O estilista francês Pierre Cardin gostava de se gabar de tudo o que havia conquistado desde que fundara sua marca, em 1950. Quando recebeu um repórter em seu estúdio na Avenue de Marigny, em 1999, exibiu grandes fotografias em preto e branco de sua fábrica na França da década de 1970; fotos dele com modelos na Praça Vermelha em 1986; itens com o logotipo Cardin produzidos por centenas de licenças; e um catálogo de seus looks futuristas mais famosos.
“Influenciei todos os estilistas”, disse ele. “Todo mundo conhece Pierre Cardin”.
O que ele não gostava de falar era o que seria de sua empresa depois que ele partisse. Três meses antes de Cardin morrer, em dezembro de 2020, aos 98 anos, após complicações de covid-19, ele disse a um repórter da Paris Match: “Depois da minha morte? Não penso sobre isso. Não organizei nada. NADA”.
Testamento não assinado e não registrado
Essa falta de organização gerou uma épica batalha jurídica entre 22 sobrinhas e sobrinhos-netos de Cardin que afirmam ser seus herdeiros, uma vez que ele nunca se casou nem teve filhos. Seu companheiro de longa data nos negócios e na vida, André Oliver, morreu em 1993.
De um lado da luta está Rodrigo Basilicati-Cardin, neto italiano de 52 anos do irmão mais velho de Cardin, Erminio. (Pierre Cardin, nascido Pietro Cardini em 1922, perto de Treviso, Itália, era o mais novo de treze filhos). Basilicati-Cardin – ele adotou o nome Cardin em 2018 – trabalhou para o tio-avô por mais de vinte anos.
Desde 2020, é gerente geral da holding Pierre Cardin Evolution e diretor artístico da marca Pierre Cardin. Na noite de segunda-feira, ele organizou um desfile de moda Pierre Cardin na sede do Partido Comunista Francês, em Paris.
Basilicati-Cardin insiste que é o herdeiro legítimo – um herdeiro designado por Cardin, por testamento não assinado e não registrado – e seu irmão e sua irmã apoiam a reivindicação. Ele quer manter a propriedade da empresa e continuar como chefe de negócios e à frente do lado criativo.
Acusações de crimes e fraude
No outro campo estão 19 primos de outros seis ramos familiares, que querem vender a empresa e ficar com o dinheiro. Quatro dessas primas, Patricia, Laurence, Régine e Marie-Christine (netas de Giovanna Cardin, irmã de Cardin), entraram com ações judiciais e queixas criminais contra Basilicati-Cardin, acusando-o de crimes como abuso de idosos e falsificação, todos os quais Basílicati-Cardin nega.
“É triste que uma casa tão histórica chegue a este ponto”, disse Louis Cardin-Edwards, sobrinho-neto de Cardin, que trabalhou no estúdio Pierre Cardin por vinte anos e foi demitido por Basilicati-Cardin dias depois da morte do fundador da marca.
Louis Cardin-Edwards
Da fuga de Mussolini a dono da própria marca
Cardin chegou ainda criança à França, quando seus pais fugiram da Itália de Benito Mussolini, após a Primeira Guerra Mundial. O clã Cardini se estabeleceu em Saint-Étienne, uma pequena cidade no centro da França, e o nome foi abreviado para Cardin.
Cardin estudou arquitetura, mas seu amor pela moda e pela alfaiataria era mais forte. Ele chegou a Paris depois da Segunda Guerra Mundial e trabalhou para as casas de alta costura Paquin e Schiaparelli antes de conseguir um emprego no estúdio de um jovem designer chamado Christian Dior. Entre os conjuntos que Cardin cortou e costurou pessoalmente para a coleção de estreia de Dior em fevereiro de 1947 estava o Bar, um terninho ampulheta preto e branco que passou a simbolizar o “New Look” da casa.
Três anos depois, Cardin fundou sua casa homônima. Ele ganhou reputação no ano seguinte, quando desenhou trinta figurinos para o extravagante baile de máscaras de Carlos de Beistegui em Veneza, Itália. Em 1958, Cardin lançou a moda masculina, que ainda é um negócio forte para a marca. Também se credita a ele a invenção do bubble dress, um corpete justo com uma saia rodada na altura dos joelhos.
Geometria e modernidade como assinatura
Durante a era espacial e os movimentos da pop art da década de 1960, Cardin abraçou o futurismo, criando roupas modernas em formas geométricas e cores ousadas. Em 1970, ele contratou como assistente um parisiense de 18 anos chamado Jean Paul Gaultier.
Cardin também estava voltado para o futuro nos negócios: vendeu nos inexplorados mercados de luxo do Japão na década de 1950, da China na década de 1970 e da União Soviética na década de 1980. Ele se tornou o rei das licenças, colocando seu logotipo em tudo, desde perfumes até frigideiras. Em 1981, comprou a Maxim’s, a joia do restaurante art nouveau, e também licenciou esse nome.
Pierre Cardin era contra herança?
Nas horas vagas, Cardin comprava imóveis – muitos deles – incluindo prédios e apartamentos próximos ao Palácio do Eliseu, onde era sua casa e a sede de sua empresa. Ele também tinha um moinho na Normandia, França; um apartamento na Quinta Avenida de Nova York; o Palazzo Ca’ Bragadin, do século 13, em Veneza, onde Casanova viveu; o Chateau de Théoule, do século 17, e o vanguardista Palais Bulles na Côte d’Azur da França; e o Château de Lacoste, do século 11, a antiga casa do Marquês de Sade na Provença, França, além de dezenas de apartamentos e casas na aldeia próxima. O que está em disputa é a herança de tudo isso e muito mais.
