento não assinado e não registrado – e seu irmão e sua irmã apoiam a reivindicação. Ele quer manter a propriedade da empresa e continuar como chefe de negócios e à frente do lado criativo.

Acusações de crimes e fraude

No outro campo estão 19 primos de outros seis ramos familiares, que querem vender a empresa e ficar com o dinheiro. Quatro dessas primas, Patricia, Laurence, Régine e Marie-Christine (netas de Giovanna Cardin, irmã de Cardin), entraram com ações judiciais e queixas criminais contra Basilicati-Cardin, acusando-o de crimes como abuso de idosos e falsificação, todos os quais Basílicati-Cardin nega.

“É triste que uma casa tão histórica chegue a este ponto”, disse Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, que trabalhou no estúdio Pierre Cardin por vinte anos e foi demitido por Basilicati-Cardin dias depois da morte do fundador da marca.

“Muito deselegante”

Louis Cardin-Edwards

Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, ao lado de Pierre Cardin Foto: Reprodução/Instagram/@_louiscardin_

Da fuga de Mussolini a dono da própria marca

Cardin chegou ainda criança à França, quando seus pais fugiram da Itália de Benito Mussolini, após a Primeira Guerra Mundial. O clã Cardini se estabeleceu em Saint-Étienne, uma pequena cidade no centro da França, e o nome foi abreviado para Cardin.

Cardin estudou arquitetura, mas seu amor pela moda e pela alfaiataria era mais forte. Ele chegou a Paris depois da Segunda Guerra Mundial e trabalhou para as casas de alta costura Paquin e Schiaparelli antes de conseguir um emprego no estúdio de um jovem designer chamado Christian Dior. Entre os conjuntos que Cardin cortou e costurou pessoalmente para a coleção de estreia de Dior em fevereiro de 1947 estava o Bar, um terninho ampulheta preto e branco que passou a simbolizar o “New Look” da casa.

Três anos depois, Cardin fundou sua casa homônima. Ele ganhou reputação no ano seguinte, quando desenhou trinta figurinos para o extravagante baile de máscaras de Carlos de Beistegui em Veneza, Itália. Em 1958, Cardin lançou a moda masculina, que ainda é um negócio forte para a marca. Também se credita a ele a invenção do bubble dress, um corpete justo com uma saia rodada na altura dos joelhos.

Geometria e modernidade como assinatura

Página do Estadão de 18/8/1968 mostra modelos de Pierre Cardin à venda no Mappin Foto: Acervo Estadão

Durante a era espacial e os movimentos da pop art da década de 1960, Cardin abraçou o futurismo, criando roupas modernas em formas geométricas e cores ousadas. Em 1970, ele contratou como assistente um parisiense de 18 anos chamado Jean Paul Gaultier.

“Pierre Cardin inventava coisas”, disse Gaultier durante uma entrevista ao New York Times em 2018. “Foi a verdadeira modernidade”.

Cardin também estava voltado para o futuro nos negócios: vendeu nos inexplorados mercados de luxo do Japão na década de 1950, da China na década de 1970 e da União Soviética na década de 1980. Ele se tornou o rei das licenças, colocando seu logotipo em tudo, desde perfumes até frigideiras. Em 1981, comprou a Maxim’s, a joia do restaurante art nouveau, e também licenciou esse nome.

Pierre Cardin era contra herança?

Nas horas vagas, Cardin comprava imóveis – muitos deles – incluindo prédios e apartamentos próximos ao Palácio do Eliseu, onde era sua casa e a sede de sua empresa. Ele também tinha um moinho na Normandia, França; um apartamento na Quinta Avenida de Nova York; o Palazzo Ca’ Bragadin, do século 13, em Veneza, onde Casanova viveu; o Chateau de Théoule, do século 17, e o vanguardista Palais Bulles na Côte d’Azur da França; e o Château de Lacoste, do século 11, a antiga casa do Marquês de Sade na Provença, França, além de dezenas de apartamentos e casas na aldeia próxima. O que está em disputa é a herança de tudo isso e muito mais.

