Quando eu era pequena, ouvia sempre dizer que eu era uma criança doce. Nesta palavra estavam subentendidas algumas qualidades como suavidade, passividade e mansidão, que pareciam importantes para uma menina daquele tempo.
A verdade é que fui descobrindo que essa doçura como característica me trazia muitos inconvenientes e, desde a infância até o começo da minha vida adulta, vi que tal doçura era confundida com fraqueza, resignação e passividade. Ao longo dos anos, lutei para “melhorar”, o que significava ficar mais “dura”. Achava interessante quando ouvia pessoas falarem que estavam “calejadas pela vida”, parecia que tinham criado uma imunidade maior às dores, estavam vacinadas e fortes para enfrentar o mundo. Eu queria ser uma delas.
Esta semana fui convidada pelo evento Fronteiras do Pensamento para assistir à palestra da ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2018, Nadia Murad, uma mulher iraquiana hoje com 30 anos. Nadia morava com seus 11 irmãos e a mãe solo em uma área rural no norte do Iraque, quando terroristas invadiram sua comunidade matando 600 pessoas, incluindo seis de seus irmãos e a mãe. Nadia foi escravizada, queimada com cigarros, espancada e estuprada diversas vezes até conseguir fugir para um campo de refugiados onde, ao lado de 12 mil pessoas, viveu por anos até conseguir asilo na Alemanha.
Voltemos à doçura. Segundo André Comte-Sponville, “a doçura tem uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera. É o contrário da guerra, da crueldade, da brutalidade”. Mas quem, eu sempre me perguntei, mantém a doçura vivendo a realidade do planeta Terra? Como se posicionar, se defender, se proteger sendo doce?
Na noite do evento, quando Nadia entrou no palco e começou a falar, não entendi por que aquela imagem, voz e forma me causaram tamanho espanto. Alguns dias depois, percebi a minha própria distorção de tantos anos e encontrei finalmente a personificação da palavra doçura como virtude.
A vida não endureceu Nadia, ou melhor, Nadia não se deixou endurecer pela vida. Nadia e sua “força em estado de paz” nos levou pela noite através de sua história de tristeza e superação. Nadia flexível, adaptável, resistente e inteira nos alimentou com uma humanidade mais humana. Obrigada, Nadia.