40 mil anos, 400 páginas: Livro conta tudo o que você deve saber sobre a história da música clássica


Crítico musical e musicólogo galês Paul Griffiths usa linguagem simples e atraente para contar evolução da música erudita ocidental em obra lançada agora no Brasil; conheça

Por João Marcos Coelho

Não é nada fácil contar a história da música ocidental. Afinal, 40 mil anos nos separam do homem das cavernas furando um osso e soprando o que chamamos hoje de flauta, até às orquestras sinfônicas-mamutes de até 120 músicos que escutamos nas atuais salas de concerto.

O crítico musical e musicólogo galês Paul Griffiths, 77 anos, encarou a tarefa, vinte anos atrás. E tratou logo de colocar o adjetivo “concisa” e delimitar bem os limites de sua história. Em sua História Concisa da Música Ocidental, lançada agora no Brasil pela Editora Quina, numa primorosa tradução de Eduardo Socha, ele nos fala da trajetória riquíssima da música erudita/clássica/de concerto de matriz europeia.

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Faz sentido separá-la das demais tradições musicais, já que ela foi a única a colocar no papel, a princípio, o canto gregoriano do século 9. Meticuloso, avisa logo que este diferencial também implica a “grande dependência da notação”, da partitura. A ponto de acabar considerando a partitura como a obra de arte, e não sua reprodução no tempo e no espaço, momentos únicos irrepetíveis a cada vez que um maestro dá a largada para a Nona Sinfonia, por exemplo.

Isso o leva a anotar que “a música é feita de tempo, pode viajar nele. E como não conseguimos ver ou pegar a música, apenas ouvir, ela nos atinge com seu passado de maneira imediata e única. Coisas que vemos ou pegamos estão necessariamente fora de nós: a música, no entanto, parece acontecer dentro das nossas cabeças. Ela está bem aqui em nós, mas, simultaneamente, está lá atrás, no passado em que foi feita”.

40 mil anos separam o homem das cavernas furando um osso e soprando o que chamamos hoje de flauta e as orquestras sinfônicas que escutamos nas atuais salas de concerto. Foto: Wilton Junior/Estadão
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Por isso, o livro se estrutura em torno do tempo, desde o “tempo pleno” dos babilônios da Antiguidade até a atualidade, que de modo instigante qualifica como “o tempo perdido”. Uma narrativa que convida o leitor para os trovadores e organistas e a Ars Nova do “tempo medido”, entre 1100 e 1400; o tempo percebido, marcado pelo nascimento da harmonia e a música revolucionária da Reforma, entre 1400 e 1630. E assim por diante. Ao barroco corresponde ao “tempo conhecido”, entre 1630 e 1770. E assim por diante, até o primeiro capítulo da sétima parte, intitulada “O tempo emaranhado: 1908-1975″, que se inicia com um título que Ivan Lins já usou numa clássica canção brasileira: “Começar de novo”.

Sem solavancos, atraindo e prendendo nossa atenção – Griffiths foi crítico musical da revista The New Yorker nos anos 1990 – , usa uma linguagem muito distante dos grandes textos empolados dos musicólogos que jamais cai na banalidade de empilhar grandes compositores. Não cai em nenhuma destas armadilhas. Evita linguagem difícil, que afasta os leitores. Nem baixa o nível repetindo obviedades em geral presentes nas chamadas “histórias concisas”.

O glossário enxuto e poucas e certeiras indicações de leitura e playlists em cada capítulo permitem a cada leitor conferir o que diz o autor com sua própria escuta no ato da leitura. No capítulo sobre o período clássico (Haydn-Mozart-Beethoven), ele indica o livro O Estilo Clássico, de Charles Rosen; e entre as gravações, hoje em geral disponíveis no YouTube, está a lendária de Carlos Kleiber da Quinta e da Sétima Sinfonias de Beethoven.

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Séculos 20/21, o maior diferencial

Nos anos 1950, Theodor Adorno (1903-1969), o principal teórico das vanguardas, reconhecia seu desânimo “com a música que se concentrava em questões de técnica de composição e que encontrava refúgio apenas em cursos, programas de rádio e festivais para especialistas. Mas, ainda assim, com sua presença e seu engajamento, Adorno dava peso intelectual a esses compositores. Esse teria sido outro motivo para a decepção de Adorno”, anota Griffiths. E completa que ele lamentava “o fato de até mesmo a música de reflexão e resistência estar sendo endossada pelo status quo, cujo poder de neutralizar a dissidência parecia ilimitado”.