“Fiquei surpreso com a família, porque meu tio me disse que queria que a empresa continuasse e que não fosse transmitida para a família”, disse Cardin-Edwards, 39 anos, que foi o único parente a trabalhar com Cardin no estúdio. Ele não é herdeiro, embora sua mãe, Marie-Christine, seja (ela está entre as quatro irmãs que entraram com a ação judicial). “Meu tio disse que não entendia o conceito de herança familiar”, disse. “Ele era contra”.

Mas Cardin também era contra lidar com o assunto. “Toda vez que dizíamos: ‘Vamos ao cartório botar isso no papel’, ele cancelava no último minuto”, disse Cardin-Edwards. “Não conseguia imaginar alguém o substituindo”.

Emmanuel Beffy, que Cardin contratou para supervisionar licenças, negócios imobiliários e projetos culturais na Ásia, concordou: “Ele não queria entregar o poder. Quis mantê-lo até o fim”.

Aí entra Basilicati-Cardin. Nascido e criado em Pádua, Itália, era engenheiro civil de formação quando, aos 25 anos, finalmente conheceu seu famoso tio numa exposição de arte em Veneza organizada por ele mesmo. “Ele disse: ‘Me fale sobre você’ e passamos duas horas conversando”, lembrou Basilicati-Cardin durante uma entrevista ao Times. “Aí ele disse: ‘Por que você não vem morar aqui, no meu palácio?’”

Cardin contratou Basilicati-Cardin para supervisionar a fonte toscana que fornecia a água mineral Maxim e, mais tarde, várias outras empresas sediadas na Itália. Em 2018, Cardin nomeou Basilicati-Cardin gerente-geral da holding. Foi então que Basilicati, como era conhecido, decidiu acrescentar Cardin a seu nome. “Fui à Câmara Municipal de Treviso e fiz todos os trâmites administrativos”, disse a La Gazette Drouot.

Em novembro de 2016, Cardin posa como membro da Academia de Belas-Artes de Paris ao lado de modelos no final de desfile de moda que celebrou a carreira dele  Foto: Reuters/Jacky Naegelen

Procuração contestada

Embora Basilicati-Cardin detivesse um cargo importante na empresa, Jean-Louis Rivière, o advogado que representa as quatro irmãs, disse: “Ele não tinha o direito de assinar um contrato nem vender nada. Nenhum tipo de poder”. Basilicati-Cardin disse que o acordo era prepará-lo para, com o tempo, assumir os negócios.

Isso mudou no final de 2020. Enquanto estava gravemente doente após uma infecção por covid-19, Cardin concedeu uma procuração a Basilicati-Cardin. Rivière descreveu a assinatura do documento como “suspeita”, uma vez que, disse ele, “Cardin estava em coma, ou semicoma, na época”.

Não foi bem assim, disse Basilicati-Cardin: o documento foi assinado por Cardin em casa, perante um tabelião e dois médicos que atestaram sua capacidade mental.

As irmãs Cardin acusaram o primo de abuso de idosos, fraude e quebra de confiança. A promotoria de Paris abriu uma investigação no início deste ano.

Justiça francesa decidirá se testamento de Cardin é válido ou não

O mais perturbador para a família é a afirmação de Basilicati-Cardin de que ele é o único herdeiro de Cardin. Ele disse que os desejos de Cardin foram detalhados em um testamento datado de 10 de novembro de 2016, que Basilicati-Cardin disse ter descoberto no ano passado no apartamento de Cardin em Paris, bem no momento em que os herdeiros que são a favor da venda receberam a oferta de um grupo empresarial francês para comprar o grupo Cardin por 800 milhões de euros (RS 4,2 bilhões).

Como o testamento não foi encontrado durante o inventário original dos bens de Cardin e, embora rubricado, não tenha sido assinado e registado junto às autoridades francesas, as quatro irmãs acusam-no de ser inválido. Beffy também está cético:

“Pierre Cardin sempre assinou documentos como ‘Pierre Cardin’, não com iniciais”.

Em março, um juiz declarou o testamento inválido, decisão da qual Basilicati-Cardin apelou. O tribunal de apelações de Paris ouvirá os argumentos em 2 de novembro e deverá decidir até o final do ano.

“Existem duas possibilidades de resolução”, disse Rivière. “Ou o testamento de Basilicati-Cardin é cancelado e meus clientes e seus primos são legitimados como herdeiros, ou é confirmado e ele fica com o controle de tudo”.

