Duas cenas marcaram a cultura pop brasileira em 2022. A primeira foram discursos rancorosos de Zé Neto contra Anitta. No dia 12 de maio, em Sorriso (MT), o sertanejo resolveu falar contra a funkeira no palco, dizendo que ele “não depende de Lei Rouanet” e fazendo uma menção ofensiva ao que Anitta depois chamou, com ironia, de “tatuagem no tororó”.
As ofensas de Zé Neto e o deboche de Anitta desencadearam uma discussão sobre incentivo à cultura, já que o cantor criticou o uso da Lei Rouanet enquanto fazia shows com verbas públicas astronômicas de prefeituras. As críticas ganharam até o nome informal de #CPIdoSertanejo nas redes sociais.
Discussão sobre política pública à parte, uma parte do embate ficou em segundo plano: no show seguinte, em Dourados (MT), no dia 19 de maio, já sob ataques, Zé Neto disse que ia “rezar” para que pessoas como Anitta “calcem uma botina e entrem num curral” e ia “rezar” para ela “entender” que “o leite que você compra na caixinha não vem bonitinho da caixinha, alguém tirou”.
Havia ali uma tensão: os grandes artistas do sertanejo, estilo musical mais ouvido do Brasil, comandam um mercado milionário, mas ainda assim se sentem desvalorizados.
A reclamação vai além da música. Eles vestem a camisa do novo Brasil do campo, do Centro-Oeste, região que mais cresce no País, onde se “trabalha de verdade”, onde se é produtivo e conservador; enquanto isso, os privilegiados das grandes cidades, representados por artistas que vivem de supostas “mamatas”, são depravados, fazem “tatuagem no tororó” e nem sabem o que é “calçar uma botina e entrar num curral”.
Essa tensão ficou aparente também há poucas semanas, quando os grandes artistas sertanejos não apareceram no Rio de Janeiro para o Prêmio Multishow. Nos bastidores da emissora do Grupo Globo se falou em boicote à premiação por, novamente, não dar o valor devido ao sertanejo. A queixa implícita é que estilos “urbanos” como o pop e o funk, e artistas do Sudeste saem com muito mais prêmios e atenção.
Agora, enfim, a segunda cena que marcou a cultura pop do Brasil no ano passado. Uma cantora adolescente, então desconhecida, do Mato Grosso do Sul, aparece de chapéu, bota e fivela, se autodenomina “boiadeira” e, sob uma batida eletrônica, de funk, dá um grito abusado que lembra os de Anitta: “Se prepaaaara”.
Ana Castela foi a ponteira da comitiva do “agronejo”, que defendia em sua estética e em suas letras, com clareza e orgulho, o agronegócio brasileiro. O discurso amargo de Zé Neto, zombando do povo da cidade que acha que o leite vem da caixinha e nem sabe o que é “calçar uma botina e entrar num curral” está todo nas músicas deles, mas de uma forma positiva e bem humorada.
Mas havia também a batida eletrônica no tal hit de Ana, Pipoco, para o qual ela convidou a carioca Melody, e que foi produzido pelo DJ paranaense Chris no Beat. Nessa parte, toda a referência é do funk e da música urbana brasileira. Ana Castela surgiu ali como uma figura que encarnava, ao mesmo tempo, Zé Neto e Anitta. O orgulho do agro, do sertanejo “raiz”, o som vibrante e o atrevimento do funk, a esperteza das redes sociais: a figura de Ana Castela cavalgou sobre essa tensão, implodiu um muro em que o mercado e os fãs estavam batendo a cara.
Ana, com a figura da “boiadeira” teen planejada pelo escritório paranaense Agroplay, quebrou preconceitos dos dois lados. O mais importante foi da própria cena sertaneja. O mercado bilionário, com seu eixo em Goiânia, já experimentou inúmeras misturas com estilos urbanos, desde o hard rock nos anos 90 ao “funknejo” nos 2000. Mas, há quase uma década, há o reinado de um som super-romântico, conservador, de vozes empoladas como as de Gusttavo Lima, o “imperador” e dos próprios Zé Neto e Cristiano. Faltava uma leveza, certa ousadia e alegria.
O que fizeram a turma de Ana, Chris no Beat, Us Agroboy e um amigo dela ainda mais ousado e criticado, o cantor Luan Pereira, foi abrir a cabeça do sertanejo, modernizá-lo para a era do TikTok. Eles têm base em escritórios de Londrina, não de Goiânia. Enfrentaram, claro, também o preconceito de cantar o orgulho da roça diante de fãs de pop e funk. Abertas essas porteiras, foi só seguir para 2023, quando Ana virou a cantora mais ouvida do Brasil na principal plataforma de streaming, o Spotify.
Em Nosso Quadro, a música mais tocada do ano no País, Ana Castela (com participação de Luan Pereira e do plantel da Agroplay) fez gol com uma bola que estava quicando havia anos, mas ninguém se interessou ou acertou (nem do lado urbano, nem do sertanejo): um grande hit de reggaeton em português, sem se fingir de hispânico (alô, Anitta), com a pegada malemolente do ritmo vizinho traduzida para uma história de “sofrência” bem brasileira.
Em “Bombonzinho” (de Ana com Israel e Rodolffo), outro sucesso dela no top 5 do ano, e em “Canudinho” (com Gusttavo Lima), uma das músicas mais ouvidas atualmente, ela ajuda a dar leveza e frescor ao som dos artistas, especialmente Gusttavo, com aquele ar empolado, pesado e ultrarromântico que marcava o sertanejo antes de sua comitiva chegar.
É improvável que alguém que não se interesse por Ana Castela ou pelos motivos de seu sucesso tenha chegado ao final deste texto pesado e empolado (a hipocrisia). Mas é possível que estas pessoas achem que tudo não passa de efeito do “agromoney”.
Ana Castela teria chegado ao número 1 simplesmente porque pagou, alguém menos atento pode pensar. Tudo na indústria musical brasileira pode ser comprado, e sucessos como os dela seriam apenas resultado do dinheiro da economia do Centro-Oeste jorrando nesse campo.
Sim, o escritório de Ana, Agroplay, fez um trabalho de marketing, de preparação dela como produto, e de investimento sem o qual é impossível um artista sertanejo estourar no Brasil. Mas é preciso lembrar, também, que há dezenas de duplas lançadas todo mês, muitas com investimento milionário. O “agromoney” está rolando. No caso dela, também foi “smart money”.
É importante entender, também, por que Ana Castela deixou os outros “investimentos” comendo poeira. Compreender como ela incorporou a tensão negativa do Brasil de 2022 e a transformou em um projeto musical que desconhece porteiras pode ajudar a entender e pensar outros caminhos para o País - que, claro, não passem só pelo embate rancoroso de Zé Neto.