Contemplando esta cena com um poderoso telescópio imaginário, Griffiths constata que havia “uma crença amplamente difundida no início da década de 1950 que considerava a música ocidental como um relógio, sistema que avançava em determinada direção, ou gradualmente ou, como acontecia naquela época, por meio de períodos de revolução. O respaldo para essa crença estava na história da música do Ocidente: os modos haviam dado lugar às tonalidades; as possibilidades das tonalidades haviam sido expandidas; em seguida veio a atonalidade. E então, em parte por causa de divergências internas, em parte, paradoxalmente, porque a plausibilidade e o sucesso do novo caminho atraíram muitos adeptos, o relógio começou a ficar mais parecido com uma nuvem”.

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A verdade é que a reprodução fonográfica nos mergulhou num eterno presente. Acessamos instantaneamente gravações de 30, 50, 100 anos atrás, com uma seleção dourada de grandes intérpretes. Num contexto destes, fica cada vez mais difícil para músicos e compositores exercer seu ofício sem piscar para o passado. Até Le Marteau sans Maître, obra complexa e de difícil apreensão numa primeira audição, foi gravada cinco vezes por seu compositor, Pierre Boulez.

Griffiths permite-se uma reflexão sobre o passado que está tão ou mais presente do que o nosso próprio presente em nosso dia-a-dia digital em rede: “Se a história pode mudar uma vez, por que não poderia mudar novamente? E se a história pode de fato mudar, o que seria afinal a história? Poderia ser apenas uma narrativa sobre o passado, uma narrativa que, embora permanecesse fiel aos fatos, perderia gradualmente sua relevância à medida que o tempo passasse e as condições históricas se alterassem. O passado não é um caminho que nós e nossos antecessores percorremos, mas um labirinto, e um labirinto sempre em fluxo”.

Capa de 'História Concisa da Música Ocidental', de Paul Griffiths, publicado pela editora Quina. Foto: Editora Quina/Divulgação
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Ele escreveu outros dois livros sobre a música do século 20, dita contemporânea, ambos traduzidos: Enciclopédia da música do século 20 (Ed. Martins Fontes, 1995) e A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez (Ed. Zahar, 1988). Foi amigo dileto de Elliott Carter (1908-2012), um dos mais radicais compositores norte-americanos.

Escreveu o libreto da única ópera de Carter, What Next?, de 1997. Um entrecho moderníssimo: enquanto os percussionistas reproduzem os sons de um acidente de carro, os personagens acordam e se descobrem perdidos. Eles estão fisicamente ilesos, mas perderam toda a memória de quem são e como ficaram juntos. Muitas teorias surgem de todos os personagens. Mama sugere que eles estavam a caminho do casamento de Rose e Harry ou Larry, Stella tem certeza de que ela estava dirigindo para o instituto astronômico com Kid, e Rose afirma que estava em um táxi a caminho do hotel depois de uma apresentação extremamente bem recebida. Harry ou Larry, Kid e Zen não sugerem nenhuma razão possível para a situação. Foi gravada em 2006 em performance comandada pelo maestro e compositor húngaro Peter Eötvos (ECM). Nunca foi encenada por aqui.

É portanto natural que privilegie e mereça aplausos por sua atenção à música contemporânea, para a qual constrói um modo de abordagem amigável. Aborda com critério e pleno conhecimento desde a revolução atonal e depois dodecafônica da Segunda Escola de Viena, por Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg nas duas primeiras décadas do século 20 até compositores-símbolos da atualidade, como Pierre Boulez, Kaija Saariaho ou Harrison Birtwistle.

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Cento e vinte páginas nos introduzem de modo amigável para uma música que, frente à avassaladora tsunami das músicas de caráter comercial, agiu compreensivelmente como porco-espinho: refugiou-se em guetos. “Esse tipo de música não se destinava à vida normal de concertos”, reconhece. “Seus compositores encontravam poucos e dedicados intérpretes adeptos e um público específico, proveniente da rádio e de instituições educacionais.”

Com certeza, uma nova fotografia das músicas contemporâneas hoje seria bem diferente. E o livro é tão bom que mereceria um “aggiornamento” num posfácio de Griffiths.