Para complicar, Beffy tem outro testamento de Cardin, de 2013. Nele, Cardin afirmava que Beffy receberia a mansão Norman, Marie-Christine Cardin-Edwards ganharia um apartamento, e Beffy e Basilicati-Cardin herdariam tudo o que se “move”, ou seja, móveis, carros, joias, obras de arte e contas bancárias. O documento estava assinado e datado, mas, disse Beffy, “o tabelião não o registrou”.

“Agora estou esperando para ver o que acontece”, disse Beffy.

Família ou não, todos estão de olho no legado do estilista

Há também a questão da propriedade da empresa. No momento da morte, Cardin detinha 99,999% da empresa. Os 0,001% restantes são detidos por Basilicati-Cardin, que disse que sua tia-avó Giovanna, mãe das quatro irmãs que o processam, assinou esse documento para ele um mês antes de morrer em 2000, aos 97 anos.

Impossível, dizem as irmãs, assim como Cardin-Edwards. “Eu a vi naquele mês e ela não me reconheceu, então acho difícil que tenha assinado um documento tão importante”, disse ele.

Todos aguardam julgamento. Compradores potenciais – “grandes grupos”, disse Rivière – estão de olho, caso Basilicati-Cardin perca e a família consiga colocar a empresa à venda.

“Estamos serenos”, disse Rivière, “porque acreditamos na justiça”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O estilista francês Pierre Cardin gostava de se gabar de tudo o que havia conquistado desde que fundara sua marca, em 1950. Quando recebeu um repórter em seu estúdio na Avenue de Marigny, em 1999, exibiu grandes fotografias em preto e branco de sua fábrica na França da década de 1970; fotos dele com modelos na Praça Vermelha em 1986; itens com o logotipo Cardin produzidos por centenas de licenças; e um catálogo de seus looks futuristas mais famosos.

“Influenciei todos os estilistas”, disse ele. “Todo mundo conhece Pierre Cardin”.

O que ele não gostava de falar era o que seria de sua empresa depois que ele partisse. Três meses antes de Cardin morrer, em dezembro de 2020, aos 98 anos, após complicações de covid-19, ele disse a um repórter da Paris Match: “Depois da minha morte? Não penso sobre isso. Não organizei nada. NADA”.

A lenda da moda francesa Pierre Cardin em Moscou, em 28 de maio de 2010 Foto: Reuters/Alexander Natruskin

Testamento não assinado e não registrado

Essa falta de organização gerou uma épica batalha jurídica entre 22 sobrinhas e sobrinhos-netos de Cardin que afirmam ser seus herdeiros, uma vez que ele nunca se casou nem teve filhos. Seu companheiro de longa data nos negócios e na vida, André Oliver, morreu em 1993.

De um lado da luta está Rodrigo Basilicati-Cardin, neto italiano de 52 anos do irmão mais velho de Cardin, Erminio. (Pierre Cardin, nascido Pietro Cardini em 1922, perto de Treviso, Itália, era o mais novo de treze filhos). Basilicati-Cardin – ele adotou o nome Cardin em 2018 – trabalhou para o tio-avô por mais de vinte anos.

Desde 2020, é gerente geral da holding Pierre Cardin Evolution e diretor artístico da marca Pierre Cardin. Na noite de segunda-feira, ele organizou um desfile de moda Pierre Cardin na sede do Partido Comunista Francês, em Paris.

Basilicati-Cardin insiste que é o herdeiro legítimo – um herdeiro designado por Cardin, por testamento não assinado e não registrado – e seu irmão e sua irmã apoiam a reivindicação. Ele quer manter a propriedade da empresa e continuar como chefe de negócios e à frente do lado criativo.

Acusações de crimes e fraude

No outro campo estão 19 primos de outros seis ramos familiares, que querem vender a empresa e ficar com o dinheiro. Quatro dessas primas, Patricia, Laurence, Régine e Marie-Christine (netas de Giovanna Cardin, irmã de Cardin), entraram com ações judiciais e queixas criminais contra Basilicati-Cardin, acusando-o de crimes como abuso de idosos e falsificação, todos os quais Basílicati-Cardin nega.

