Titãs sairão de turnê reavaliados como a maior banda do rock nacional; leia análise


Chave do sucesso de temporada milionária é mais do que musical, mas a mesma tecnologia que engrandece cobra seu preço: o que era bom fica estupendo, o que era ruim fica pior

Por Julio Maria
Atualização:

É bem mais do que um show aquilo que aconteceu e voltará a acontecer até domingo, 18, sobre o palco do Allianz Parque, diante de 50 mil pessoas. E talvez, antes de falar de sons, enumerar alguns itens extra musicais ajude a compreender o que é que tem feito a reunião dos Titãs, 30 anos depois do início da diáspora ainda em curso, ser a maior turnê brasileira em muitos anos. Afeto e reconexões com o passado são só a superfície. Os Titãs sairão dos palcos encerrando uma discussão: são eles o maior grupo de seu tempo.

Titãs ao vivo Foto: Julio Maria

A atual turnê dos Titãs em dimensões que os próprios nunca tiveram em suas carreiras – estádios lotados com 50 mil pessoas, um após o outro, são novidade até para Nando Reis, a maior conversão pop do grupo – é uma pedra rara na história da música de qualquer lugar. E tudo conta para que a investida que deve estar rendendo muito dinheiro, e é justo que esteja, coloque, enfim, um grupo brasileiro nos padrões monumentais de um Coldplay.

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Vale um pouco de flashback: no final dos anos 70, uma turma de amigos se junta para fazer um som no Colégio Equipe, em São Paulo (o filtro social que explica a padronização cromática da banda). A brincadeira dá certo e, em 1984, eles lançam um primeiro álbum com Sonífera Ilha, algo que os leva ao Chacrinha. Já nascem estourados. Surgem a tempo de golpearem a ditadura com sarcasmo, mas se inquietam a cada álbum, como se o grito ainda não tivesse saído. Criam um punk pop concretista sólido e disruptivo, nas falas e no som, até que, enfim, chegam a Cabeça Dinossauro, uma coisa, um troço, um assombro aos jovens classe média católicos de 1986 (quase todos), de rebeldia até ali embalada apenas docemente pela Legião Urbana. Cantar Eduardo e Mônica e mesmo Que País é Esse no ano seguinte era fácil. Difícil era cantar Igreja com medo de ir para o inferno.

Mas aí o tempo passa e esse grupo começa a se dissolver. Sai Arnaldo Antunes em 1992; Marcelo Fromer morre depois de ser atropelado por uma moto em 2001; Nando Reis toma seu rumo folk em 2002; Charles Gavin vaza em 2010; e Paulo Miklos, já um ator, se desliga em 2016. O fato de não ter adotado nenhum regime centralizador, com um ou dois líderes à frente, ajuda os remanescentes a seguirem mesmo desidratados: Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Bellotto são os Titãs de hoje (e, pensando aqui, deverá ficar meio estranho vê-los em trio depois que a turnê acabar).

E então, o que primeiro vemos sobre o palco, e por isso a abertura do show é tão poderosa, é a reconexão de pessoas que conhecemos em bloco mas que aprendemos a gostar – de uns mais, de outros menos – individualmente. Indo às audiências mais de superfície: quem não ouviu os discos solo de Arnaldo Antunes (ele iria querer morrer com isso, mas é fato) o viu com os Tribalistas; uma ou duas gerações cresceram com canções de Nando cantadas por ele, Samuel Rosa ou Cassia Eller; o mais cativante de todos, Paulo Miklos, se tornou também um grande ator; e Gavin se encontrou sobretudo como um guardião de boas memórias da música brasileira. Nenhum outro grupo rendeu tanto.

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Mas há ainda o show, esse negócio resultante de pessoas que devam cantar e tocar razoavelmente bem para justificarem a expectativa de outras muitas dispostas a responder a isso pulando por duas horas. Não que ali fosse o mais importante, mas o mesmo reencontro que produz unidade cria também divisão porque propicia a comparação. Mais do que nos anos 80 ou 90, sabemos bem quem é quem e os vimos e ouvimos com uma riqueza de detalhes processados digitalmente que nunca pudemos experimentar. O que era bom fica estupendo, o que era ruim fica pior.

