Análise: shows de Buddy Guy no Brasil marcam o fim de uma longa era


Último mestre vivo do blues, Guy colocou a guitarra no centro do gênero para viabilizá-lo no mundo

Por Julio Maria
Atualização:

Ele é o último da espécie. Um homem que cresceu na Louisiana, o centro radioativo da segregação racial dos Estados Unidos, fez sua primeira guitarra com duas cordas amarradas a um pedaço de madeira, mudou-se para tentar a vida em Chicago, serviu um pão com salame para Muddy Waters mas, faminto, acabou ele mesmo comendo o sanduíche. “Vá em frente garoto, não estou com fome”, disse Waters ao menino que logo tocaria guitarra em sua banda. George ‘Buddy’ Guy, 86 anos, está no fim de sua jornada. O último bluesman da geração dos gigantes está fazendo suas últimas apresentações pelo mundo, e o Brasil está no roteiro.

Buddy Guy: tradutor do blues para as audiências jovens  Foto: Avalon Films and Freedom Road Productions

Sua turma era extensa, romântica e selvagem, e fica até difícil imaginar que todos eles, um dia, pisaram o planeta ao mesmo tempo. Albert King (morto em 1992), Albert Collins (morto em 1993), BB King (morto em 2015), Freddie King (morto em 1976), Magic Slim (morto em 2013), Johnny Winter (morto em 2014), Stevie Ray Vaughan (morto em 1990), Koko Taylor (morta em 2009), Etta James (morta em 2012), T-Bone Walker (morto em 1975), Muddy Waters (morto em 1983) e Howlin’ Wolf (morto em 1976). Buddy Guy transpassou por essas duas gerações e, depois da morte de BB King, ficou sozinho. Nenhum outro bluesman com tamanha bagagem, e não vale falar de Robert Cray, pega hoje um avião com sua guitarra para fazer shows fora dos Estados Unidos.

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A última passagem de Buddy Guy pelo Brasil será nos dias 3 e 4 de junho, quando ele fará shows de sua turnê Damn Right Farewell Tour no festival Best of Blues and Rock, que começa no dia 2, na parte externa do Auditório do Ibirapuera. Guy encerra a geração que profissionalizou e expandiu o blues a partir de Chicago, dando ao gênero a mesma dimensão planetária que o rock (um de seus filhos famosos) havia adquirido nos anos 60. Guy pega o empurrão dado ao blues nos anos 70 pelos ingleses, que valorizam o gênero muito mais do que os norte-americanos. Eric Clapton, Rolling Stones, Beatles e The Who os gravam e dão a eles uma vida nova. Só o Led Zeppelin, achando que ninguém perceberia, decide roubá-los – mas aí é outra história.

Mas, dentro desse espectro tão amplo de guitarristas de blues da chamada terceira geração – a primeira foi a do blues ruralista do final do século 19, de Charley Patton e Robert Johnson, e a segunda, a mediadora do estágio rural para o urbano, de T-Bone Walker, Elmore James e Muddy Waters, – qual a importância de Mr Buddy Guy? O que o faz único? O que, além de seu carisma avassalador, o levou a ser condecorado no Kennedy Center por Barack Obama, em 2012, e a ser considerado por Eric Clapton como “o maior dos guitarristas vivos?” Afinal, o quê, se Buddy Guy só sabe tocar uma única escala de cinco míseras notas?

Eric Clapton: "Ele é o maior dos guitarristas vivos"  Foto: REUTERS
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Guy é um dos agentes definitivos da construção do ‘guitarra-centrismo’ do blues. Assim como ninguém percebeu que João Gilberto instaurou o ‘violão-centrismo’ na música brasileira a partir de 1959 – antes dele eram o piano e as orquestras das boates no centro instrumental de tudo o que se tocava ou gravava no país – ninguém se ligou quando os negros resolveram devolver aos brancos a exploração de sua cultura pagando com a mesma moeda. Se o Led Zeppelin, os Yardbirds, Elvis, os Beatles e os Stones ficavam milionários usando o chassi e, em muitos casos, a carroceria do blues, os negros pegavam a alma do rock and roll branco, a guitarra, para se reposicionarem no planeta. Antes disso, o blues era o sopro de New Orleans, os violões das juke joints, a gaita e as vozes, muitas vozes.