“É triste que uma casa tão histórica chegue a este ponto”, disse Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, que trabalhou no estúdio Pierre Cardin por vinte anos e foi demitido por Basilicati-Cardin dias depois da morte do fundador da marca.

“Muito deselegante”

Louis Cardin-Edwards

Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, ao lado de Pierre Cardin Foto: Reprodução/Instagram/@_louiscardin_

Da fuga de Mussolini a dono da própria marca

Cardin chegou ainda criança à França, quando seus pais fugiram da Itália de Benito Mussolini, após a Primeira Guerra Mundial. O clã Cardini se estabeleceu em Saint-Étienne, uma pequena cidade no centro da França, e o nome foi abreviado para Cardin.

Cardin estudou arquitetura, mas seu amor pela moda e pela alfaiataria era mais forte. Ele chegou a Paris depois da Segunda Guerra Mundial e trabalhou para as casas de alta costura Paquin e Schiaparelli antes de conseguir um emprego no estúdio de um jovem designer chamado Christian Dior. Entre os conjuntos que Cardin cortou e costurou pessoalmente para a coleção de estreia de Dior em fevereiro de 1947 estava o Bar, um terninho ampulheta preto e branco que passou a simbolizar o “New Look” da casa.

Três anos depois, Cardin fundou sua casa homônima. Ele ganhou reputação no ano seguinte, quando desenhou trinta figurinos para o extravagante baile de máscaras de Carlos de Beistegui em Veneza, Itália. Em 1958, Cardin lançou a moda masculina, que ainda é um negócio forte para a marca. Também se credita a ele a invenção do bubble dress, um corpete justo com uma saia rodada na altura dos joelhos.

Geometria e modernidade como assinatura

Página do Estadão de 18/8/1968 mostra modelos de Pierre Cardin à venda no Mappin Foto: Acervo Estadão

Durante a era espacial e os movimentos da pop art da década de 1960, Cardin abraçou o futurismo, criando roupas modernas em formas geométricas e cores ousadas. Em 1970, ele contratou como assistente um parisiense de 18 anos chamado Jean Paul Gaultier.

“Pierre Cardin inventava coisas”, disse Gaultier durante uma entrevista ao New York Times em 2018. “Foi a verdadeira modernidade”.

Cardin também estava voltado para o futuro nos negócios: vendeu nos inexplorados mercados de luxo do Japão na década de 1950, da China na década de 1970 e da União Soviética na década de 1980. Ele se tornou o rei das licenças, colocando seu logotipo em tudo, desde perfumes até frigideiras. Em 1981, comprou a Maxim’s, a joia do restaurante art nouveau, e também licenciou esse nome.

Pierre Cardin era contra herança?

Nas horas vagas, Cardin comprava imóveis – muitos deles – incluindo prédios e apartamentos próximos ao Palácio do Eliseu, onde era sua casa e a sede de sua empresa. Ele também tinha um moinho na Normandia, França; um apartamento na Quinta Avenida de Nova York; o Palazzo Ca’ Bragadin, do século 13, em Veneza, onde Casanova viveu; o Chateau de Théoule, do século 17, e o vanguardista Palais Bulles na Côte d’Azur da França; e o Château de Lacoste, do século 11, a antiga casa do Marquês de Sade na Provença, França, além de dezenas de apartamentos e casas na aldeia próxima. O que está em disputa é a herança de tudo isso e muito mais.

“Fiquei surpreso com a família, porque meu tio me disse que queria que a empresa continuasse e que não fosse transmitida para a família”, disse Cardin-Edwards, 39 anos, que foi o único parente a trabalhar com Cardin no estúdio. Ele não é herdeiro, embora sua mãe, Marie-Christine, seja (ela está entre as quatro irmãs que entraram com a ação judicial). “Meu tio disse que não entendia o conceito de herança familiar”, disse. “Ele era contra”.

Mas Cardin também era contra lidar com o assunto. “Toda vez que dizíamos: ‘Vamos ao cartório botar isso no papel’, ele cancelava no último minuto”, disse Cardin-Edwards. “Não conseguia imaginar alguém o substituindo”.

Emmanuel Beffy, que Cardin contratou para supervisionar licenças, negócios imobiliários e projetos culturais na Ásia, concordou: “Ele não queria entregar o poder. Quis mantê-lo até o fim”.