História Concisa da Música Ocidental

  • Autor: Paul Griffiths
  • Tradução: Eduardo Socha
  • Editora: Quina (400 págs.; R$76)

Não é nada fácil contar a história da música ocidental. Afinal, 40 mil anos nos separam do homem das cavernas furando um osso e soprando o que chamamos hoje de flauta, até às orquestras sinfônicas-mamutes de até 120 músicos que escutamos nas atuais salas de concerto.

O crítico musical e musicólogo galês Paul Griffiths, 77 anos, encarou a tarefa, vinte anos atrás. E tratou logo de colocar o adjetivo “concisa” e delimitar bem os limites de sua história. Em sua História Concisa da Música Ocidental, lançada agora no Brasil pela Editora Quina, numa primorosa tradução de Eduardo Socha, ele nos fala da trajetória riquíssima da música erudita/clássica/de concerto de matriz europeia.

Faz sentido separá-la das demais tradições musicais, já que ela foi a única a colocar no papel, a princípio, o canto gregoriano do século 9. Meticuloso, avisa logo que este diferencial também implica a “grande dependência da notação”, da partitura. A ponto de acabar considerando a partitura como a obra de arte, e não sua reprodução no tempo e no espaço, momentos únicos irrepetíveis a cada vez que um maestro dá a largada para a Nona Sinfonia, por exemplo.

Isso o leva a anotar que “a música é feita de tempo, pode viajar nele. E como não conseguimos ver ou pegar a música, apenas ouvir, ela nos atinge com seu passado de maneira imediata e única. Coisas que vemos ou pegamos estão necessariamente fora de nós: a música, no entanto, parece acontecer dentro das nossas cabeças. Ela está bem aqui em nós, mas, simultaneamente, está lá atrás, no passado em que foi feita”.

40 mil anos separam o homem das cavernas furando um osso e soprando o que chamamos hoje de flauta e as orquestras sinfônicas que escutamos nas atuais salas de concerto. Foto: Wilton Junior/Estadão

Por isso, o livro se estrutura em torno do tempo, desde o “tempo pleno” dos babilônios da Antiguidade até a atualidade, que de modo instigante qualifica como “o tempo perdido”. Uma narrativa que convida o leitor para os trovadores e organistas e a Ars Nova do “tempo medido”, entre 1100 e 1400; o tempo percebido, marcado pelo nascimento da harmonia e a música revolucionária da Reforma, entre 1400 e 1630. E assim por diante. Ao barroco corresponde ao “tempo conhecido”, entre 1630 e 1770. E assim por diante, até o primeiro capítulo da sétima parte, intitulada “O tempo emaranhado: 1908-1975″, que se inicia com um título que Ivan Lins já usou numa clássica canção brasileira: “Começar de novo”.

Sem solavancos, atraindo e prendendo nossa atenção – Griffiths foi crítico musical da revista The New Yorker nos anos 1990 – , usa uma linguagem muito distante dos grandes textos empolados dos musicólogos que jamais cai na banalidade de empilhar grandes compositores. Não cai em nenhuma destas armadilhas. Evita linguagem difícil, que afasta os leitores. Nem baixa o nível repetindo obviedades em geral presentes nas chamadas “histórias concisas”.

O glossário enxuto e poucas e certeiras indicações de leitura e playlists em cada capítulo permitem a cada leitor conferir o que diz o autor com sua própria escuta no ato da leitura. No capítulo sobre o período clássico (Haydn-Mozart-Beethoven), ele indica o livro O Estilo Clássico, de Charles Rosen; e entre as gravações, hoje em geral disponíveis no YouTube, está a lendária de Carlos Kleiber da Quinta e da Sétima Sinfonias de Beethoven.

Séculos 20/21, o maior diferencial

Nos anos 1950, Theodor Adorno (1903-1969), o principal teórico das vanguardas, reconhecia seu desânimo “com a música que se concentrava em questões de técnica de composição e que encontrava refúgio apenas em cursos, programas de rádio e festivais para especialistas. Mas, ainda assim, com sua presença e seu engajamento, Adorno dava peso intelectual a esses compositores. Esse teria sido outro motivo para a decepção de Adorno”, anota Griffiths. E completa que ele lamentava “o fato de até mesmo a música de reflexão e resistência estar sendo endossada pelo status quo, cujo poder de neutralizar a dissidência parecia ilimitado”.

