Afastamento de Daniel Barenboim simboliza o fim de uma era na regência


Maestro ousou ao tocar obra de Richard Wagner em Israel e criar orquestra formada por músicos palestinos e israelenses

Por João Luiz Sampaio

Há expressões que, de tão utilizadas, perdem sua força ou mesmo o sentido. Difícil, porém, não entender a decisão do maestro Daniel Barenboim de deixar a direção da Ópera Estatal de Berlim como o fim de uma era. Por tudo o que ele fez à frente do teatro, sim. Mas também porque o anúncio é motivado por uma séria doença neurológica que afastou o maestro de 80 anos do palco desde outubro e que torna incerto o quanto ele poderá participar de concertos daqui em diante.

Não há detalhes sobre a doença de Barenboim. Em comunicado oficial, o maestro afirmou que sua saúde piorou “significativamente” no último ano e que ele já não pode oferecer o desempenho exigido de um diretor musical. O texto diz ainda que, enquanto viver, Barenboim estará intimamente ligado à música e disposto, quando possível, a trabalhar como maestro à frente de orquestras, inclusive a da Staastsoper.

Daniel Barenboim durante sua apresentação no Festival Internacional de Música e Dança de Granada, na sexta-feira, 24 de julho, no Palácio de Carlos V. Foto: EFE/ Miguel Angel Molina
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Desde o anúncio, Barenboim vem sendo tratado pela imprensa internacional como o maior maestro do mundo. Concorde-se ou não, nas últimas três décadas o regente e pianista conquistou um espaço no meio musical e no debate público difícil de ser equiparado. No palco, a exigência quase obsessiva de um artista na busca pela interpretação ideal; fora dele, um homem antenado com grandes questões de seu tempo.

O episódio mais conhecido nesse sentido se deu em 2001, quando durante um concerto em Jerusalém resolveu tocar o prelúdio da ópera Tristão e Isolda, de Wagner, com a Staatskapelle Berlin, orquestra da Staastsoper. O compositor alemão foi um declarado antissemita, sua música era a preferida de Adolf Hitler e costumava ser tocada em campos de concentração durante a Segunda Guerra. Em Israel, ainda que não haja proibição oficial, há um acordo tácito entre músicos: no país, não se toca Wagner.

Na ocasião, Barenboim tentou incluir o compositor no programa original do concerto, afirmando que não há nenhum elemento antissemita em sua música. Os promotores da apresentação pediram que ele não o fizesse e o repertório foi alterado. Mas, durante o bis, o maestro voltou-se à plateia e perguntou se as pessoas gostariam de ouvir um pouco de Wagner. Muitos deixaram o teatro, outros permaneceram. E orquestra e maestro foram adiante. Ehud Omert, então prefeito de Jerusalém, classificou o ocorrido como “arrogante e inaceitável”. Outras autoridades pediram que orquestras e artistas israelenses cortassem relação com Barenboim.

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O maestro escreveu diversos ensaios sobre a questão, um hábito constante de reflexão sobre temas da música e da política - e as possíveis intersecções entre elas. O principal exemplo diz respeito à questão palestina. Em 2018, ele afirmou que a postura israelense com relação aos palestinos era uma forma de apartheid, classificando a lei do Estado Nacional, aprovada naquele ano, como racista. Pouco depois, tornou-se a primeira pessoa no mundo a ter um passaporte israelense e outro palestino, oferecido pelo governo da Palestina por sua defesa do diálogo como forma de resolução do conflito.

Diálogo, mas também música. No início dos anos 2000, Barenboim criou ao lado do pensador palestino Edward Said a Western-Eastern Divan Orchestra, grupo formado por jovens músicos árabes e israelenses. Eles viajaram o mundo algumas vezes, passando também pelo Brasil (onde Barenboim também esteve com a Orquestra Sinfônica de Chicago, da qual foi diretor artístico, e a Staatskaepelle).

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A proposta do Divan, dizia o maestro, era simples. No momento em que músicos se unem para tocar em uma orquestra, têm que estar atentos tanto ao que estão tocando quanto ao que seus colegas estão fazendo. Assim, de um todo coeso que nasce de vozes individuais, é que se faz música. E assim também se pode imaginar uma nova sociedade, baseada no diálogo e na tolerância.

Novos tempos

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Como pianista e maestro, Barenboim é um músico genial, e construiu um legado difícil de ser igualado. Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Brahms, Bruckner - gravou diversas vezes todas as sinfonias destes e de muitos outros compositores, assim como a obra para piano de alguns deles (além de ter uma preocupação genuína com a música de nosso tempo, abordando o repertório do século 20 e ajudando, por meio de encomendas, a formar o repertório do século 21).

Seu registro das 32 sonatas de Beethoven são acompanhadas de uma série de palestras em que explica a importância das peças e suas escolhas como intérprete. Há uma preocupação quase pedagógica, mas também uma ideia de maestro por trás desse tipo de diálogo com o público. O regente é aquele que tem sempre algo a dizer sobre o repertório que interpreta, uma visão pessoal, quase mística. É uma noção que remonta à sua própria origem como artista quando, ainda menino, deixou a Argentina em direção à Alemanha, onde teria o lendário maestro alemão Wilhelm Furtwängler, tido como defensor do patrimônio musical germânico, como modelo.

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É uma visão que, ao longo do século 20, muitas vezes esteve ligada a uma posição autoritária na relação com os músicos. E se, politicamente, as ideias de Barenboim são arrojadas, ele também foi acusado diversas vezes de assumir postura intolerante com os artistas com os quais trabalhou (uma série de funcionários e integrantes da orquestra da Staatsoper falaram em condição de anonimato sobre a dificuldade na relação com o maestro à revista VAN). Parece haver aí uma contradição, entre a defesa do diálogo entre culturas e o autoritarismo no fazer artístico. Mas ambas surgem de um mesmo lugar, dessa visão do maestro como uma liderança inequívoca, cujas falhas se deve perdoar perante a genialidade do trabalho como músico.

Hoje, a era dos maestros super-heróis vai ficando no passado. E se espera da nova geração a compreensão do fazer musical como construção coletiva, na qual o regente é personagem central, mas não mais o único. Novos tempos, novos e bem-vindos desafios. E uma nova geração tem se formado à luz dessas questões, dando forma a carreiras interessantes. Mas o legado artístico de Barenboim ainda está longe de ser equiparado.

Há expressões que, de tão utilizadas, perdem sua força ou mesmo o sentido. Difícil, porém, não entender a decisão do maestro Daniel Barenboim de deixar a direção da Ópera Estatal de Berlim como o fim de uma era. Por tudo o que ele fez à frente do teatro, sim. Mas também porque o anúncio é motivado por uma séria doença neurológica que afastou o maestro de 80 anos do palco desde outubro e que torna incerto o quanto ele poderá participar de concertos daqui em diante.

Não há detalhes sobre a doença de Barenboim. Em comunicado oficial, o maestro afirmou que sua saúde piorou “significativamente” no último ano e que ele já não pode oferecer o desempenho exigido de um diretor musical. O texto diz ainda que, enquanto viver, Barenboim estará intimamente ligado à música e disposto, quando possível, a trabalhar como maestro à frente de orquestras, inclusive a da Staastsoper.

Daniel Barenboim durante sua apresentação no Festival Internacional de Música e Dança de Granada, na sexta-feira, 24 de julho, no Palácio de Carlos V. Foto: EFE/ Miguel Angel Molina

Desde o anúncio, Barenboim vem sendo tratado pela imprensa internacional como o maior maestro do mundo. Concorde-se ou não, nas últimas três décadas o regente e pianista conquistou um espaço no meio musical e no debate público difícil de ser equiparado. No palco, a exigência quase obsessiva de um artista na busca pela interpretação ideal; fora dele, um homem antenado com grandes questões de seu tempo.

O episódio mais conhecido nesse sentido se deu em 2001, quando durante um concerto em Jerusalém resolveu tocar o prelúdio da ópera Tristão e Isolda, de Wagner, com a Staatskapelle Berlin, orquestra da Staastsoper. O compositor alemão foi um declarado antissemita, sua música era a preferida de Adolf Hitler e costumava ser tocada em campos de concentração durante a Segunda Guerra. Em Israel, ainda que não haja proibição oficial, há um acordo tácito entre músicos: no país, não se toca Wagner.