Aí entra Basilicati-Cardin. Nascido e criado em Pádua, Itália, era engenheiro civil de formação quando, aos 25 anos, finalmente conheceu seu famoso tio numa exposição de arte em Veneza organizada por ele mesmo. “Ele disse: ‘Me fale sobre você’ e passamos duas horas conversando”, lembrou Basilicati-Cardin durante uma entrevista ao Times. “Aí ele disse: ‘Por que você não vem morar aqui, no meu palácio?’”

Cardin contratou Basilicati-Cardin para supervisionar a fonte toscana que fornecia a água mineral Maxim e, mais tarde, várias outras empresas sediadas na Itália. Em 2018, Cardin nomeou Basilicati-Cardin gerente-geral da holding. Foi então que Basilicati, como era conhecido, decidiu acrescentar Cardin a seu nome. “Fui à Câmara Municipal de Treviso e fiz todos os trâmites administrativos”, disse a La Gazette Drouot.

Em novembro de 2016, Cardin posa como membro da Academia de Belas-Artes de Paris ao lado de modelos no final de desfile de moda que celebrou a carreira dele  Foto: Reuters/Jacky Naegelen

Procuração contestada

Embora Basilicati-Cardin detivesse um cargo importante na empresa, Jean-Louis Rivière, o advogado que representa as quatro irmãs, disse: “Ele não tinha o direito de assinar um contrato nem vender nada. Nenhum tipo de poder”. Basilicati-Cardin disse que o acordo era prepará-lo para, com o tempo, assumir os negócios.

Isso mudou no final de 2020. Enquanto estava gravemente doente após uma infecção por covid-19, Cardin concedeu uma procuração a Basilicati-Cardin. Rivière descreveu a assinatura do documento como “suspeita”, uma vez que, disse ele, “Cardin estava em coma, ou semicoma, na época”.

Não foi bem assim, disse Basilicati-Cardin: o documento foi assinado por Cardin em casa, perante um tabelião e dois médicos que atestaram sua capacidade mental.

As irmãs Cardin acusaram o primo de abuso de idosos, fraude e quebra de confiança. A promotoria de Paris abriu uma investigação no início deste ano.

Justiça francesa decidirá se testamento de Cardin é válido ou não

O mais perturbador para a família é a afirmação de Basilicati-Cardin de que ele é o único herdeiro de Cardin. Ele disse que os desejos de Cardin foram detalhados em um testamento datado de 10 de novembro de 2016, que Basilicati-Cardin disse ter descoberto no ano passado no apartamento de Cardin em Paris, bem no momento em que os herdeiros que são a favor da venda receberam a oferta de um grupo empresarial francês para comprar o grupo Cardin por 800 milhões de euros (RS 4,2 bilhões).

Como o testamento não foi encontrado durante o inventário original dos bens de Cardin e, embora rubricado, não tenha sido assinado e registado junto às autoridades francesas, as quatro irmãs acusam-no de ser inválido. Beffy também está cético:

“Pierre Cardin sempre assinou documentos como ‘Pierre Cardin’, não com iniciais”.

Em março, um juiz declarou o testamento inválido, decisão da qual Basilicati-Cardin apelou. O tribunal de apelações de Paris ouvirá os argumentos em 2 de novembro e deverá decidir até o final do ano.

“Existem duas possibilidades de resolução”, disse Rivière. “Ou o testamento de Basilicati-Cardin é cancelado e meus clientes e seus primos são legitimados como herdeiros, ou é confirmado e ele fica com o controle de tudo”.

Para complicar, Beffy tem outro testamento de Cardin, de 2013. Nele, Cardin afirmava que Beffy receberia a mansão Norman, Marie-Christine Cardin-Edwards ganharia um apartamento, e Beffy e Basilicati-Cardin herdariam tudo o que se “move”, ou seja, móveis, carros, joias, obras de arte e contas bancárias. O documento estava assinado e datado, mas, disse Beffy, “o tabelião não o registrou”.

“Agora estou esperando para ver o que acontece”, disse Beffy.