Contemplando esta cena com um poderoso telescópio imaginário, Griffiths constata que havia “uma crença amplamente difundida no início da década de 1950 que considerava a música ocidental como um relógio, sistema que avançava em determinada direção, ou gradualmente ou, como acontecia naquela época, por meio de períodos de revolução. O respaldo para essa crença estava na história da música do Ocidente: os modos haviam dado lugar às tonalidades; as possibilidades das tonalidades haviam sido expandidas; em seguida veio a atonalidade. E então, em parte por causa de divergências internas, em parte, paradoxalmente, porque a plausibilidade e o sucesso do novo caminho atraíram muitos adeptos, o relógio começou a ficar mais parecido com uma nuvem”.

A verdade é que a reprodução fonográfica nos mergulhou num eterno presente. Acessamos instantaneamente gravações de 30, 50, 100 anos atrás, com uma seleção dourada de grandes intérpretes. Num contexto destes, fica cada vez mais difícil para músicos e compositores exercer seu ofício sem piscar para o passado. Até Le Marteau sans Maître, obra complexa e de difícil apreensão numa primeira audição, foi gravada cinco vezes por seu compositor, Pierre Boulez.

Griffiths permite-se uma reflexão sobre o passado que está tão ou mais presente do que o nosso próprio presente em nosso dia-a-dia digital em rede: “Se a história pode mudar uma vez, por que não poderia mudar novamente? E se a história pode de fato mudar, o que seria afinal a história? Poderia ser apenas uma narrativa sobre o passado, uma narrativa que, embora permanecesse fiel aos fatos, perderia gradualmente sua relevância à medida que o tempo passasse e as condições históricas se alterassem. O passado não é um caminho que nós e nossos antecessores percorremos, mas um labirinto, e um labirinto sempre em fluxo”.

Capa de 'História Concisa da Música Ocidental', de Paul Griffiths, publicado pela editora Quina. Foto: Editora Quina/Divulgação

Ele escreveu outros dois livros sobre a música do século 20, dita contemporânea, ambos traduzidos: Enciclopédia da música do século 20 (Ed. Martins Fontes, 1995) e A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez (Ed. Zahar, 1988). Foi amigo dileto de Elliott Carter (1908-2012), um dos mais radicais compositores norte-americanos.

Escreveu o libreto da única ópera de Carter, What Next?, de 1997. Um entrecho moderníssimo: enquanto os percussionistas reproduzem os sons de um acidente de carro, os personagens acordam e se descobrem perdidos. Eles estão fisicamente ilesos, mas perderam toda a memória de quem são e como ficaram juntos. Muitas teorias surgem de todos os personagens. Mama sugere que eles estavam a caminho do casamento de Rose e Harry ou Larry, Stella tem certeza de que ela estava dirigindo para o instituto astronômico com Kid, e Rose afirma que estava em um táxi a caminho do hotel depois de uma apresentação extremamente bem recebida. Harry ou Larry, Kid e Zen não sugerem nenhuma razão possível para a situação. Foi gravada em 2006 em performance comandada pelo maestro e compositor húngaro Peter Eötvos (ECM). Nunca foi encenada por aqui.

É portanto natural que privilegie e mereça aplausos por sua atenção à música contemporânea, para a qual constrói um modo de abordagem amigável. Aborda com critério e pleno conhecimento desde a revolução atonal e depois dodecafônica da Segunda Escola de Viena, por Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg nas duas primeiras décadas do século 20 até compositores-símbolos da atualidade, como Pierre Boulez, Kaija Saariaho ou Harrison Birtwistle.

Cento e vinte páginas nos introduzem de modo amigável para uma música que, frente à avassaladora tsunami das músicas de caráter comercial, agiu compreensivelmente como porco-espinho: refugiou-se em guetos. “Esse tipo de música não se destinava à vida normal de concertos”, reconhece. “Seus compositores encontravam poucos e dedicados intérpretes adeptos e um público específico, proveniente da rádio e de instituições educacionais.”

Com certeza, uma nova fotografia das músicas contemporâneas hoje seria bem diferente. E o livro é tão bom que mereceria um “aggiornamento” num posfácio de Griffiths.