Mas Buddy Guy fez mais, e reposicionou a própria guitarra. Ao contrário dos estudiosos ingleses, geniais mas lineares em suas investidas, Guy desenvolveu uma digitação de fluência imprevisível, alternando doçura e fúria, às vezes, em um mesmo compasso. Sua agilidade suja era mal acabada como uma explosão emocional para, pouco tempo depois, seu timbre límpido descer sereno como uma lágrima. Confiante, Guy passou a brincar com a guitarra, fazendo-a chorar, sorrir, tocando com apenas uma das mãos ou rompendo os limites tonais de um ‘bend’. Jimi Hendrix disse ser ele uma de suas influências, mas Guy não se atreveu a chamá-lo de filho: perguntado porque não tocava mais Voodoo Child, de Hendrix, disse, do sagrado lugar de um homem com 80 anos de idade, que apenas Stevie Ray Vaughan poderia fazer aquilo. Agora, os dois estavam mortos.

Christone "Kingfish" Ingram: 'velocista' da guitarra assume seu tempo pós Guy Foto: Rory Doyle
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Ouvir Buddy Guy é se conectar a um tempo que só existe nele. Sem o poder de colocar a plateia nas mãos com um sorriso, os ‘guitarra centristas’ de hoje são bem diferentes. Christone Kingfish Ingram é um garoto que os representa. Ele tem 24 anos, vem do Mississippi, e tem arrastado massas cada vez maiores de pessoas que ainda acreditam no blues. Kingfish, apesar de comparado fisicamente a BB King, é sério, focado e pode tocar centenas de notas por minuto. Não importa o que sua guitarra diz, o importante é que ela diz muitas palavras. Uma única nota de Buddy Guy é capaz de engoli-la.

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Ele é o último da espécie. Um homem que cresceu na Louisiana, o centro radioativo da segregação racial dos Estados Unidos, fez sua primeira guitarra com duas cordas amarradas a um pedaço de madeira, mudou-se para tentar a vida em Chicago, serviu um pão com salame para Muddy Waters mas, faminto, acabou ele mesmo comendo o sanduíche. “Vá em frente garoto, não estou com fome”, disse Waters ao menino que logo tocaria guitarra em sua banda. George ‘Buddy’ Guy, 86 anos, está no fim de sua jornada. O último bluesman da geração dos gigantes está fazendo suas últimas apresentações pelo mundo, e o Brasil está no roteiro.

Buddy Guy: tradutor do blues para as audiências jovens  Foto: Avalon Films and Freedom Road Productions

Sua turma era extensa, romântica e selvagem, e fica até difícil imaginar que todos eles, um dia, pisaram o planeta ao mesmo tempo. Albert King (morto em 1992), Albert Collins (morto em 1993), BB King (morto em 2015), Freddie King (morto em 1976), Magic Slim (morto em 2013), Johnny Winter (morto em 2014), Stevie Ray Vaughan (morto em 1990), Koko Taylor (morta em 2009), Etta James (morta em 2012), T-Bone Walker (morto em 1975), Muddy Waters (morto em 1983) e Howlin’ Wolf (morto em 1976). Buddy Guy transpassou por essas duas gerações e, depois da morte de BB King, ficou sozinho. Nenhum outro bluesman com tamanha bagagem, e não vale falar de Robert Cray, pega hoje um avião com sua guitarra para fazer shows fora dos Estados Unidos.

A última passagem de Buddy Guy pelo Brasil será nos dias 3 e 4 de junho, quando ele fará shows de sua turnê Damn Right Farewell Tour no festival Best of Blues and Rock, que começa no dia 2, na parte externa do Auditório do Ibirapuera. Guy encerra a geração que profissionalizou e expandiu o blues a partir de Chicago, dando ao gênero a mesma dimensão planetária que o rock (um de seus filhos famosos) havia adquirido nos anos 60. Guy pega o empurrão dado ao blues nos anos 70 pelos ingleses, que valorizam o gênero muito mais do que os norte-americanos. Eric Clapton, Rolling Stones, Beatles e The Who os gravam e dão a eles uma vida nova. Só o Led Zeppelin, achando que ninguém perceberia, decide roubá-los – mas aí é outra história.

Mas, dentro desse espectro tão amplo de guitarristas de blues da chamada terceira geração – a primeira foi a do blues ruralista do final do século 19, de Charley Patton e Robert Johnson, e a segunda, a mediadora do estágio rural para o urbano, de T-Bone Walker, Elmore James e Muddy Waters, – qual a importância de Mr Buddy Guy? O que o faz único? O que, além de seu carisma avassalador, o levou a ser condecorado no Kennedy Center por Barack Obama, em 2012, e a ser considerado por Eric Clapton como “o maior dos guitarristas vivos?” Afinal, o quê, se Buddy Guy só sabe tocar uma única escala de cinco míseras notas?