“Fiquei surpreso com a família, porque meu tio me disse que queria que a empresa continuasse e que não fosse transmitida para a família”, disse Cardin-Edwards, 39 anos, que foi o único parente a trabalhar com Cardin no estúdio. Ele não é herdeiro, embora sua mãe, Marie-Christine, seja (ela está entre as quatro irmãs que entraram com a ação judicial). “Meu tio disse que não entendia o conceito de herança familiar”, disse. “Ele era contra”.
Mas Cardin também era contra lidar com o assunto. “Toda vez que dizíamos: ‘Vamos ao cartório botar isso no papel’, ele cancelava no último minuto”, disse Cardin-Edwards. “Não conseguia imaginar alguém o substituindo”.
Emmanuel Beffy, que Cardin contratou para supervisionar licenças, negócios imobiliários e projetos culturais na Ásia, concordou: “Ele não queria entregar o poder. Quis mantê-lo até o fim”.
Aí entra Basilicati-Cardin. Nascido e criado em Pádua, Itália, era engenheiro civil de formação quando, aos 25 anos, finalmente conheceu seu famoso tio numa exposição de arte em Veneza organizada por ele mesmo. “Ele disse: ‘Me fale sobre você’ e passamos duas horas conversando”, lembrou Basilicati-Cardin durante uma entrevista ao Times. “Aí ele disse: ‘Por que você não vem morar aqui, no meu palácio?’”
Cardin contratou Basilicati-Cardin para supervisionar a fonte toscana que fornecia a água mineral Maxim e, mais tarde, várias outras empresas sediadas na Itália. Em 2018, Cardin nomeou Basilicati-Cardin gerente-geral da holding. Foi então que Basilicati, como era conhecido, decidiu acrescentar Cardin a seu nome. “Fui à Câmara Municipal de Treviso e fiz todos os trâmites administrativos”, disse a La Gazette Drouot.
Procuração contestada
Embora Basilicati-Cardin detivesse um cargo importante na empresa, Jean-Louis Rivière, o advogado que representa as quatro irmãs, disse: “Ele não tinha o direito de assinar um contrato nem vender nada. Nenhum tipo de poder”. Basilicati-Cardin disse que o acordo era prepará-lo para, com o tempo, assumir os negócios.
Isso mudou no final de 2020. Enquanto estava gravemente doente após uma infecção por covid-19, Cardin concedeu uma procuração a Basilicati-Cardin. Rivière descreveu a assinatura do documento como “suspeita”, uma vez que, disse ele, “Cardin estava em coma, ou semicoma, na época”.
Não foi bem assim, disse Basilicati-Cardin: o documento foi assinado por Cardin em casa, perante um tabelião e dois médicos que atestaram sua capacidade mental.
As irmãs Cardin acusaram o primo de abuso de idosos, fraude e quebra de confiança. A promotoria de Paris abriu uma investigação no início deste ano.
Justiça francesa decidirá se testamento de Cardin é válido ou não
O mais perturbador para a família é a afirmação de Basilicati-Cardin de que ele é o único herdeiro de Cardin. Ele disse que os desejos de Cardin foram detalhados em um testamento datado de 10 de novembro de 2016, que Basilicati-Cardin disse ter descoberto no ano passado no apartamento de Cardin em Paris, bem no momento em que os herdeiros que são a favor da venda receberam a oferta de um grupo empresarial francês para comprar o grupo Cardin por 800 milhões de euros (RS 4,2 bilhões).
Como o testamento não foi encontrado durante o inventário original dos bens de Cardin e, embora rubricado, não tenha sido assinado e registado junto às autoridades francesas, as quatro irmãs acusam-no de ser inválido. Beffy também está cético:
Em março, um juiz declarou o testamento inválido, decisão da qual Basilicati-Cardin apelou. O tribunal de apelações de Paris ouvirá os argumentos em 2 de novembro e deverá decidir até o final do ano.
“Existem duas possibilidades de resolução”, disse Rivière. “Ou o testamento de Basilicati-Cardin é cancelado e meus clientes e seus primos são legitimados como herdeiros, ou é confirmado e ele fica com o controle de tudo”.
Para complicar, Beffy tem outro testamento de Cardin, de 2013. Nele, Cardin afirmava que Beffy receberia a mansão Norman, Marie-Christine Cardin-Edwards ganharia um apartamento, e Beffy e Basilicati-Cardin herdariam tudo o que se “move”, ou seja, móveis, carros, joias, obras de arte e contas bancárias. O documento estava assinado e datado, mas, disse Beffy, “o tabelião não o registrou”.
“Agora estou esperando para ver o que acontece”, disse Beffy.
Família ou não, todos estão de olho no legado do estilista
Há também a questão da propriedade da empresa. No momento da morte, Cardin detinha 99,999% da empresa. Os 0,001% restantes são detidos por Basilicati-Cardin, que disse que sua tia-avó Giovanna, mãe das quatro irmãs que o processam, assinou esse documento para ele um mês antes de morrer em 2000, aos 97 anos.
Impossível, dizem as irmãs, assim como Cardin-Edwards. “Eu a vi naquele mês e ela não me reconheceu, então acho difícil que tenha assinado um documento tão importante”, disse ele.
Todos aguardam julgamento. Compradores potenciais – “grandes grupos”, disse Rivière – estão de olho, caso Basilicati-Cardin perca e a família consiga colocar a empresa à venda.
“Estamos serenos”, disse Rivière, “porque acreditamos na justiça”.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU