Análise: O samba só teve uma rainha, e ela foi Beth Carvalho


A mulher da zona sul que veio ao mundo para unir morro e asfalto

Por Julio Maria
Atualização:

O samba teve uma rainha apenas e ela foi Beth Carvalho. Com toda reverência a entidades inquestionáveis dessa monarquia, como Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, Beth, para além do que aquele timbre de voz absurdamente único podia fazer, teve uma posição estratégica primordial para que o samba descesse os morros e ganhasse os palácios.

Beth ao lado de Nelson Cavaquinho em 1981 Foto: ARQUIVO ESTADÃO

Assim que surgiu com mais força, no final dos anos 1970, depois de ensaiar um começo mais inclinado à MPB, a garota branca da zona sul do Rio, filha de um ideólogo comunista, não era vista com bons olhos pelas alas menos progressistas das rodas do Rio. Afinal, o que queria a branquinha bem-nascida se infiltrando nas quadras? “Eu nunca senti preconceito”, dizia Beth, protegida por uma verdade espontânea e desconcertante de quem duvidava de seus propósitos. “E o samba não admite mentira, meu filho”, ela me disse em uma das muitas entrevistas marcantes que fizemos.

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O trabalho deu a Beth sua glorificação. Ela só tinha 19 anos quando defendeu Andança no 3.º Festival Internacional da Canção, de 1968, a música de Paulinho Tapajós, Danilo Caymmi e Edmundo Souto, com ajuda vocal do Golden Boys. Saiu com o terceiro lugar, mas colocou a canção em sua história para sempre. Desde então, o samba sugou suas inspirações e lá foi ela, se consolidando disco após disco, um por ano, trazendo de vários autores 1.800 Colinas, Saco de Feijão, Olho por Olho, Coisinha do Pai, Firme e Forte, Vou Festejar, Acreditar, Mas Quem Disse Que Eu te Esqueço.

A “grande madrinha” gostava de dizer os nomes dos afilhados. Eram grupos e sambistas que não acabavam mais, incluindo gente da velha-guarda esquecida que fazia Beth sentir nas veias a missão de resgatá-la com luxo e circunstância. Em 1972, fez isso por Nelson Cavaquinho e descobriu Folhas Secas. Bom para Nelson, sensacional para Beth. 

O produtor daquele disco era Cesar Camargo Mariano, marido de Elis Regina. E então, dá para imaginar o que aconteceu: Cesar levou a fita da música gravada para casa, antes de o disco sair e Elis ouviu. A gaúcha também estava terminando um disco e saiu correndo, mandando Cesar fazer logo o arranjo (o núcleo da banda de Beth também era o mesmo da de Elis). Elis conseguiu chegar na frente e lançou sua Folhas Secas. Beth ficou uma fera e passou mais de dez anos sem falar com Cesar Camargo Mariano. A história, no entanto, ficaria com a gravação de Beth. Foi ela quem imortalizou definitivamente o samba, com o violão tocado pelo próprio Nelson Cavaquinho na gravação.

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Os anos 1980 chegaram e o samba mudou. O partido-alto pós-Era dos Festivais ganhou força e, sobretudo na zona oeste do Rio, uma turma vinha para tremer o chão. Beth passou a ser frequentadora assídua da quadra Cacique de Ramos e, na roda, a sentar-se ao lado de uns meninos cheios de talento que ninguém conhecia. Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Sombrinha, Almir Guineto, Jorge Aragão.

Alguns formariam o grupo Fundo de Quintal, que seria mostrado ao planeta em um disco de 1978 que Beth batalhou em sua gravadora para fazer: De Pé no Chão. Um estouro que venderia mais de 500 mil cópias.

Na última entrevista que fizemos, antes do show que apresentou deitada em uma chaise longue no Tom Brasil, em São Paulo, ano passado, Beth reagiu como uma menina descobrindo o mundo quando o assunto era o timbre de sua voz. “Você acha mesmo ele tão bonito assim?” “Sim, Beth, entrevistar você vale a pena só para ouvir esse timbre.” Nunca valeu tanto a pena quebrar o decoro jornalístico. 

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Foi para comemorar 40 anos de carreira que a sambista subiu ao palco pela última vez, deitada em uma chaise longue. “Não tem o Na Cama com Madonna? Aqui é o Na Cama com Beth Carvalho”, disse. Beth cantando O Show Tem Que Continuar, com a voz vacilante pela dor que deveria sentir naquelas noites, foi a prova maior de amor à música que um artista brasileiro deu sobre um palco.

Seu diafragma comprimido pela posição espremia as notas e era possível ouvir a dor em gemidos. O primeiro samba ela cantou sentada, o segundo seria esforço demais. Beth pediu licença e se deitou para seguir até o fim, com o pé gingando no ritmo.

Aquilo virou uma celebração com uma plateia atônita e colada nas cadeiras. Muita gente chorava. Veio então O Show Tem Que Continuar, o fim, e o instinto falou mais alto. Beth estava se despedindo, ordenando que não parassem de sambar nem para enxugar as lágrimas, e é só isso o que devemos fazer por ela.