Eric Clapton: "Ele é o maior dos guitarristas vivos"  Foto: REUTERS

Guy é um dos agentes definitivos da construção do ‘guitarra-centrismo’ do blues. Assim como ninguém percebeu que João Gilberto instaurou o ‘violão-centrismo’ na música brasileira a partir de 1959 – antes dele eram o piano e as orquestras das boates no centro instrumental de tudo o que se tocava ou gravava no país – ninguém se ligou quando os negros resolveram devolver aos brancos a exploração de sua cultura pagando com a mesma moeda. Se o Led Zeppelin, os Yardbirds, Elvis, os Beatles e os Stones ficavam milionários usando o chassi e, em muitos casos, a carroceria do blues, os negros pegavam a alma do rock and roll branco, a guitarra, para se reposicionarem no planeta. Antes disso, o blues era o sopro de New Orleans, os violões das juke joints, a gaita e as vozes, muitas vozes.

Mas Buddy Guy fez mais, e reposicionou a própria guitarra. Ao contrário dos estudiosos ingleses, geniais mas lineares em suas investidas, Guy desenvolveu uma digitação de fluência imprevisível, alternando doçura e fúria, às vezes, em um mesmo compasso. Sua agilidade suja era mal acabada como uma explosão emocional para, pouco tempo depois, seu timbre límpido descer sereno como uma lágrima. Confiante, Guy passou a brincar com a guitarra, fazendo-a chorar, sorrir, tocando com apenas uma das mãos ou rompendo os limites tonais de um ‘bend’. Jimi Hendrix disse ser ele uma de suas influências, mas Guy não se atreveu a chamá-lo de filho: perguntado porque não tocava mais Voodoo Child, de Hendrix, disse, do sagrado lugar de um homem com 80 anos de idade, que apenas Stevie Ray Vaughan poderia fazer aquilo. Agora, os dois estavam mortos.

Christone "Kingfish" Ingram: 'velocista' da guitarra assume seu tempo pós Guy Foto: Rory Doyle

Ouvir Buddy Guy é se conectar a um tempo que só existe nele. Sem o poder de colocar a plateia nas mãos com um sorriso, os ‘guitarra centristas’ de hoje são bem diferentes. Christone Kingfish Ingram é um garoto que os representa. Ele tem 24 anos, vem do Mississippi, e tem arrastado massas cada vez maiores de pessoas que ainda acreditam no blues. Kingfish, apesar de comparado fisicamente a BB King, é sério, focado e pode tocar centenas de notas por minuto. Não importa o que sua guitarra diz, o importante é que ela diz muitas palavras. Uma única nota de Buddy Guy é capaz de engoli-la.

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Buddy Guy: tradutor do blues para as audiências jovens  Foto: Avalon Films and Freedom Road Productions

Sua turma era extensa, romântica e selvagem, e fica até difícil imaginar que todos eles, um dia, pisaram o planeta ao mesmo tempo. Albert King (morto em 1992), Albert Collins (morto em 1993), BB King (morto em 2015), Freddie King (morto em 1976), Magic Slim (morto em 2013), Johnny Winter (morto em 2014), Stevie Ray Vaughan (morto em 1990), Koko Taylor (morta em 2009), Etta James (morta em 2012), T-Bone Walker (morto em 1975), Muddy Waters (morto em 1983) e Howlin’ Wolf (morto em 1976). Buddy Guy transpassou por essas duas gerações e, depois da morte de BB King, ficou sozinho. Nenhum outro bluesman com tamanha bagagem, e não vale falar de Robert Cray, pega hoje um avião com sua guitarra para fazer shows fora dos Estados Unidos.

A última passagem de Buddy Guy pelo Brasil será nos dias 3 e 4 de junho, quando ele fará shows de sua turnê Damn Right Farewell Tour no festival Best of Blues and Rock, que começa no dia 2, na parte externa do Auditório do Ibirapuera. Guy encerra a geração que profissionalizou e expandiu o blues a partir de Chicago, dando ao gênero a mesma dimensão planetária que o rock (um de seus filhos famosos) havia adquirido nos anos 60. Guy pega o empurrão dado ao blues nos anos 70 pelos ingleses, que valorizam o gênero muito mais do que os norte-americanos. Eric Clapton, Rolling Stones, Beatles e The Who os gravam e dão a eles uma vida nova. Só o Led Zeppelin, achando que ninguém perceberia, decide roubá-los – mas aí é outra história.