Sérgio Britto canta bem Go Back, mas, infelizmente, esse não é seu normal. Ele é um dos que mais interagem com a plateia, mas isso o expõe a deslizes de impulso, como puxar coro fora do tempo em uma canção ou mandar as pessoas tirarem o pé do chão no refrão de Epitáfio, um instante em que elas enxugam as lágrimas e só devem querer mesmo um abraço. Oposto a isso, Miklos tem um palco perfeito, procura as câmeras, fala sem clichês e canta absurdamente bem até nas alturas de Bichos Escrotos. O som do baixo de Nando Reis não vinha com qualidade e sua voz não parecia ter a mesma pressão de outros tempos. Sem os Titãs ele se agiganta. No grupo, apesar de Família e Marvin serem deliciosas e Igreja e Nome aos Bois serem cortantes, não parece ter o mesmo tamanho.

Arnaldo Antunes tem magnetismo infinito e, vê-lo ali, o primeiro a sair do grupo para tentar vida própria, talvez provoque o efeito mais redentor. Houve um tempo em que falar sobre Titãs com ele era quase proibido. “Isso é pergunta de jornalista que não tem pergunta”, respondeu uma vez. Hoje, parece divertir-se muito e continua eletrocutando-se com Lugar Nenhum, Comida e Televisão. Sua presença é forte, mas algo parece dizer também passageira – uma espécie de garantia moral de que esta não será uma turnê sem fim.

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Mas é Branco Mello a síntese de toda essa história. Ele mesmo conta para a plateia sobre o câncer que o fez ser submetido a uma grande cirurgia na garganta. É evidente que não seja o mesmo e poucos sabem em que estágio seu tratamento se encontra – algo que, ali, não importa mais. Sua voz – um sussurro gritado ou um grito sussurrado, retirado de algum lugar do peito e que talvez não existisse mais em outra pessoa – só pode vir de uma vontade irrefreável de estar vivo. Ele poderia ser poupado de tanto esforço, mas toca contrabaixo e canta uma, duas, três músicas todas as noites, além de fazer todos os backings sem playback, e dança sem parar com as pernas abertas e os braços serpenteados. Como se estivesse entre as 50 mil pessoas da plateia, parece querer justificar algo com urgência enquanto assiste às melhores imagens de sua vida.

É bem mais do que um show aquilo que aconteceu e voltará a acontecer até domingo, 18, sobre o palco do Allianz Parque, diante de 50 mil pessoas. E talvez, antes de falar de sons, enumerar alguns itens extra musicais ajude a compreender o que é que tem feito a reunião dos Titãs, 30 anos depois do início da diáspora ainda em curso, ser a maior turnê brasileira em muitos anos. Afeto e reconexões com o passado são só a superfície. Os Titãs sairão dos palcos encerrando uma discussão: são eles o maior grupo de seu tempo.

Titãs ao vivo Foto: Julio Maria

A atual turnê dos Titãs em dimensões que os próprios nunca tiveram em suas carreiras – estádios lotados com 50 mil pessoas, um após o outro, são novidade até para Nando Reis, a maior conversão pop do grupo – é uma pedra rara na história da música de qualquer lugar. E tudo conta para que a investida que deve estar rendendo muito dinheiro, e é justo que esteja, coloque, enfim, um grupo brasileiro nos padrões monumentais de um Coldplay.

Vale um pouco de flashback: no final dos anos 70, uma turma de amigos se junta para fazer um som no Colégio Equipe, em São Paulo (o filtro social que explica a padronização cromática da banda). A brincadeira dá certo e, em 1984, eles lançam um primeiro álbum com Sonífera Ilha, algo que os leva ao Chacrinha. Já nascem estourados. Surgem a tempo de golpearem a ditadura com sarcasmo, mas se inquietam a cada álbum, como se o grito ainda não tivesse saído. Criam um punk pop concretista sólido e disruptivo, nas falas e no som, até que, enfim, chegam a Cabeça Dinossauro, uma coisa, um troço, um assombro aos jovens classe média católicos de 1986 (quase todos), de rebeldia até ali embalada apenas docemente pela Legião Urbana. Cantar Eduardo e Mônica e mesmo Que País é Esse no ano seguinte era fácil. Difícil era cantar Igreja com medo de ir para o inferno.

Mas aí o tempo passa e esse grupo começa a se dissolver. Sai Arnaldo Antunes em 1992; Marcelo Fromer morre depois de ser atropelado por uma moto em 2001; Nando Reis toma seu rumo folk em 2002; Charles Gavin vaza em 2010; e Paulo Miklos, já um ator, se desliga em 2016. O fato de não ter adotado nenhum regime centralizador, com um ou dois líderes à frente, ajuda os remanescentes a seguirem mesmo desidratados: Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Bellotto são os Titãs de hoje (e, pensando aqui, deverá ficar meio estranho vê-los em trio depois que a turnê acabar).