Na ocasião, Barenboim tentou incluir o compositor no programa original do concerto, afirmando que não há nenhum elemento antissemita em sua música. Os promotores da apresentação pediram que ele não o fizesse e o repertório foi alterado. Mas, durante o bis, o maestro voltou-se à plateia e perguntou se as pessoas gostariam de ouvir um pouco de Wagner. Muitos deixaram o teatro, outros permaneceram. E orquestra e maestro foram adiante. Ehud Omert, então prefeito de Jerusalém, classificou o ocorrido como “arrogante e inaceitável”. Outras autoridades pediram que orquestras e artistas israelenses cortassem relação com Barenboim.

O maestro escreveu diversos ensaios sobre a questão, um hábito constante de reflexão sobre temas da música e da política - e as possíveis intersecções entre elas. O principal exemplo diz respeito à questão palestina. Em 2018, ele afirmou que a postura israelense com relação aos palestinos era uma forma de apartheid, classificando a lei do Estado Nacional, aprovada naquele ano, como racista. Pouco depois, tornou-se a primeira pessoa no mundo a ter um passaporte israelense e outro palestino, oferecido pelo governo da Palestina por sua defesa do diálogo como forma de resolução do conflito.

Diálogo, mas também música. No início dos anos 2000, Barenboim criou ao lado do pensador palestino Edward Said a Western-Eastern Divan Orchestra, grupo formado por jovens músicos árabes e israelenses. Eles viajaram o mundo algumas vezes, passando também pelo Brasil (onde Barenboim também esteve com a Orquestra Sinfônica de Chicago, da qual foi diretor artístico, e a Staatskaepelle).

A proposta do Divan, dizia o maestro, era simples. No momento em que músicos se unem para tocar em uma orquestra, têm que estar atentos tanto ao que estão tocando quanto ao que seus colegas estão fazendo. Assim, de um todo coeso que nasce de vozes individuais, é que se faz música. E assim também se pode imaginar uma nova sociedade, baseada no diálogo e na tolerância.

Novos tempos

Como pianista e maestro, Barenboim é um músico genial, e construiu um legado difícil de ser igualado. Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Brahms, Bruckner - gravou diversas vezes todas as sinfonias destes e de muitos outros compositores, assim como a obra para piano de alguns deles (além de ter uma preocupação genuína com a música de nosso tempo, abordando o repertório do século 20 e ajudando, por meio de encomendas, a formar o repertório do século 21).

Seu registro das 32 sonatas de Beethoven são acompanhadas de uma série de palestras em que explica a importância das peças e suas escolhas como intérprete. Há uma preocupação quase pedagógica, mas também uma ideia de maestro por trás desse tipo de diálogo com o público. O regente é aquele que tem sempre algo a dizer sobre o repertório que interpreta, uma visão pessoal, quase mística. É uma noção que remonta à sua própria origem como artista quando, ainda menino, deixou a Argentina em direção à Alemanha, onde teria o lendário maestro alemão Wilhelm Furtwängler, tido como defensor do patrimônio musical germânico, como modelo.

É uma visão que, ao longo do século 20, muitas vezes esteve ligada a uma posição autoritária na relação com os músicos. E se, politicamente, as ideias de Barenboim são arrojadas, ele também foi acusado diversas vezes de assumir postura intolerante com os artistas com os quais trabalhou (uma série de funcionários e integrantes da orquestra da Staatsoper falaram em condição de anonimato sobre a dificuldade na relação com o maestro à revista VAN). Parece haver aí uma contradição, entre a defesa do diálogo entre culturas e o autoritarismo no fazer artístico. Mas ambas surgem de um mesmo lugar, dessa visão do maestro como uma liderança inequívoca, cujas falhas se deve perdoar perante a genialidade do trabalho como músico.

Hoje, a era dos maestros super-heróis vai ficando no passado. E se espera da nova geração a compreensão do fazer musical como construção coletiva, na qual o regente é personagem central, mas não mais o único. Novos tempos, novos e bem-vindos desafios. E uma nova geração tem se formado à luz dessas questões, dando forma a carreiras interessantes. Mas o legado artístico de Barenboim ainda está longe de ser equiparado.