Família ou não, todos estão de olho no legado do estilista

Há também a questão da propriedade da empresa. No momento da morte, Cardin detinha 99,999% da empresa. Os 0,001% restantes são detidos por Basilicati-Cardin, que disse que sua tia-avó Giovanna, mãe das quatro irmãs que o processam, assinou esse documento para ele um mês antes de morrer em 2000, aos 97 anos.

Impossível, dizem as irmãs, assim como Cardin-Edwards. “Eu a vi naquele mês e ela não me reconheceu, então acho difícil que tenha assinado um documento tão importante”, disse ele.

Todos aguardam julgamento. Compradores potenciais – “grandes grupos”, disse Rivière – estão de olho, caso Basilicati-Cardin perca e a família consiga colocar a empresa à venda.

“Estamos serenos”, disse Rivière, “porque acreditamos na justiça”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

O estilista francês Pierre Cardin gostava de se gabar de tudo o que havia conquistado desde que fundara sua marca, em 1950. Quando recebeu um repórter em seu estúdio na Avenue de Marigny, em 1999, exibiu grandes fotografias em preto e branco de sua fábrica na França da década de 1970; fotos dele com modelos na Praça Vermelha em 1986; itens com o logotipo Cardin produzidos por centenas de licenças; e um catálogo de seus looks futuristas mais famosos.

“Influenciei todos os estilistas”, disse ele. “Todo mundo conhece Pierre Cardin”.

O que ele não gostava de falar era o que seria de sua empresa depois que ele partisse. Três meses antes de Cardin morrer, em dezembro de 2020, aos 98 anos, após complicações de covid-19, ele disse a um repórter da Paris Match: “Depois da minha morte? Não penso sobre isso. Não organizei nada. NADA”.

A lenda da moda francesa Pierre Cardin em Moscou, em 28 de maio de 2010 Foto: Reuters/Alexander Natruskin

Testamento não assinado e não registrado

Essa falta de organização gerou uma épica batalha jurídica entre 22 sobrinhas e sobrinhos-netos de Cardin que afirmam ser seus herdeiros, uma vez que ele nunca se casou nem teve filhos. Seu companheiro de longa data nos negócios e na vida, André Oliver, morreu em 1993.

De um lado da luta está Rodrigo Basilicati-Cardin, neto italiano de 52 anos do irmão mais velho de Cardin, Erminio. (Pierre Cardin, nascido Pietro Cardini em 1922, perto de Treviso, Itália, era o mais novo de treze filhos). Basilicati-Cardin – ele adotou o nome Cardin em 2018 – trabalhou para o tio-avô por mais de vinte anos.

Desde 2020, é gerente geral da holding Pierre Cardin Evolution e diretor artístico da marca Pierre Cardin. Na noite de segunda-feira, ele organizou um desfile de moda Pierre Cardin na sede do Partido Comunista Francês, em Paris.

Basilicati-Cardin insiste que é o herdeiro legítimo – um herdeiro designado por Cardin, por testamento não assinado e não registrado – e seu irmão e sua irmã apoiam a reivindicação. Ele quer manter a propriedade da empresa e continuar como chefe de negócios e à frente do lado criativo.

Acusações de crimes e fraude

No outro campo estão 19 primos de outros seis ramos familiares, que querem vender a empresa e ficar com o dinheiro. Quatro dessas primas, Patricia, Laurence, Régine e Marie-Christine (netas de Giovanna Cardin, irmã de Cardin), entraram com ações judiciais e queixas criminais contra Basilicati-Cardin, acusando-o de crimes como abuso de idosos e falsificação, todos os quais Basílicati-Cardin nega.

“É triste que uma casa tão histórica chegue a este ponto”, disse Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, que trabalhou no estúdio Pierre Cardin por vinte anos e foi demitido por Basilicati-Cardin dias depois da morte do fundador da marca.

“Muito deselegante”

Louis Cardin-Edwards

Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, ao lado de Pierre Cardin Foto: Reprodução/Instagram/@_louiscardin_

Da fuga de Mussolini a dono da própria marca

Cardin chegou ainda criança à França, quando seus pais fugiram da Itália de Benito Mussolini, após a Primeira Guerra Mundial. O clã Cardini se estabeleceu em Saint-Étienne, uma pequena cidade no centro da França, e o nome foi abreviado para Cardin.