Mas, dentro desse espectro tão amplo de guitarristas de blues da chamada terceira geração – a primeira foi a do blues ruralista do final do século 19, de Charley Patton e Robert Johnson, e a segunda, a mediadora do estágio rural para o urbano, de T-Bone Walker, Elmore James e Muddy Waters, – qual a importância de Mr Buddy Guy? O que o faz único? O que, além de seu carisma avassalador, o levou a ser condecorado no Kennedy Center por Barack Obama, em 2012, e a ser considerado por Eric Clapton como “o maior dos guitarristas vivos?” Afinal, o quê, se Buddy Guy só sabe tocar uma única escala de cinco míseras notas?

Eric Clapton: "Ele é o maior dos guitarristas vivos"  Foto: REUTERS

Guy é um dos agentes definitivos da construção do ‘guitarra-centrismo’ do blues. Assim como ninguém percebeu que João Gilberto instaurou o ‘violão-centrismo’ na música brasileira a partir de 1959 – antes dele eram o piano e as orquestras das boates no centro instrumental de tudo o que se tocava ou gravava no país – ninguém se ligou quando os negros resolveram devolver aos brancos a exploração de sua cultura pagando com a mesma moeda. Se o Led Zeppelin, os Yardbirds, Elvis, os Beatles e os Stones ficavam milionários usando o chassi e, em muitos casos, a carroceria do blues, os negros pegavam a alma do rock and roll branco, a guitarra, para se reposicionarem no planeta. Antes disso, o blues era o sopro de New Orleans, os violões das juke joints, a gaita e as vozes, muitas vozes.

Mas Buddy Guy fez mais, e reposicionou a própria guitarra. Ao contrário dos estudiosos ingleses, geniais mas lineares em suas investidas, Guy desenvolveu uma digitação de fluência imprevisível, alternando doçura e fúria, às vezes, em um mesmo compasso. Sua agilidade suja era mal acabada como uma explosão emocional para, pouco tempo depois, seu timbre límpido descer sereno como uma lágrima. Confiante, Guy passou a brincar com a guitarra, fazendo-a chorar, sorrir, tocando com apenas uma das mãos ou rompendo os limites tonais de um ‘bend’. Jimi Hendrix disse ser ele uma de suas influências, mas Guy não se atreveu a chamá-lo de filho: perguntado porque não tocava mais Voodoo Child, de Hendrix, disse, do sagrado lugar de um homem com 80 anos de idade, que apenas Stevie Ray Vaughan poderia fazer aquilo. Agora, os dois estavam mortos.

Christone "Kingfish" Ingram: 'velocista' da guitarra assume seu tempo pós Guy Foto: Rory Doyle

Ouvir Buddy Guy é se conectar a um tempo que só existe nele. Sem o poder de colocar a plateia nas mãos com um sorriso, os ‘guitarra centristas’ de hoje são bem diferentes. Christone Kingfish Ingram é um garoto que os representa. Ele tem 24 anos, vem do Mississippi, e tem arrastado massas cada vez maiores de pessoas que ainda acreditam no blues. Kingfish, apesar de comparado fisicamente a BB King, é sério, focado e pode tocar centenas de notas por minuto. Não importa o que sua guitarra diz, o importante é que ela diz muitas palavras. Uma única nota de Buddy Guy é capaz de engoli-la.

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Ele é o último da espécie. Um homem que cresceu na Louisiana, o centro radioativo da segregação racial dos Estados Unidos, fez sua primeira guitarra com duas cordas amarradas a um pedaço de madeira, mudou-se para tentar a vida em Chicago, serviu um pão com salame para Muddy Waters mas, faminto, acabou ele mesmo comendo o sanduíche. “Vá em frente garoto, não estou com fome”, disse Waters ao menino que logo tocaria guitarra em sua banda. George ‘Buddy’ Guy, 86 anos, está no fim de sua jornada. O último bluesman da geração dos gigantes está fazendo suas últimas apresentações pelo mundo, e o Brasil está no roteiro.