Há expressões que, de tão utilizadas, perdem sua força ou mesmo o sentido. Difícil, porém, não entender a decisão do maestro Daniel Barenboim de deixar a direção da Ópera Estatal de Berlim como o fim de uma era. Por tudo o que ele fez à frente do teatro, sim. Mas também porque o anúncio é motivado por uma séria doença neurológica que afastou o maestro de 80 anos do palco desde outubro e que torna incerto o quanto ele poderá participar de concertos daqui em diante.

Não há detalhes sobre a doença de Barenboim. Em comunicado oficial, o maestro afirmou que sua saúde piorou “significativamente” no último ano e que ele já não pode oferecer o desempenho exigido de um diretor musical. O texto diz ainda que, enquanto viver, Barenboim estará intimamente ligado à música e disposto, quando possível, a trabalhar como maestro à frente de orquestras, inclusive a da Staastsoper.

Daniel Barenboim durante sua apresentação no Festival Internacional de Música e Dança de Granada, na sexta-feira, 24 de julho, no Palácio de Carlos V. Foto: EFE/ Miguel Angel Molina

Desde o anúncio, Barenboim vem sendo tratado pela imprensa internacional como o maior maestro do mundo. Concorde-se ou não, nas últimas três décadas o regente e pianista conquistou um espaço no meio musical e no debate público difícil de ser equiparado. No palco, a exigência quase obsessiva de um artista na busca pela interpretação ideal; fora dele, um homem antenado com grandes questões de seu tempo.

O episódio mais conhecido nesse sentido se deu em 2001, quando durante um concerto em Jerusalém resolveu tocar o prelúdio da ópera Tristão e Isolda, de Wagner, com a Staatskapelle Berlin, orquestra da Staastsoper. O compositor alemão foi um declarado antissemita, sua música era a preferida de Adolf Hitler e costumava ser tocada em campos de concentração durante a Segunda Guerra. Em Israel, ainda que não haja proibição oficial, há um acordo tácito entre músicos: no país, não se toca Wagner.

Na ocasião, Barenboim tentou incluir o compositor no programa original do concerto, afirmando que não há nenhum elemento antissemita em sua música. Os promotores da apresentação pediram que ele não o fizesse e o repertório foi alterado. Mas, durante o bis, o maestro voltou-se à plateia e perguntou se as pessoas gostariam de ouvir um pouco de Wagner. Muitos deixaram o teatro, outros permaneceram. E orquestra e maestro foram adiante. Ehud Omert, então prefeito de Jerusalém, classificou o ocorrido como “arrogante e inaceitável”. Outras autoridades pediram que orquestras e artistas israelenses cortassem relação com Barenboim.

O maestro escreveu diversos ensaios sobre a questão, um hábito constante de reflexão sobre temas da música e da política - e as possíveis intersecções entre elas. O principal exemplo diz respeito à questão palestina. Em 2018, ele afirmou que a postura israelense com relação aos palestinos era uma forma de apartheid, classificando a lei do Estado Nacional, aprovada naquele ano, como racista. Pouco depois, tornou-se a primeira pessoa no mundo a ter um passaporte israelense e outro palestino, oferecido pelo governo da Palestina por sua defesa do diálogo como forma de resolução do conflito.

Diálogo, mas também música. No início dos anos 2000, Barenboim criou ao lado do pensador palestino Edward Said a Western-Eastern Divan Orchestra, grupo formado por jovens músicos árabes e israelenses. Eles viajaram o mundo algumas vezes, passando também pelo Brasil (onde Barenboim também esteve com a Orquestra Sinfônica de Chicago, da qual foi diretor artístico, e a Staatskaepelle).

A proposta do Divan, dizia o maestro, era simples. No momento em que músicos se unem para tocar em uma orquestra, têm que estar atentos tanto ao que estão tocando quanto ao que seus colegas estão fazendo. Assim, de um todo coeso que nasce de vozes individuais, é que se faz música. E assim também se pode imaginar uma nova sociedade, baseada no diálogo e na tolerância.

