No ano do centenário da Semana de Arte Moderna não faltaram críticas ao evento: elitista e injusto com outras regiões do Brasil foram as duas principais, mas há outras que apontam o etnocentrismo como imperdoável. Modernidade sem incorporar afrodescendentes e povos indígenas? Foi pensando nisso que as três curadoras da exposição Um Século de Agora, que será aberta nesta quinta (17), no Itaú Cultural, resolveram apostar em artistas de diversas etnias – alguns conhecidos, outros não. Detalhe: nenhuma das curadoras é de São Paulo. A sergipana Júlia Rebouças, a baiana Luciara Ribeiro e a matogrossense Naine Terena de Jesus foram chamadas pela instituição para selecionar os 25 artistas da mostra.
A exposição ocupa três andares do Itaú Cultural com obras quase todas dos dois últimos anos – há exceções, como as gravuras do veterano carioca Roberto Magalhães, de 82 anos, e as pinturas de João Cândido da Silva, de 89 anos, um dos fundadores da escola de samba do Peruche, que, ao selecionar telas para a mostra, mandou um sugestivo autorretrato como preto velho. Outra veterana escolhida pelas curadoras é a pintora Dalva de Barros, de 87 anos, nascida em Cuiabá e uma referência quando se fala de pintura popular. Em sua arte, os retratados não são poderosos, mas garis almoçando na rua e índios em passeatas políticas. Sua tela Profissionais da saúde – a Verdadeira Eucaristia II (2021) é seu manifesto político mais recente, retratando a vida de médicos e enfermeiros que lutaram contra a epidemia da covid-19.
A mostra exibe mais de 70 obras em variados suportes (telas, esculturas, instalações), assinadas por 25 artistas e coletivos de 11 estados brasileiros, cuja produção compõe um mosaico da cultura brasileira, como resume a curadora Júlia Rebouças, desde os citados veteranos a coletivos que organizam manifestações públicas contra a arte que homenageia bandeirantes – e, nesse caso está o grupo Revolução Periférica, que incendiou a escultura de Borba Gato (1962), de Júlio Guerra, em abril do ano passado, em Santo Amaro. A obra é um registro da ação do grupo.
Alguns trabalhos têm francamente esse espírito militante contra personagens da história do Brasil colonial. Outros são ritualísticos e foram feitos com o objetivo de preservar a cultura dos sobreviventes de tribos indígenas e africanos escravizados. O médico Aislan Pankararu, que hoje vive em São Paulo, é um artista visual autodidata, do povo Pankararu, cujo trabalho nasceu da necessidade de louvar sua ancestralidade. Sua obra recria a pintura corporal em outro suporte.
Outro exemplo que segue na mesma linha é o de Carmézia Emiliano, que começou a pintar há 30 anos no estado de Roraima, onde mora, como meio de traduzir o imaginário de sua etnia, o povo Macuxi. E há o caso curioso do pernambucano José Bezerra, de 70 anos, descendente dos índios da etnia Funiô. Nascido em Buique, foi caçador e lenhador, passando fome ao lado dos filhos antes de ver sua arte nos museus. Suas esculturas lembram as do sergipano Véio (Cicero Alves dos Santos), mas, observa a curadora Júlia, “sem acabamento”. Bezerra não pinta as peças, mantendo o aspecto original que representa “entidades” da natureza.
Ainda sobre artistas indígenas, vale destacar a participação do artista Wapichana Gustavo Caboco, de Curitiba, que trabalha entre o Paraná e Roraima. Caboco contribui com a causa indígena resgatando por meio de desenhos bordados a memória dos primeiros habitantes. Sua obra “di-fusos” (2022) – que usa de bordados a vídeos – recorre as fusos (instrumentos para a criação de fios naturais) de várias etnias, entre as quais Wapichana e Baniwa.
Ao povo indígena Baniwa pertence o hoje muito conhecido Denilson Baniwa. Sua obra Pietà Piatã (2021) mistura signos da cultura indígena e europeia, ao cruzar uma Piatã – da lenda da sociedade macuxi de Roraima – e a Pietà, obra clássica da arte ocidental que representa Maria segurando Jesus, morto em seu colo. Ele faz referência direta à escultura Pietà (1924) do pernambucano Rego Monteiro, uma Deposição com forte influência cubista do artista, que organizou a primeira exposição de arte moderna europeia da América do Sul, no Recife em 1930.
A exposição tem também caraíbas que dialogam com a alta tecnologia, como a mineira Sara Lana, que usa os últimos orelhões mineiros numa instalação sonora que cruza diálogos interceptados por ela. O contraponto artesanal é a instalação Úteros (2022), de Lídia Lisboa, produzida com crochê e tiras, peças que remetem ao órgão do sistema reprodutor feminino. Detalhe: uma delas pode ser manipulada pelo público.