Cardin estudou arquitetura, mas seu amor pela moda e pela alfaiataria era mais forte. Ele chegou a Paris depois da Segunda Guerra Mundial e trabalhou para as casas de alta costura Paquin e Schiaparelli antes de conseguir um emprego no estúdio de um jovem designer chamado Christian Dior. Entre os conjuntos que Cardin cortou e costurou pessoalmente para a coleção de estreia de Dior em fevereiro de 1947 estava o Bar, um terninho ampulheta preto e branco que passou a simbolizar o “New Look” da casa.

Três anos depois, Cardin fundou sua casa homônima. Ele ganhou reputação no ano seguinte, quando desenhou trinta figurinos para o extravagante baile de máscaras de Carlos de Beistegui em Veneza, Itália. Em 1958, Cardin lançou a moda masculina, que ainda é um negócio forte para a marca. Também se credita a ele a invenção do bubble dress, um corpete justo com uma saia rodada na altura dos joelhos.

Geometria e modernidade como assinatura

Página do Estadão de 18/8/1968 mostra modelos de Pierre Cardin à venda no Mappin Foto: Acervo Estadão

Durante a era espacial e os movimentos da pop art da década de 1960, Cardin abraçou o futurismo, criando roupas modernas em formas geométricas e cores ousadas. Em 1970, ele contratou como assistente um parisiense de 18 anos chamado Jean Paul Gaultier.

“Pierre Cardin inventava coisas”, disse Gaultier durante uma entrevista ao New York Times em 2018. “Foi a verdadeira modernidade”.

Cardin também estava voltado para o futuro nos negócios: vendeu nos inexplorados mercados de luxo do Japão na década de 1950, da China na década de 1970 e da União Soviética na década de 1980. Ele se tornou o rei das licenças, colocando seu logotipo em tudo, desde perfumes até frigideiras. Em 1981, comprou a Maxim’s, a joia do restaurante art nouveau, e também licenciou esse nome.

Pierre Cardin era contra herança?

Nas horas vagas, Cardin comprava imóveis – muitos deles – incluindo prédios e apartamentos próximos ao Palácio do Eliseu, onde era sua casa e a sede de sua empresa. Ele também tinha um moinho na Normandia, França; um apartamento na Quinta Avenida de Nova York; o Palazzo Ca’ Bragadin, do século 13, em Veneza, onde Casanova viveu; o Chateau de Théoule, do século 17, e o vanguardista Palais Bulles na Côte d’Azur da França; e o Château de Lacoste, do século 11, a antiga casa do Marquês de Sade na Provença, França, além de dezenas de apartamentos e casas na aldeia próxima. O que está em disputa é a herança de tudo isso e muito mais.

“Fiquei surpreso com a família, porque meu tio me disse que queria que a empresa continuasse e que não fosse transmitida para a família”, disse Cardin-Edwards, 39 anos, que foi o único parente a trabalhar com Cardin no estúdio. Ele não é herdeiro, embora sua mãe, Marie-Christine, seja (ela está entre as quatro irmãs que entraram com a ação judicial). “Meu tio disse que não entendia o conceito de herança familiar”, disse. “Ele era contra”.

Mas Cardin também era contra lidar com o assunto. “Toda vez que dizíamos: ‘Vamos ao cartório botar isso no papel’, ele cancelava no último minuto”, disse Cardin-Edwards. “Não conseguia imaginar alguém o substituindo”.

Emmanuel Beffy, que Cardin contratou para supervisionar licenças, negócios imobiliários e projetos culturais na Ásia, concordou: “Ele não queria entregar o poder. Quis mantê-lo até o fim”.

Aí entra Basilicati-Cardin. Nascido e criado em Pádua, Itália, era engenheiro civil de formação quando, aos 25 anos, finalmente conheceu seu famoso tio numa exposição de arte em Veneza organizada por ele mesmo. “Ele disse: ‘Me fale sobre você’ e passamos duas horas conversando”, lembrou Basilicati-Cardin durante uma entrevista ao Times. “Aí ele disse: ‘Por que você não vem morar aqui, no meu palácio?’”