Novos tempos

Como pianista e maestro, Barenboim é um músico genial, e construiu um legado difícil de ser igualado. Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Brahms, Bruckner - gravou diversas vezes todas as sinfonias destes e de muitos outros compositores, assim como a obra para piano de alguns deles (além de ter uma preocupação genuína com a música de nosso tempo, abordando o repertório do século 20 e ajudando, por meio de encomendas, a formar o repertório do século 21).

Seu registro das 32 sonatas de Beethoven são acompanhadas de uma série de palestras em que explica a importância das peças e suas escolhas como intérprete. Há uma preocupação quase pedagógica, mas também uma ideia de maestro por trás desse tipo de diálogo com o público. O regente é aquele que tem sempre algo a dizer sobre o repertório que interpreta, uma visão pessoal, quase mística. É uma noção que remonta à sua própria origem como artista quando, ainda menino, deixou a Argentina em direção à Alemanha, onde teria o lendário maestro alemão Wilhelm Furtwängler, tido como defensor do patrimônio musical germânico, como modelo.

É uma visão que, ao longo do século 20, muitas vezes esteve ligada a uma posição autoritária na relação com os músicos. E se, politicamente, as ideias de Barenboim são arrojadas, ele também foi acusado diversas vezes de assumir postura intolerante com os artistas com os quais trabalhou (uma série de funcionários e integrantes da orquestra da Staatsoper falaram em condição de anonimato sobre a dificuldade na relação com o maestro à revista VAN). Parece haver aí uma contradição, entre a defesa do diálogo entre culturas e o autoritarismo no fazer artístico. Mas ambas surgem de um mesmo lugar, dessa visão do maestro como uma liderança inequívoca, cujas falhas se deve perdoar perante a genialidade do trabalho como músico.

Hoje, a era dos maestros super-heróis vai ficando no passado. E se espera da nova geração a compreensão do fazer musical como construção coletiva, na qual o regente é personagem central, mas não mais o único. Novos tempos, novos e bem-vindos desafios. E uma nova geração tem se formado à luz dessas questões, dando forma a carreiras interessantes. Mas o legado artístico de Barenboim ainda está longe de ser equiparado.

Há expressões que, de tão utilizadas, perdem sua força ou mesmo o sentido. Difícil, porém, não entender a decisão do maestro Daniel Barenboim de deixar a direção da Ópera Estatal de Berlim como o fim de uma era. Por tudo o que ele fez à frente do teatro, sim. Mas também porque o anúncio é motivado por uma séria doença neurológica que afastou o maestro de 80 anos do palco desde outubro e que torna incerto o quanto ele poderá participar de concertos daqui em diante.

Não há detalhes sobre a doença de Barenboim. Em comunicado oficial, o maestro afirmou que sua saúde piorou “significativamente” no último ano e que ele já não pode oferecer o desempenho exigido de um diretor musical. O texto diz ainda que, enquanto viver, Barenboim estará intimamente ligado à música e disposto, quando possível, a trabalhar como maestro à frente de orquestras, inclusive a da Staastsoper.

Daniel Barenboim durante sua apresentação no Festival Internacional de Música e Dança de Granada, na sexta-feira, 24 de julho, no Palácio de Carlos V. Foto: EFE/ Miguel Angel Molina

Desde o anúncio, Barenboim vem sendo tratado pela imprensa internacional como o maior maestro do mundo. Concorde-se ou não, nas últimas três décadas o regente e pianista conquistou um espaço no meio musical e no debate público difícil de ser equiparado. No palco, a exigência quase obsessiva de um artista na busca pela interpretação ideal; fora dele, um homem antenado com grandes questões de seu tempo.

O episódio mais conhecido nesse sentido se deu em 2001, quando durante um concerto em Jerusalém resolveu tocar o prelúdio da ópera Tristão e Isolda, de Wagner, com a Staatskapelle Berlin, orquestra da Staastsoper. O compositor alemão foi um declarado antissemita, sua música era a preferida de Adolf Hitler e costumava ser tocada em campos de concentração durante a Segunda Guerra. Em Israel, ainda que não haja proibição oficial, há um acordo tácito entre músicos: no país, não se toca Wagner.