E então, o que primeiro vemos sobre o palco, e por isso a abertura do show é tão poderosa, é a reconexão de pessoas que conhecemos em bloco mas que aprendemos a gostar – de uns mais, de outros menos – individualmente. Indo às audiências mais de superfície: quem não ouviu os discos solo de Arnaldo Antunes (ele iria querer morrer com isso, mas é fato) o viu com os Tribalistas; uma ou duas gerações cresceram com canções de Nando cantadas por ele, Samuel Rosa ou Cassia Eller; o mais cativante de todos, Paulo Miklos, se tornou também um grande ator; e Gavin se encontrou sobretudo como um guardião de boas memórias da música brasileira. Nenhum outro grupo rendeu tanto.

Mas há ainda o show, esse negócio resultante de pessoas que devam cantar e tocar razoavelmente bem para justificarem a expectativa de outras muitas dispostas a responder a isso pulando por duas horas. Não que ali fosse o mais importante, mas o mesmo reencontro que produz unidade cria também divisão porque propicia a comparação. Mais do que nos anos 80 ou 90, sabemos bem quem é quem e os vimos e ouvimos com uma riqueza de detalhes processados digitalmente que nunca pudemos experimentar. O que era bom fica estupendo, o que era ruim fica pior.

Sérgio Britto canta bem Go Back, mas, infelizmente, esse não é seu normal. Ele é um dos que mais interagem com a plateia, mas isso o expõe a deslizes de impulso, como puxar coro fora do tempo em uma canção ou mandar as pessoas tirarem o pé do chão no refrão de Epitáfio, um instante em que elas enxugam as lágrimas e só devem querer mesmo um abraço. Oposto a isso, Miklos tem um palco perfeito, procura as câmeras, fala sem clichês e canta absurdamente bem até nas alturas de Bichos Escrotos. O som do baixo de Nando Reis não vinha com qualidade e sua voz não parecia ter a mesma pressão de outros tempos. Sem os Titãs ele se agiganta. No grupo, apesar de Família e Marvin serem deliciosas e Igreja e Nome aos Bois serem cortantes, não parece ter o mesmo tamanho.

Arnaldo Antunes tem magnetismo infinito e, vê-lo ali, o primeiro a sair do grupo para tentar vida própria, talvez provoque o efeito mais redentor. Houve um tempo em que falar sobre Titãs com ele era quase proibido. “Isso é pergunta de jornalista que não tem pergunta”, respondeu uma vez. Hoje, parece divertir-se muito e continua eletrocutando-se com Lugar Nenhum, Comida e Televisão. Sua presença é forte, mas algo parece dizer também passageira – uma espécie de garantia moral de que esta não será uma turnê sem fim.

Mas é Branco Mello a síntese de toda essa história. Ele mesmo conta para a plateia sobre o câncer que o fez ser submetido a uma grande cirurgia na garganta. É evidente que não seja o mesmo e poucos sabem em que estágio seu tratamento se encontra – algo que, ali, não importa mais. Sua voz – um sussurro gritado ou um grito sussurrado, retirado de algum lugar do peito e que talvez não existisse mais em outra pessoa – só pode vir de uma vontade irrefreável de estar vivo. Ele poderia ser poupado de tanto esforço, mas toca contrabaixo e canta uma, duas, três músicas todas as noites, além de fazer todos os backings sem playback, e dança sem parar com as pernas abertas e os braços serpenteados. Como se estivesse entre as 50 mil pessoas da plateia, parece querer justificar algo com urgência enquanto assiste às melhores imagens de sua vida.

É bem mais do que um show aquilo que aconteceu e voltará a acontecer até domingo, 18, sobre o palco do Allianz Parque, diante de 50 mil pessoas. E talvez, antes de falar de sons, enumerar alguns itens extra musicais ajude a compreender o que é que tem feito a reunião dos Titãs, 30 anos depois do início da diáspora ainda em curso, ser a maior turnê brasileira em muitos anos. Afeto e reconexões com o passado são só a superfície. Os Titãs sairão dos palcos encerrando uma discussão: são eles o maior grupo de seu tempo.

Titãs ao vivo Foto: Julio Maria

A atual turnê dos Titãs em dimensões que os próprios nunca tiveram em suas carreiras – estádios lotados com 50 mil pessoas, um após o outro, são novidade até para Nando Reis, a maior conversão pop do grupo – é uma pedra rara na história da música de qualquer lugar. E tudo conta para que a investida que deve estar rendendo muito dinheiro, e é justo que esteja, coloque, enfim, um grupo brasileiro nos padrões monumentais de um Coldplay.