História Concisa da Música Ocidental

  • Autor: Paul Griffiths
  • Tradução: Eduardo Socha
  • Editora: Quina (400 págs.; R$76)

Não é nada fácil contar a história da música ocidental. Afinal, 40 mil anos nos separam do homem das cavernas furando um osso e soprando o que chamamos hoje de flauta, até às orquestras sinfônicas-mamutes de até 120 músicos que escutamos nas atuais salas de concerto.

O crítico musical e musicólogo galês Paul Griffiths, 77 anos, encarou a tarefa, vinte anos atrás. E tratou logo de colocar o adjetivo “concisa” e delimitar bem os limites de sua história. Em sua História Concisa da Música Ocidental, lançada agora no Brasil pela Editora Quina, numa primorosa tradução de Eduardo Socha, ele nos fala da trajetória riquíssima da música erudita/clássica/de concerto de matriz europeia.

Faz sentido separá-la das demais tradições musicais, já que ela foi a única a colocar no papel, a princípio, o canto gregoriano do século 9. Meticuloso, avisa logo que este diferencial também implica a “grande dependência da notação”, da partitura. A ponto de acabar considerando a partitura como a obra de arte, e não sua reprodução no tempo e no espaço, momentos únicos irrepetíveis a cada vez que um maestro dá a largada para a Nona Sinfonia, por exemplo.

Isso o leva a anotar que “a música é feita de tempo, pode viajar nele. E como não conseguimos ver ou pegar a música, apenas ouvir, ela nos atinge com seu passado de maneira imediata e única. Coisas que vemos ou pegamos estão necessariamente fora de nós: a música, no entanto, parece acontecer dentro das nossas cabeças. Ela está bem aqui em nós, mas, simultaneamente, está lá atrás, no passado em que foi feita”.

40 mil anos separam o homem das cavernas furando um osso e soprando o que chamamos hoje de flauta e as orquestras sinfônicas que escutamos nas atuais salas de concerto. Foto: Wilton Junior/Estadão

Por isso, o livro se estrutura em torno do tempo, desde o “tempo pleno” dos babilônios da Antiguidade até a atualidade, que de modo instigante qualifica como “o tempo perdido”. Uma narrativa que convida o leitor para os trovadores e organistas e a Ars Nova do “tempo medido”, entre 1100 e 1400; o tempo percebido, marcado pelo nascimento da harmonia e a música revolucionária da Reforma, entre 1400 e 1630. E assim por diante. Ao barroco corresponde ao “tempo conhecido”, entre 1630 e 1770. E assim por diante, até o primeiro capítulo da sétima parte, intitulada “O tempo emaranhado: 1908-1975″, que se inicia com um título que Ivan Lins já usou numa clássica canção brasileira: “Começar de novo”.

Sem solavancos, atraindo e prendendo nossa atenção – Griffiths foi crítico musical da revista The New Yorker nos anos 1990 – , usa uma linguagem muito distante dos grandes textos empolados dos musicólogos que jamais cai na banalidade de empilhar grandes compositores. Não cai em nenhuma destas armadilhas. Evita linguagem difícil, que afasta os leitores. Nem baixa o nível repetindo obviedades em geral presentes nas chamadas “histórias concisas”.

O glossário enxuto e poucas e certeiras indicações de leitura e playlists em cada capítulo permitem a cada leitor conferir o que diz o autor com sua própria escuta no ato da leitura. No capítulo sobre o período clássico (Haydn-Mozart-Beethoven), ele indica o livro O Estilo Clássico, de Charles Rosen; e entre as gravações, hoje em geral disponíveis no YouTube, está a lendária de Carlos Kleiber da Quinta e da Sétima Sinfonias de Beethoven.

Séculos 20/21, o maior diferencial

Nos anos 1950, Theodor Adorno (1903-1969), o principal teórico das vanguardas, reconhecia seu desânimo “com a música que se concentrava em questões de técnica de composição e que encontrava refúgio apenas em cursos, programas de rádio e festivais para especialistas. Mas, ainda assim, com sua presença e seu engajamento, Adorno dava peso intelectual a esses compositores. Esse teria sido outro motivo para a decepção de Adorno”, anota Griffiths. E completa que ele lamentava “o fato de até mesmo a música de reflexão e resistência estar sendo endossada pelo status quo, cujo poder de neutralizar a dissidência parecia ilimitado”.