Buddy Guy: tradutor do blues para as audiências jovens  Foto: Avalon Films and Freedom Road Productions

Sua turma era extensa, romântica e selvagem, e fica até difícil imaginar que todos eles, um dia, pisaram o planeta ao mesmo tempo. Albert King (morto em 1992), Albert Collins (morto em 1993), BB King (morto em 2015), Freddie King (morto em 1976), Magic Slim (morto em 2013), Johnny Winter (morto em 2014), Stevie Ray Vaughan (morto em 1990), Koko Taylor (morta em 2009), Etta James (morta em 2012), T-Bone Walker (morto em 1975), Muddy Waters (morto em 1983) e Howlin’ Wolf (morto em 1976). Buddy Guy transpassou por essas duas gerações e, depois da morte de BB King, ficou sozinho. Nenhum outro bluesman com tamanha bagagem, e não vale falar de Robert Cray, pega hoje um avião com sua guitarra para fazer shows fora dos Estados Unidos.

A última passagem de Buddy Guy pelo Brasil será nos dias 3 e 4 de junho, quando ele fará shows de sua turnê Damn Right Farewell Tour no festival Best of Blues and Rock, que começa no dia 2, na parte externa do Auditório do Ibirapuera. Guy encerra a geração que profissionalizou e expandiu o blues a partir de Chicago, dando ao gênero a mesma dimensão planetária que o rock (um de seus filhos famosos) havia adquirido nos anos 60. Guy pega o empurrão dado ao blues nos anos 70 pelos ingleses, que valorizam o gênero muito mais do que os norte-americanos. Eric Clapton, Rolling Stones, Beatles e The Who os gravam e dão a eles uma vida nova. Só o Led Zeppelin, achando que ninguém perceberia, decide roubá-los – mas aí é outra história.

Mas, dentro desse espectro tão amplo de guitarristas de blues da chamada terceira geração – a primeira foi a do blues ruralista do final do século 19, de Charley Patton e Robert Johnson, e a segunda, a mediadora do estágio rural para o urbano, de T-Bone Walker, Elmore James e Muddy Waters, – qual a importância de Mr Buddy Guy? O que o faz único? O que, além de seu carisma avassalador, o levou a ser condecorado no Kennedy Center por Barack Obama, em 2012, e a ser considerado por Eric Clapton como “o maior dos guitarristas vivos?” Afinal, o quê, se Buddy Guy só sabe tocar uma única escala de cinco míseras notas?

Eric Clapton: "Ele é o maior dos guitarristas vivos"  Foto: REUTERS

Guy é um dos agentes definitivos da construção do ‘guitarra-centrismo’ do blues. Assim como ninguém percebeu que João Gilberto instaurou o ‘violão-centrismo’ na música brasileira a partir de 1959 – antes dele eram o piano e as orquestras das boates no centro instrumental de tudo o que se tocava ou gravava no país – ninguém se ligou quando os negros resolveram devolver aos brancos a exploração de sua cultura pagando com a mesma moeda. Se o Led Zeppelin, os Yardbirds, Elvis, os Beatles e os Stones ficavam milionários usando o chassi e, em muitos casos, a carroceria do blues, os negros pegavam a alma do rock and roll branco, a guitarra, para se reposicionarem no planeta. Antes disso, o blues era o sopro de New Orleans, os violões das juke joints, a gaita e as vozes, muitas vozes.

Mas Buddy Guy fez mais, e reposicionou a própria guitarra. Ao contrário dos estudiosos ingleses, geniais mas lineares em suas investidas, Guy desenvolveu uma digitação de fluência imprevisível, alternando doçura e fúria, às vezes, em um mesmo compasso. Sua agilidade suja era mal acabada como uma explosão emocional para, pouco tempo depois, seu timbre límpido descer sereno como uma lágrima. Confiante, Guy passou a brincar com a guitarra, fazendo-a chorar, sorrir, tocando com apenas uma das mãos ou rompendo os limites tonais de um ‘bend’. Jimi Hendrix disse ser ele uma de suas influências, mas Guy não se atreveu a chamá-lo de filho: perguntado porque não tocava mais Voodoo Child, de Hendrix, disse, do sagrado lugar de um homem com 80 anos de idade, que apenas Stevie Ray Vaughan poderia fazer aquilo. Agora, os dois estavam mortos.