Vale um pouco de flashback: no final dos anos 70, uma turma de amigos se junta para fazer um som no Colégio Equipe, em São Paulo (o filtro social que explica a padronização cromática da banda). A brincadeira dá certo e, em 1984, eles lançam um primeiro álbum com Sonífera Ilha, algo que os leva ao Chacrinha. Já nascem estourados. Surgem a tempo de golpearem a ditadura com sarcasmo, mas se inquietam a cada álbum, como se o grito ainda não tivesse saído. Criam um punk pop concretista sólido e disruptivo, nas falas e no som, até que, enfim, chegam a Cabeça Dinossauro, uma coisa, um troço, um assombro aos jovens classe média católicos de 1986 (quase todos), de rebeldia até ali embalada apenas docemente pela Legião Urbana. Cantar Eduardo e Mônica e mesmo Que País é Esse no ano seguinte era fácil. Difícil era cantar Igreja com medo de ir para o inferno.

Mas aí o tempo passa e esse grupo começa a se dissolver. Sai Arnaldo Antunes em 1992; Marcelo Fromer morre depois de ser atropelado por uma moto em 2001; Nando Reis toma seu rumo folk em 2002; Charles Gavin vaza em 2010; e Paulo Miklos, já um ator, se desliga em 2016. O fato de não ter adotado nenhum regime centralizador, com um ou dois líderes à frente, ajuda os remanescentes a seguirem mesmo desidratados: Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Bellotto são os Titãs de hoje (e, pensando aqui, deverá ficar meio estranho vê-los em trio depois que a turnê acabar).

E então, o que primeiro vemos sobre o palco, e por isso a abertura do show é tão poderosa, é a reconexão de pessoas que conhecemos em bloco mas que aprendemos a gostar – de uns mais, de outros menos – individualmente. Indo às audiências mais de superfície: quem não ouviu os discos solo de Arnaldo Antunes (ele iria querer morrer com isso, mas é fato) o viu com os Tribalistas; uma ou duas gerações cresceram com canções de Nando cantadas por ele, Samuel Rosa ou Cassia Eller; o mais cativante de todos, Paulo Miklos, se tornou também um grande ator; e Gavin se encontrou sobretudo como um guardião de boas memórias da música brasileira. Nenhum outro grupo rendeu tanto.

Mas há ainda o show, esse negócio resultante de pessoas que devam cantar e tocar razoavelmente bem para justificarem a expectativa de outras muitas dispostas a responder a isso pulando por duas horas. Não que ali fosse o mais importante, mas o mesmo reencontro que produz unidade cria também divisão porque propicia a comparação. Mais do que nos anos 80 ou 90, sabemos bem quem é quem e os vimos e ouvimos com uma riqueza de detalhes processados digitalmente que nunca pudemos experimentar. O que era bom fica estupendo, o que era ruim fica pior.

Sérgio Britto canta bem Go Back, mas, infelizmente, esse não é seu normal. Ele é um dos que mais interagem com a plateia, mas isso o expõe a deslizes de impulso, como puxar coro fora do tempo em uma canção ou mandar as pessoas tirarem o pé do chão no refrão de Epitáfio, um instante em que elas enxugam as lágrimas e só devem querer mesmo um abraço. Oposto a isso, Miklos tem um palco perfeito, procura as câmeras, fala sem clichês e canta absurdamente bem até nas alturas de Bichos Escrotos. O som do baixo de Nando Reis não vinha com qualidade e sua voz não parecia ter a mesma pressão de outros tempos. Sem os Titãs ele se agiganta. No grupo, apesar de Família e Marvin serem deliciosas e Igreja e Nome aos Bois serem cortantes, não parece ter o mesmo tamanho.

Arnaldo Antunes tem magnetismo infinito e, vê-lo ali, o primeiro a sair do grupo para tentar vida própria, talvez provoque o efeito mais redentor. Houve um tempo em que falar sobre Titãs com ele era quase proibido. “Isso é pergunta de jornalista que não tem pergunta”, respondeu uma vez. Hoje, parece divertir-se muito e continua eletrocutando-se com Lugar Nenhum, Comida e Televisão. Sua presença é forte, mas algo parece dizer também passageira – uma espécie de garantia moral de que esta não será uma turnê sem fim.

