Gilberto Gil ganha, a partir desta terça-feira, 14, o maior acervo digital dedicado a um artista vivo. Prestes a completar 80 anos (que serão comemorados no próximo dia 26), Gil terá detalhes de sua obra artística e muitas informações biográficas concentradas em um ambiente que a empresa Google anunciou pela manhã dentre outras muitas ações pensadas para o Brasil. O projeto tem o nome de O Ritmo de Gil, que se tornou também a primeira retrospectiva sobre um artista vivo feita pela plataforma. Os números, tão fortemente ostentados pela Google, realmente impressionam: são mais de 41 mil imagens e documentos e um total de 900 vídeos e gravações sobre seu trajeto.
Dos itens dispostos a partir de hoje no campo g.co/gilbertogil, ao menos um traz a força do ineditismo discográfico. Trata-se das faixas de um álbum gravado pelo artista em 1982 em Nova York, encontrado há dois anos, segundo o artista, durante a garimpagem de seu material. O projeto que deveria levar o nome de Jump For Joy estava em duas fitas cassete com o nome das canções descritas na capa, todas em inglês. You Need Love, Jump For Joy, Estrela (Star), Fill Up The Night With Music e Come On Back Tomorrow são algumas delas. A produção foi de Ralph McDonald e o álbum sairia pela gravadora Warner. Havia ainda participações especiais de figuras lendárias, conforme Gil mesmo revelou, como a do baterista Steve Gadd, a do baixista Marcus Miller e da cantora Roberta Flack.
A investida em um disco feito no exterior foi ideia do presidente da Warner no Brasil, André Midani (morto em 2019), que pensou ser o momento de Gil ter um álbum feito para o mercado norte-americano. O produtor contratado pela Warner para tocar o projeto foi Ralph McDonald, um percussionista ligado ao pessoal de Bill Withers e do saxofonista Grover Washington Jr. Isso explica o time que Ralph levou ao estúdio: o baterista Steve Gadd, o baixista Marcus Miller, o tecladista Richard Tee (autor da planetária In Your Eyes), o próprio Groover Washington Jr. e a cantora Roberta Flack. E fica inevitável não pedir aos leitores que gostam de música e que queiram saber mais sobre onde Gil foi se meter naquele 1982: dê um Google.
A canção que abre o projeto, You Need Love, já tem a estética sonora que ampara a voz de Gil e remete ao típico som dos estúdios de Nova York dos anos 80 (a mesma que Lincoln Olivetti começava a trazer ao Brasil). Muito reverb, muitos teclados, muita percussão e Marcus Miller mandando dúzias de slaps, as “estilingadas” hoje tão datadas. Jump For Joy, na sequência, começa com Roberta Flack, que a divide com Gil. Mas algo soa facilitado demais, pop demais, distante de Gil e próximo a uma Roberta que vinha poderosa desde 1977, quando gravou Closer I Get To You. Depois da bilíngue Estrela (Star), tem a curiosa Fill Up The Night With Music, um AOR de Gil, a categoria de canção que os norte-americanos chamam de “Adulta Orientada para o Rádio”, os love songs das rádios românticas da madrugada.
Come Back Tomorrow e Take a Holiday têm o acento do afoxé marcante no afropop de Gil, que Steve Gadd imagina ter de fazer na bateria e que o tecladista Richard Tee não entende, e Somebody Likes Me é caribenha até onde pode ser na diluição daqueles arranjos. É interessante perceber a sutil negociação de entendimentos (ou na falta deles) do que era a música pop brasileira até ali, quando os estúdios norte-americanos davam as cartas sobretudo a quem entrasse por suas portas querendo fazer “um álbum norte-americano”. Moon And Star Girl é uma visita a Lua e Estrela, de Caetano, e When the Wind Blows seria lançada no álbum Um Banda Um como Deixar Você.
A iniciativa da divisão Google Arts & Culture teve a coordenação da jornalista Chris Fuscaldo, pesquisadora musical e CEO da editora Garota FM Books, e mais 15 profissionais que mapearam mais de 49 mil imagens e escreveu mais de 140 mil exposições. São textos assinados por nomes como Ricardo Schott, Ceci Alves, Kamille Viola, Lucas Vieira, Tito Guedes e Laura Zandonadi.
Há muita exploração a ser feita na coleção. Uma delas sugere um passeio em três partes que separam o material em “a música”, “o homem” e “a influência internacional”. Gil diz que dentre as passagens que o emocionam pessoalmente estão as relacionadas à sua infância e sua família. Ele falou também sobre as reflexões que acaba fazendo a respeito do mundo digital. “São essas casinhas nas quais muitas pessoas passaram a viver.” Ele diz ser um colaborador convicto para que esses hospedeiros de vida e de obra levem seus feitos e o ressignifiquem, mas fala não estar preparado para “estabelecer residência fixa” no mundo virtual. “Eu não vou manter essa casa oferecendo café da manhã, almoço e jantar, mas vou continuar contribuindo. Mesmo que eu não queira viver nessas casas, minha vida acaba preenchendo muitas delas.” e encerrou: “Eu pertenço a esse mundo, essa grande família nacional e mundial. Essa sempre foi a minha ambição e eu espero que aconteça.”
Gil diz não se lembrar o que fez com que o disco não saísse. “Foi por alguma razão. Eu falava sobre melhorias que ele poderia ter com relação à arte, mas não sei o que levou a esse engavetamento.” Não seria incomum se fosse seu próprio crivo o motivo do cancelamento de uma sonoridade que ainda hoje se desfruta mais pelos ouvidos da curiosidade. Sinais de um tempo em que tudo o que se guardou ou rejeitou no passado, e por qualquer motivo, se torne um ativo valioso.