Christone "Kingfish" Ingram: 'velocista' da guitarra assume seu tempo pós Guy Foto: Rory Doyle

Ouvir Buddy Guy é se conectar a um tempo que só existe nele. Sem o poder de colocar a plateia nas mãos com um sorriso, os ‘guitarra centristas’ de hoje são bem diferentes. Christone Kingfish Ingram é um garoto que os representa. Ele tem 24 anos, vem do Mississippi, e tem arrastado massas cada vez maiores de pessoas que ainda acreditam no blues. Kingfish, apesar de comparado fisicamente a BB King, é sério, focado e pode tocar centenas de notas por minuto. Não importa o que sua guitarra diz, o importante é que ela diz muitas palavras. Uma única nota de Buddy Guy é capaz de engoli-la.

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Ele é o último da espécie. Um homem que cresceu na Louisiana, o centro radioativo da segregação racial dos Estados Unidos, fez sua primeira guitarra com duas cordas amarradas a um pedaço de madeira, mudou-se para tentar a vida em Chicago, serviu um pão com salame para Muddy Waters mas, faminto, acabou ele mesmo comendo o sanduíche. “Vá em frente garoto, não estou com fome”, disse Waters ao menino que logo tocaria guitarra em sua banda. George ‘Buddy’ Guy, 86 anos, está no fim de sua jornada. O último bluesman da geração dos gigantes está fazendo suas últimas apresentações pelo mundo, e o Brasil está no roteiro.

Buddy Guy: tradutor do blues para as audiências jovens  Foto: Avalon Films and Freedom Road Productions

Sua turma era extensa, romântica e selvagem, e fica até difícil imaginar que todos eles, um dia, pisaram o planeta ao mesmo tempo. Albert King (morto em 1992), Albert Collins (morto em 1993), BB King (morto em 2015), Freddie King (morto em 1976), Magic Slim (morto em 2013), Johnny Winter (morto em 2014), Stevie Ray Vaughan (morto em 1990), Koko Taylor (morta em 2009), Etta James (morta em 2012), T-Bone Walker (morto em 1975), Muddy Waters (morto em 1983) e Howlin’ Wolf (morto em 1976). Buddy Guy transpassou por essas duas gerações e, depois da morte de BB King, ficou sozinho. Nenhum outro bluesman com tamanha bagagem, e não vale falar de Robert Cray, pega hoje um avião com sua guitarra para fazer shows fora dos Estados Unidos.

A última passagem de Buddy Guy pelo Brasil será nos dias 3 e 4 de junho, quando ele fará shows de sua turnê Damn Right Farewell Tour no festival Best of Blues and Rock, que começa no dia 2, na parte externa do Auditório do Ibirapuera. Guy encerra a geração que profissionalizou e expandiu o blues a partir de Chicago, dando ao gênero a mesma dimensão planetária que o rock (um de seus filhos famosos) havia adquirido nos anos 60. Guy pega o empurrão dado ao blues nos anos 70 pelos ingleses, que valorizam o gênero muito mais do que os norte-americanos. Eric Clapton, Rolling Stones, Beatles e The Who os gravam e dão a eles uma vida nova. Só o Led Zeppelin, achando que ninguém perceberia, decide roubá-los – mas aí é outra história.

Mas, dentro desse espectro tão amplo de guitarristas de blues da chamada terceira geração – a primeira foi a do blues ruralista do final do século 19, de Charley Patton e Robert Johnson, e a segunda, a mediadora do estágio rural para o urbano, de T-Bone Walker, Elmore James e Muddy Waters, – qual a importância de Mr Buddy Guy? O que o faz único? O que, além de seu carisma avassalador, o levou a ser condecorado no Kennedy Center por Barack Obama, em 2012, e a ser considerado por Eric Clapton como “o maior dos guitarristas vivos?” Afinal, o quê, se Buddy Guy só sabe tocar uma única escala de cinco míseras notas?

Eric Clapton: "Ele é o maior dos guitarristas vivos"  Foto: REUTERS

Guy é um dos agentes definitivos da construção do ‘guitarra-centrismo’ do blues. Assim como ninguém percebeu que João Gilberto instaurou o ‘violão-centrismo’ na música brasileira a partir de 1959 – antes dele eram o piano e as orquestras das boates no centro instrumental de tudo o que se tocava ou gravava no país – ninguém se ligou quando os negros resolveram devolver aos brancos a exploração de sua cultura pagando com a mesma moeda. Se o Led Zeppelin, os Yardbirds, Elvis, os Beatles e os Stones ficavam milionários usando o chassi e, em muitos casos, a carroceria do blues, os negros pegavam a alma do rock and roll branco, a guitarra, para se reposicionarem no planeta. Antes disso, o blues era o sopro de New Orleans, os violões das juke joints, a gaita e as vozes, muitas vozes.

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