Contemplando esta cena com um poderoso telescópio imaginário, Griffiths constata que havia “uma crença amplamente difundida no início da década de 1950 que considerava a música ocidental como um relógio, sistema que avançava em determinada direção, ou gradualmente ou, como acontecia naquela época, por meio de períodos de revolução. O respaldo para essa crença estava na história da música do Ocidente: os modos haviam dado lugar às tonalidades; as possibilidades das tonalidades haviam sido expandidas; em seguida veio a atonalidade. E então, em parte por causa de divergências internas, em parte, paradoxalmente, porque a plausibilidade e o sucesso do novo caminho atraíram muitos adeptos, o relógio começou a ficar mais parecido com uma nuvem”.

A verdade é que a reprodução fonográfica nos mergulhou num eterno presente. Acessamos instantaneamente gravações de 30, 50, 100 anos atrás, com uma seleção dourada de grandes intérpretes. Num contexto destes, fica cada vez mais difícil para músicos e compositores exercer seu ofício sem piscar para o passado. Até Le Marteau sans Maître, obra complexa e de difícil apreensão numa primeira audição, foi gravada cinco vezes por seu compositor, Pierre Boulez.

Griffiths permite-se uma reflexão sobre o passado que está tão ou mais presente do que o nosso próprio presente em nosso dia-a-dia digital em rede: “Se a história pode mudar uma vez, por que não poderia mudar novamente? E se a história pode de fato mudar, o que seria afinal a história? Poderia ser apenas uma narrativa sobre o passado, uma narrativa que, embora permanecesse fiel aos fatos, perderia gradualmente sua relevância à medida que o tempo passasse e as condições históricas se alterassem. O passado não é um caminho que nós e nossos antecessores percorremos, mas um labirinto, e um labirinto sempre em fluxo”.

Capa de 'História Concisa da Música Ocidental', de Paul Griffiths, publicado pela editora Quina. Foto: Editora Quina/Divulgação

Ele escreveu outros dois livros sobre a música do século 20, dita contemporânea, ambos traduzidos: Enciclopédia da música do século 20 (Ed. Martins Fontes, 1995) e A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez (Ed. Zahar, 1988). Foi amigo dileto de Elliott Carter (1908-2012), um dos mais radicais compositores norte-americanos.

Escreveu o libreto da única ópera de Carter, What Next?, de 1997. Um entrecho moderníssimo: enquanto os percussionistas reproduzem os sons de um acidente de carro, os personagens acordam e se descobrem perdidos. Eles estão fisicamente ilesos, mas perderam toda a memória de quem são e como ficaram juntos. Muitas teorias surgem de todos os personagens. Mama sugere que eles estavam a caminho do casamento de Rose e Harry ou Larry, Stella tem certeza de que ela estava dirigindo para o instituto astronômico com Kid, e Rose afirma que estava em um táxi a caminho do hotel depois de uma apresentação extremamente bem recebida. Harry ou Larry, Kid e Zen não sugerem nenhuma razão possível para a situação. Foi gravada em 2006 em performance comandada pelo maestro e compositor húngaro Peter Eötvos (ECM). Nunca foi encenada por aqui.

É portanto natural que privilegie e mereça aplausos por sua atenção à música contemporânea, para a qual constrói um modo de abordagem amigável. Aborda com critério e pleno conhecimento desde a revolução atonal e depois dodecafônica da Segunda Escola de Viena, por Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg nas duas primeiras décadas do século 20 até compositores-símbolos da atualidade, como Pierre Boulez, Kaija Saariaho ou Harrison Birtwistle.

Cento e vinte páginas nos introduzem de modo amigável para uma música que, frente à avassaladora tsunami das músicas de caráter comercial, agiu compreensivelmente como porco-espinho: refugiou-se em guetos. “Esse tipo de música não se destinava à vida normal de concertos”, reconhece. “Seus compositores encontravam poucos e dedicados intérpretes adeptos e um público específico, proveniente da rádio e de instituições educacionais.”

Com certeza, uma nova fotografia das músicas contemporâneas hoje seria bem diferente. E o livro é tão bom que mereceria um “aggiornamento” num posfácio de Griffiths.

História Concisa da Música Ocidental

  • Autor: Paul Griffiths
  • Tradução: Eduardo Socha
  • Editora: Quina (400 págs.; R$76)

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