O samba teve uma rainha apenas e ela foi Beth Carvalho. Com toda reverência a entidades inquestionáveis dessa monarquia, como Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, Beth, para além do que aquele timbre de voz absurdamente único podia fazer, teve uma posição estratégica primordial para que o samba descesse os morros e ganhasse os palácios.

Beth ao lado de Nelson Cavaquinho em 1981 Foto: ARQUIVO ESTADÃO

Assim que surgiu com mais força, no final dos anos 1970, depois de ensaiar um começo mais inclinado à MPB, a garota branca da zona sul do Rio, filha de um ideólogo comunista, não era vista com bons olhos pelas alas menos progressistas das rodas do Rio. Afinal, o que queria a branquinha bem-nascida se infiltrando nas quadras? “Eu nunca senti preconceito”, dizia Beth, protegida por uma verdade espontânea e desconcertante de quem duvidava de seus propósitos. “E o samba não admite mentira, meu filho”, ela me disse em uma das muitas entrevistas marcantes que fizemos.

O trabalho deu a Beth sua glorificação. Ela só tinha 19 anos quando defendeu Andança no 3.º Festival Internacional da Canção, de 1968, a música de Paulinho Tapajós, Danilo Caymmi e Edmundo Souto, com ajuda vocal do Golden Boys. Saiu com o terceiro lugar, mas colocou a canção em sua história para sempre. Desde então, o samba sugou suas inspirações e lá foi ela, se consolidando disco após disco, um por ano, trazendo de vários autores 1.800 Colinas, Saco de Feijão, Olho por Olho, Coisinha do Pai, Firme e Forte, Vou Festejar, Acreditar, Mas Quem Disse Que Eu te Esqueço.

A “grande madrinha” gostava de dizer os nomes dos afilhados. Eram grupos e sambistas que não acabavam mais, incluindo gente da velha-guarda esquecida que fazia Beth sentir nas veias a missão de resgatá-la com luxo e circunstância. Em 1972, fez isso por Nelson Cavaquinho e descobriu Folhas Secas. Bom para Nelson, sensacional para Beth. 

O produtor daquele disco era Cesar Camargo Mariano, marido de Elis Regina. E então, dá para imaginar o que aconteceu: Cesar levou a fita da música gravada para casa, antes de o disco sair e Elis ouviu. A gaúcha também estava terminando um disco e saiu correndo, mandando Cesar fazer logo o arranjo (o núcleo da banda de Beth também era o mesmo da de Elis). Elis conseguiu chegar na frente e lançou sua Folhas Secas. Beth ficou uma fera e passou mais de dez anos sem falar com Cesar Camargo Mariano. A história, no entanto, ficaria com a gravação de Beth. Foi ela quem imortalizou definitivamente o samba, com o violão tocado pelo próprio Nelson Cavaquinho na gravação.

Os anos 1980 chegaram e o samba mudou. O partido-alto pós-Era dos Festivais ganhou força e, sobretudo na zona oeste do Rio, uma turma vinha para tremer o chão. Beth passou a ser frequentadora assídua da quadra Cacique de Ramos e, na roda, a sentar-se ao lado de uns meninos cheios de talento que ninguém conhecia. Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Sombrinha, Almir Guineto, Jorge Aragão.

Alguns formariam o grupo Fundo de Quintal, que seria mostrado ao planeta em um disco de 1978 que Beth batalhou em sua gravadora para fazer: De Pé no Chão. Um estouro que venderia mais de 500 mil cópias.

Na última entrevista que fizemos, antes do show que apresentou deitada em uma chaise longue no Tom Brasil, em São Paulo, ano passado, Beth reagiu como uma menina descobrindo o mundo quando o assunto era o timbre de sua voz. “Você acha mesmo ele tão bonito assim?” “Sim, Beth, entrevistar você vale a pena só para ouvir esse timbre.” Nunca valeu tanto a pena quebrar o decoro jornalístico. 

Foi para comemorar 40 anos de carreira que a sambista subiu ao palco pela última vez, deitada em uma chaise longue. “Não tem o Na Cama com Madonna? Aqui é o Na Cama com Beth Carvalho”, disse. Beth cantando O Show Tem Que Continuar, com a voz vacilante pela dor que deveria sentir naquelas noites, foi a prova maior de amor à música que um artista brasileiro deu sobre um palco.

Seu diafragma comprimido pela posição espremia as notas e era possível ouvir a dor em gemidos. O primeiro samba ela cantou sentada, o segundo seria esforço demais. Beth pediu licença e se deitou para seguir até o fim, com o pé gingando no ritmo.

Aquilo virou uma celebração com uma plateia atônita e colada nas cadeiras. Muita gente chorava. Veio então O Show Tem Que Continuar, o fim, e o instinto falou mais alto. Beth estava se despedindo, ordenando que não parassem de sambar nem para enxugar as lágrimas, e é só isso o que devemos fazer por ela.

