Há muitas Naomi Campbells, e nunca sabemos qual delas vai nos receber.
Temos a Naomi Campbell deusa, com superpoderes (há testemunhas) que incluem a capacidade de afastar um oceano de pessoas e alterar a carga elétrica de um cômodo. Temos a Naomi das capas, a Naomi das campanhas e a Naomi das passarelas, dona de um andar classudo que dificilmente será superado um dia. Temos a Naomi vulnerável, o ser humano inesperadamente tímido que começou a chamar atenção entre as modelos quando tinha apenas 15 anos.
Temos a Naomi ativista, que chamou Nelson Mandela de avô, e a Naomi baladeira, que traz na cintura um cinturão de cabeças decepadas de playboys e oligarcas. Temos a Naomi coração de ouro, que “doaria a blusinha Prada que está vestindo", como destacou recentemente uma velha amiga. E temos a Naomi coração de gelo que deu as costas ao pedido de uma amiga que precisava de dinheiro para o tratamento de reabilitação do vício em heroína.
“Lutando desde sempre, lutando pela sobrevivência", disse a agente e modelo Bethann Hardison, guia e protetora de Naomi de longa data. E apesar das dificuldades com as desigualdades raciais raramente combatidas na moda, Naomi se manteve no olhar do público por três décadas — o equivalente a anos-luz no ramo das modelos — e, depois de meio século nesse mundo, também se reinventou como fenômeno das mídias digitais. O programa dela, Being Naomi, é ao mesmo tempo vazio e encantador, em um nível quase digno de Warhol, e uma sagaz aula magna para narcisistas que pensam em construir suas marcas.
Naomi, nascida em Londres, completou 50 anos recentemente, em 22 de maio, e se manteve ocupada durante a quarentena e além na casa de uma amiga em Los Angeles. Ela compartilha no Instagram a malhação diária com Joe Holder, fundador do Ocho System, frequenta reuniões virtuais de recuperação, tornou-se o primeiro rosto da linha de maquiagem da Pat McGrath Labs, e grava entrevistas descontraídas da série No Filter com antigos amigos e colegas como Sharon Stone, Marc Jacobs e Cindy Crawford. Recentemente, publicou um tutorial de beleza surpreendentemente sincero no canal da Vogue no YouTube.
Conversando pelo telefone em uma noite de sexta no início de junho, Naomi nos contou um pouco como é, afinal, ser Naomi.
1. O preconceito implícito nunca foi implícito
“É claro que há um viés racial", disse Naomi a respeito da lógica do mundo da moda que reduz muito as oportunidades para criadores negros, a quem Anna Wintour reconheceu recentemente que pouco “espaço” fora cedido em lugares como a Vogue.
“Mas eu nunca esperei que as coisas viessem com facilidade", disse Naomi, uma mulher que o guerreiro do chiffon, André Leon Talley, certa vez descreveu como “ciclone autônomo de energia, estilo e drama".
2. Ela lidou com isso da maneira habitual
“Eu sabia que tinha que fazer um esforço extra e, pensando nisso hoje, sou grata por ter muitas mulheres fortes na minha família mostrando como me manter forte física e mentalmente para sobreviver e prosperar", disse Naomi. “Sempre fui criada pela minha mãe, minha avó e as maravilhosas mulheres da minha família para entender que, não importa o que fizesse, seria necessário dar 110% de mim.”
Naomi tem uma combinação de origens afro-jamaicanas e sino-jamaicanas (a avó chinesa jamaicana se chamava Pearline Ming).
3. Mas não devemos considerá-la uma sobrevivente
“É tudo uma questão de adaptação", disse ela. “Na época, eu dizia: ‘Por que estou fazendo isso se não recebo o mesmo tratamento que minhas colegas? Por que não ganho o mesmo que elas?’ Felizmente, eu tinha pessoas incríveis como Bethann a quem podia procurar, e ela me explicava por que seria interessante ir adiante e colher os resultados no longo prazo.”
4. Talvez “pragmática" seja uma palavra melhor
“Se me parecia que a situação era injusta, eu tinha que me manifestar", disse Naomi, cujo histórico nesse aspecto é um pouco ambíguo. É verdade que ela foi uma fundadora da Black Girls Coalition, grupo organizado para combater desigualdades raciais no mundo da moda. Também é verdade que, certa vez, ela tentou sufocar a carreira de uma novata chamada Tyra Banks.
“É algo que diz respeito a mim, à minha carreira", disse ela. “A ideia é tirar o melhor possível para mim da situação com a qual tenho que lidar. Não encaro como sobrevivência. Encaro como a vida.”