Na ocasião, Barenboim tentou incluir o compositor no programa original do concerto, afirmando que não há nenhum elemento antissemita em sua música. Os promotores da apresentação pediram que ele não o fizesse e o repertório foi alterado. Mas, durante o bis, o maestro voltou-se à plateia e perguntou se as pessoas gostariam de ouvir um pouco de Wagner. Muitos deixaram o teatro, outros permaneceram. E orquestra e maestro foram adiante. Ehud Omert, então prefeito de Jerusalém, classificou o ocorrido como “arrogante e inaceitável”. Outras autoridades pediram que orquestras e artistas israelenses cortassem relação com Barenboim.

O maestro escreveu diversos ensaios sobre a questão, um hábito constante de reflexão sobre temas da música e da política - e as possíveis intersecções entre elas. O principal exemplo diz respeito à questão palestina. Em 2018, ele afirmou que a postura israelense com relação aos palestinos era uma forma de apartheid, classificando a lei do Estado Nacional, aprovada naquele ano, como racista. Pouco depois, tornou-se a primeira pessoa no mundo a ter um passaporte israelense e outro palestino, oferecido pelo governo da Palestina por sua defesa do diálogo como forma de resolução do conflito.

Diálogo, mas também música. No início dos anos 2000, Barenboim criou ao lado do pensador palestino Edward Said a Western-Eastern Divan Orchestra, grupo formado por jovens músicos árabes e israelenses. Eles viajaram o mundo algumas vezes, passando também pelo Brasil (onde Barenboim também esteve com a Orquestra Sinfônica de Chicago, da qual foi diretor artístico, e a Staatskaepelle).

A proposta do Divan, dizia o maestro, era simples. No momento em que músicos se unem para tocar em uma orquestra, têm que estar atentos tanto ao que estão tocando quanto ao que seus colegas estão fazendo. Assim, de um todo coeso que nasce de vozes individuais, é que se faz música. E assim também se pode imaginar uma nova sociedade, baseada no diálogo e na tolerância.

Novos tempos

Como pianista e maestro, Barenboim é um músico genial, e construiu um legado difícil de ser igualado. Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Brahms, Bruckner - gravou diversas vezes todas as sinfonias destes e de muitos outros compositores, assim como a obra para piano de alguns deles (além de ter uma preocupação genuína com a música de nosso tempo, abordando o repertório do século 20 e ajudando, por meio de encomendas, a formar o repertório do século 21).

Seu registro das 32 sonatas de Beethoven são acompanhadas de uma série de palestras em que explica a importância das peças e suas escolhas como intérprete. Há uma preocupação quase pedagógica, mas também uma ideia de maestro por trás desse tipo de diálogo com o público. O regente é aquele que tem sempre algo a dizer sobre o repertório que interpreta, uma visão pessoal, quase mística. É uma noção que remonta à sua própria origem como artista quando, ainda menino, deixou a Argentina em direção à Alemanha, onde teria o lendário maestro alemão Wilhelm Furtwängler, tido como defensor do patrimônio musical germânico, como modelo.

É uma visão que, ao longo do século 20, muitas vezes esteve ligada a uma posição autoritária na relação com os músicos. E se, politicamente, as ideias de Barenboim são arrojadas, ele também foi acusado diversas vezes de assumir postura intolerante com os artistas com os quais trabalhou (uma série de funcionários e integrantes da orquestra da Staatsoper falaram em condição de anonimato sobre a dificuldade na relação com o maestro à revista VAN). Parece haver aí uma contradição, entre a defesa do diálogo entre culturas e o autoritarismo no fazer artístico. Mas ambas surgem de um mesmo lugar, dessa visão do maestro como uma liderança inequívoca, cujas falhas se deve perdoar perante a genialidade do trabalho como músico.

Hoje, a era dos maestros super-heróis vai ficando no passado. E se espera da nova geração a compreensão do fazer musical como construção coletiva, na qual o regente é personagem central, mas não mais o único. Novos tempos, novos e bem-vindos desafios. E uma nova geração tem se formado à luz dessas questões, dando forma a carreiras interessantes. Mas o legado artístico de Barenboim ainda está longe de ser equiparado.

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