Cardin contratou Basilicati-Cardin para supervisionar a fonte toscana que fornecia a água mineral Maxim e, mais tarde, várias outras empresas sediadas na Itália. Em 2018, Cardin nomeou Basilicati-Cardin gerente-geral da holding. Foi então que Basilicati, como era conhecido, decidiu acrescentar Cardin a seu nome. “Fui à Câmara Municipal de Treviso e fiz todos os trâmites administrativos”, disse a La Gazette Drouot.

Em novembro de 2016, Cardin posa como membro da Academia de Belas-Artes de Paris ao lado de modelos no final de desfile de moda que celebrou a carreira dele  Foto: Reuters/Jacky Naegelen

Procuração contestada

Embora Basilicati-Cardin detivesse um cargo importante na empresa, Jean-Louis Rivière, o advogado que representa as quatro irmãs, disse: “Ele não tinha o direito de assinar um contrato nem vender nada. Nenhum tipo de poder”. Basilicati-Cardin disse que o acordo era prepará-lo para, com o tempo, assumir os negócios.

Isso mudou no final de 2020. Enquanto estava gravemente doente após uma infecção por covid-19, Cardin concedeu uma procuração a Basilicati-Cardin. Rivière descreveu a assinatura do documento como “suspeita”, uma vez que, disse ele, “Cardin estava em coma, ou semicoma, na época”.

Não foi bem assim, disse Basilicati-Cardin: o documento foi assinado por Cardin em casa, perante um tabelião e dois médicos que atestaram sua capacidade mental.

As irmãs Cardin acusaram o primo de abuso de idosos, fraude e quebra de confiança. A promotoria de Paris abriu uma investigação no início deste ano.

Justiça francesa decidirá se testamento de Cardin é válido ou não

O mais perturbador para a família é a afirmação de Basilicati-Cardin de que ele é o único herdeiro de Cardin. Ele disse que os desejos de Cardin foram detalhados em um testamento datado de 10 de novembro de 2016, que Basilicati-Cardin disse ter descoberto no ano passado no apartamento de Cardin em Paris, bem no momento em que os herdeiros que são a favor da venda receberam a oferta de um grupo empresarial francês para comprar o grupo Cardin por 800 milhões de euros (RS 4,2 bilhões).

Como o testamento não foi encontrado durante o inventário original dos bens de Cardin e, embora rubricado, não tenha sido assinado e registado junto às autoridades francesas, as quatro irmãs acusam-no de ser inválido. Beffy também está cético:

“Pierre Cardin sempre assinou documentos como ‘Pierre Cardin’, não com iniciais”.

Em março, um juiz declarou o testamento inválido, decisão da qual Basilicati-Cardin apelou. O tribunal de apelações de Paris ouvirá os argumentos em 2 de novembro e deverá decidir até o final do ano.

“Existem duas possibilidades de resolução”, disse Rivière. “Ou o testamento de Basilicati-Cardin é cancelado e meus clientes e seus primos são legitimados como herdeiros, ou é confirmado e ele fica com o controle de tudo”.

Para complicar, Beffy tem outro testamento de Cardin, de 2013. Nele, Cardin afirmava que Beffy receberia a mansão Norman, Marie-Christine Cardin-Edwards ganharia um apartamento, e Beffy e Basilicati-Cardin herdariam tudo o que se “move”, ou seja, móveis, carros, joias, obras de arte e contas bancárias. O documento estava assinado e datado, mas, disse Beffy, “o tabelião não o registrou”.

“Agora estou esperando para ver o que acontece”, disse Beffy.

Família ou não, todos estão de olho no legado do estilista

Há também a questão da propriedade da empresa. No momento da morte, Cardin detinha 99,999% da empresa. Os 0,001% restantes são detidos por Basilicati-Cardin, que disse que sua tia-avó Giovanna, mãe das quatro irmãs que o processam, assinou esse documento para ele um mês antes de morrer em 2000, aos 97 anos.

Impossível, dizem as irmãs, assim como Cardin-Edwards. “Eu a vi naquele mês e ela não me reconheceu, então acho difícil que tenha assinado um documento tão importante”, disse ele.

Todos aguardam julgamento. Compradores potenciais – “grandes grupos”, disse Rivière – estão de olho, caso Basilicati-Cardin perca e a família consiga colocar a empresa à venda.

“Estamos serenos”, disse Rivière, “porque acreditamos na justiça”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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