O samba teve uma rainha apenas e ela foi Beth Carvalho. Com toda reverência a entidades inquestionáveis dessa monarquia, como Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, Beth, para além do que aquele timbre de voz absurdamente único podia fazer, teve uma posição estratégica primordial para que o samba descesse os morros e ganhasse os palácios.

Beth ao lado de Nelson Cavaquinho em 1981 Foto: ARQUIVO ESTADÃO

Assim que surgiu com mais força, no final dos anos 1970, depois de ensaiar um começo mais inclinado à MPB, a garota branca da zona sul do Rio, filha de um ideólogo comunista, não era vista com bons olhos pelas alas menos progressistas das rodas do Rio. Afinal, o que queria a branquinha bem-nascida se infiltrando nas quadras? “Eu nunca senti preconceito”, dizia Beth, protegida por uma verdade espontânea e desconcertante de quem duvidava de seus propósitos. “E o samba não admite mentira, meu filho”, ela me disse em uma das muitas entrevistas marcantes que fizemos.

O trabalho deu a Beth sua glorificação. Ela só tinha 19 anos quando defendeu Andança no 3.º Festival Internacional da Canção, de 1968, a música de Paulinho Tapajós, Danilo Caymmi e Edmundo Souto, com ajuda vocal do Golden Boys. Saiu com o terceiro lugar, mas colocou a canção em sua história para sempre. Desde então, o samba sugou suas inspirações e lá foi ela, se consolidando disco após disco, um por ano, trazendo de vários autores 1.800 Colinas, Saco de Feijão, Olho por Olho, Coisinha do Pai, Firme e Forte, Vou Festejar, Acreditar, Mas Quem Disse Que Eu te Esqueço.

A “grande madrinha” gostava de dizer os nomes dos afilhados. Eram grupos e sambistas que não acabavam mais, incluindo gente da velha-guarda esquecida que fazia Beth sentir nas veias a missão de resgatá-la com luxo e circunstância. Em 1972, fez isso por Nelson Cavaquinho e descobriu Folhas Secas. Bom para Nelson, sensacional para Beth. 

O produtor daquele disco era Cesar Camargo Mariano, marido de Elis Regina. E então, dá para imaginar o que aconteceu: Cesar levou a fita da música gravada para casa, antes de o disco sair e Elis ouviu. A gaúcha também estava terminando um disco e saiu correndo, mandando Cesar fazer logo o arranjo (o núcleo da banda de Beth também era o mesmo da de Elis). Elis conseguiu chegar na frente e lançou sua Folhas Secas. Beth ficou uma fera e passou mais de dez anos sem falar com Cesar Camargo Mariano. A história, no entanto, ficaria com a gravação de Beth. Foi ela quem imortalizou definitivamente o samba, com o violão tocado pelo próprio Nelson Cavaquinho na gravação.

Os anos 1980 chegaram e o samba mudou. O partido-alto pós-Era dos Festivais ganhou força e, sobretudo na zona oeste do Rio, uma turma vinha para tremer o chão. Beth passou a ser frequentadora assídua da quadra Cacique de Ramos e, na roda, a sentar-se ao lado de uns meninos cheios de talento que ninguém conhecia. Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Sombrinha, Almir Guineto, Jorge Aragão.

Alguns formariam o grupo Fundo de Quintal, que seria mostrado ao planeta em um disco de 1978 que Beth batalhou em sua gravadora para fazer: De Pé no Chão. Um estouro que venderia mais de 500 mil cópias.

Na última entrevista que fizemos, antes do show que apresentou deitada em uma chaise longue no Tom Brasil, em São Paulo, ano passado, Beth reagiu como uma menina descobrindo o mundo quando o assunto era o timbre de sua voz. “Você acha mesmo ele tão bonito assim?” “Sim, Beth, entrevistar você vale a pena só para ouvir esse timbre.” Nunca valeu tanto a pena quebrar o decoro jornalístico. 

Foi para comemorar 40 anos de carreira que a sambista subiu ao palco pela última vez, deitada em uma chaise longue. “Não tem o Na Cama com Madonna? Aqui é o Na Cama com Beth Carvalho”, disse. Beth cantando O Show Tem Que Continuar, com a voz vacilante pela dor que deveria sentir naquelas noites, foi a prova maior de amor à música que um artista brasileiro deu sobre um palco.

Seu diafragma comprimido pela posição espremia as notas e era possível ouvir a dor em gemidos. O primeiro samba ela cantou sentada, o segundo seria esforço demais. Beth pediu licença e se deitou para seguir até o fim, com o pé gingando no ritmo.

Aquilo virou uma celebração com uma plateia atônita e colada nas cadeiras. Muita gente chorava. Veio então O Show Tem Que Continuar, o fim, e o instinto falou mais alto. Beth estava se despedindo, ordenando que não parassem de sambar nem para enxugar as lágrimas, e é só isso o que devemos fazer por ela.

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