5. Ela já dependeu da bondade de desconhecidos
“Sou abençoada por ter pessoas incríveis na minha vida, por ter sido influenciada por grandes mentes, espíritos e seres humanos", disse uma mulher cuja agenda de contatos — se as pessoas ainda as usassem — teria dezenas de milhares de páginas.
“Penso em Azzedine Alaïa e Nelson Mandela. Pude conhecê-los, conviver com eles, estar na sua presença e considerá-los parte da minha família. Quando as pessoas estão aqui, às vezes não percebemos como é difícil imaginar um mundo sem elas. Então, quando partem, logo sentimos o pânico: o que fazer? A quem apelar?”
6. Descobriu a espiritualidade, mas somente depois das drogas
“Eu descobri que temos uma força", disse Naomi. “Todas as conexões, tudo que sempre tivemos com elas, é algo que chega a nós de outra maneira. Continuam aqui, nos pressionando. Quando meu pai morreu, foi um tremendo choque.” Alaïa, o estilista tunisiano que serviu na prática como figura paterna de Naomi durante sua carreira, morreu em 2017, aos 82 anos. “Fiquei derrubada", disse ela.
“Mas então uma força surgiu de algum lugar, não sei de onde, mas sei que veio dele. Percebi que tinha que fazer mais, ajudar mais, ser mais presente.”
7. Ela acredita nos alcoólatras anônimos
“Tenho muito orgulho da minha recuperação, tenho orgulho de estar no processo de recuperação e jamais esconderia esse fato", disse Naomi, cujos conhecidos problemas de acesso de fúria podem ser em parte impulsionados pela dependência química (Alexander McQueen costumava brincar com os amigos que, quando Naomi vinha visitar, era melhor esconder os celulares).
“Não devemos promover a recuperação, mas não vou negar nada do meu progresso", disse ela. “Foi algo que ajudou muito em outras áreas da minha vida.”
8. As etapas do programa de 12 passos são mais do que uma metáfora
“Sou o tipo de pessoa que precisa de uma estrutura", disse Naomi, dona de um relacionamento conhecidamente individual com o tempo, e que se atrasou duas horas para a sessão de fotos pelo Zoom que acompanha este artigo; certa vez, ela foi demitida na primeira reunião com o diretor e produtor Lee Daniels por chegar três horas atrasada para um teste (incidente que resultou em uma gritaria seguida por um papel de atriz e uma longa amizade); ainda assim, ela deve ser dona de um despertador gigante, pois conseguir levantar a tempo de ser fotografada para as 300 capas de revista agraciadas com a sua imagem. “É assim que funciono melhor.”
9. Ela é a rainha da rotina
“Tenho uma rotina que observo durante a quarentena", disse ela. “Acordar rezar, tomar banho, malhar. Em tempos como esses, precisamos da familiaridade de uma rotina para manter a consciência e o espírito em um lugar seguro.” A julgar pelo tutorial de maquiagem de Naomi para a Vogue no YouTube, precisamos também de um método infalível de 10 minutos para bater no rosto com habilidades tão refinadas que deixariam Bianca Del Rio impressionada.
10. A autoridade aeroportuária federal deveria contratá-la
“Nunca fiz o vídeo pensando em viralizar", disse Naomi a respeito de um vídeo de 2019 mostrando seu ritual de higienização para voos, assistido mais de 2,9 milhões de vezes no YouTube. Antes tido como excêntrico, o vídeo deveria ser obrigatório para quem pensa em embarcar em um avião depois da pandemia.
Naomi começou a usar máscaras no rosto durante os voos no início do século. “No Japão, via todos usando essas máscaras, e pensei, ‘Faz sentido’,” disse ela. Passados 15 anos, a metodologia dela ainda não incorporou um desinfetante de aerossóis (mas já foi vista usando um traje de proteção para o manuseio de materiais perigosos).
“Pensei, ‘Posso trazer meus lencinhos e desinfetar tudo, sem que a empresa aérea se ofenda’”, disse ela. “Me parecia necessário para ficar à vontade.”
11. Ela entende que, onde quer que estejamos, é aí que estamos
“Esse vírus, as vidas que perdemos, tudo isso é devastador, mas pode ser fantástico estar parado, estar em um só lugar", disse Naomi, que já deu mais voltas ao mundo do que a maioria dos satélites. “Se há algo que aprendi nessa vida até agora é a impossibilidade de se fugir das coisas. Temos que enfrentar nossos medos e passar pelas emoções.”
“Muitas coisas na vida deram errado para mim. Tudo bem. Tentei. É bom poder se olhar no espelho, sem correr de um compromisso para o outro — apenas eu comigo mesma, Naomi. No fim, temos que suportar a solidão, ou não estamos vivos.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL