Milton Nascimento obedece ao seu tempo sem pressa, usando palavras simples, procurando um vocabulário que teima em não chegar quando sua ideia precisa ser explicada por um caminho mais longo. Às vezes treme os lábios, abaixa os olhos e sorri encabulado, mas a história que quer contar será contada, mesmo quando o repórter se impacienta e tenta cortá-lo com uma nova pergunta. Milton ignora a intromissão e segue em seu pensamento, presenteando o ouvinte com um final que ele jamais imaginaria ouvir.
Essa é a música de Milton Nascimento. Ouvi-lo falar é desvendar parte dos mistérios de sua arte, um homem que pensa muitas vezes ao inverso dos compositores, criando para si lugares-comuns harmônicos muito distantes dos padrões adotados pela música brasileira e usados por seus contemporâneos mais ilustres. Sua fala é sua música. Ela é simples em um primeiro ato, como se apresentasse um discurso para se fisgar ouvidos mais leigos. Vai se desdobrando, então, rumo a destinos que poderiam gerar estranhamento não fosse a sedução já se ter imposto, até chegar a resoluções que soam como presentes. Como quando fala, o Milton que canta funciona em dois planos, na superfície e nas profundezas, atingindo níveis decodificados na sensibilidade de jazzistas acadêmicos como Herbie Hancock e de entidades intuitivas como Clementina de Jesus. Sem descer na escala das facilidades para ser mais aceito ou subir no tom dos hermetismos para se vender a grupos iniciados, Milton fala e canta para uma plateia sem idade, sem sexo e sem estrato social.
Como o homem da fala, o da música também é misterioso. Elis Regina, a intérprete para quem ele diz ainda fazer todas as canções, comentava que seu silêncio era doloroso. “Eu tenho medo dele”, disse em uma entrevista ao lembrar que ainda estava se acostumando a lidar com a falta de expressão do artista no momento em que ele ouvia uma música que ela havia acabado de gravar. Saber o que ele está pensando ou fazê-lo pensar algo que se deseja que pense são missões ingratas. Milton apenas entra em seu mundo e parte em travessia para algum canto do próprio peito.
Sua interpretação é a anti-interpretação. Milton jamais se joga em uma música com artifícios técnicos, impostando o canto, usando vibratos, improvisando scats ou buscando lágrimas cênicas na escuridão das memórias. É como se a música que existisse ali dentro simplesmente saísse por uma voz capaz de desconstruir a escola de seus próprios heróis do rádio.
A questão é a voz de Milton, ou seja lá qual for a força que a rege. Sua intensidade não depende do volume e seu impacto não carece de dramaticidade. Como o Milton Nascimento que fala, o que canta acredita na frase do “nunca é igual se for bem natural / Se for de coração, além do bem e do mal”. Mesmo a história repetida cem vezes chega renovada no timbre e revigorada por uma falta de filtro interpretativo e um excesso de coração que parece pulsar no céu de sua boca. Coisas da vida.