Mas é Branco Mello a síntese de toda essa história. Ele mesmo conta para a plateia sobre o câncer que o fez ser submetido a uma grande cirurgia na garganta. É evidente que não seja o mesmo e poucos sabem em que estágio seu tratamento se encontra – algo que, ali, não importa mais. Sua voz – um sussurro gritado ou um grito sussurrado, retirado de algum lugar do peito e que talvez não existisse mais em outra pessoa – só pode vir de uma vontade irrefreável de estar vivo. Ele poderia ser poupado de tanto esforço, mas toca contrabaixo e canta uma, duas, três músicas todas as noites, além de fazer todos os backings sem playback, e dança sem parar com as pernas abertas e os braços serpenteados. Como se estivesse entre as 50 mil pessoas da plateia, parece querer justificar algo com urgência enquanto assiste às melhores imagens de sua vida.

É bem mais do que um show aquilo que aconteceu e voltará a acontecer até domingo, 18, sobre o palco do Allianz Parque, diante de 50 mil pessoas. E talvez, antes de falar de sons, enumerar alguns itens extra musicais ajude a compreender o que é que tem feito a reunião dos Titãs, 30 anos depois do início da diáspora ainda em curso, ser a maior turnê brasileira em muitos anos. Afeto e reconexões com o passado são só a superfície. Os Titãs sairão dos palcos encerrando uma discussão: são eles o maior grupo de seu tempo.

Titãs ao vivo Foto: Julio Maria

A atual turnê dos Titãs em dimensões que os próprios nunca tiveram em suas carreiras – estádios lotados com 50 mil pessoas, um após o outro, são novidade até para Nando Reis, a maior conversão pop do grupo – é uma pedra rara na história da música de qualquer lugar. E tudo conta para que a investida que deve estar rendendo muito dinheiro, e é justo que esteja, coloque, enfim, um grupo brasileiro nos padrões monumentais de um Coldplay.

Vale um pouco de flashback: no final dos anos 70, uma turma de amigos se junta para fazer um som no Colégio Equipe, em São Paulo (o filtro social que explica a padronização cromática da banda). A brincadeira dá certo e, em 1984, eles lançam um primeiro álbum com Sonífera Ilha, algo que os leva ao Chacrinha. Já nascem estourados. Surgem a tempo de golpearem a ditadura com sarcasmo, mas se inquietam a cada álbum, como se o grito ainda não tivesse saído. Criam um punk pop concretista sólido e disruptivo, nas falas e no som, até que, enfim, chegam a Cabeça Dinossauro, uma coisa, um troço, um assombro aos jovens classe média católicos de 1986 (quase todos), de rebeldia até ali embalada apenas docemente pela Legião Urbana. Cantar Eduardo e Mônica e mesmo Que País é Esse no ano seguinte era fácil. Difícil era cantar Igreja com medo de ir para o inferno.

Mas aí o tempo passa e esse grupo começa a se dissolver. Sai Arnaldo Antunes em 1992; Marcelo Fromer morre depois de ser atropelado por uma moto em 2001; Nando Reis toma seu rumo folk em 2002; Charles Gavin vaza em 2010; e Paulo Miklos, já um ator, se desliga em 2016. O fato de não ter adotado nenhum regime centralizador, com um ou dois líderes à frente, ajuda os remanescentes a seguirem mesmo desidratados: Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Bellotto são os Titãs de hoje (e, pensando aqui, deverá ficar meio estranho vê-los em trio depois que a turnê acabar).

E então, o que primeiro vemos sobre o palco, e por isso a abertura do show é tão poderosa, é a reconexão de pessoas que conhecemos em bloco mas que aprendemos a gostar – de uns mais, de outros menos – individualmente. Indo às audiências mais de superfície: quem não ouviu os discos solo de Arnaldo Antunes (ele iria querer morrer com isso, mas é fato) o viu com os Tribalistas; uma ou duas gerações cresceram com canções de Nando cantadas por ele, Samuel Rosa ou Cassia Eller; o mais cativante de todos, Paulo Miklos, se tornou também um grande ator; e Gavin se encontrou sobretudo como um guardião de boas memórias da música brasileira. Nenhum outro grupo rendeu tanto.

Mas há ainda o show, esse negócio resultante de pessoas que devam cantar e tocar razoavelmente bem para justificarem a expectativa de outras muitas dispostas a responder a isso pulando por duas horas. Não que ali fosse o mais importante, mas o mesmo reencontro que produz unidade cria também divisão porque propicia a comparação. Mais do que nos anos 80 ou 90, sabemos bem quem é quem e os vimos e ouvimos com uma riqueza de detalhes processados digitalmente que nunca pudemos experimentar. O que era bom fica estupendo, o que era ruim fica pior.

Sérgio Britto canta bem Go Back, mas, infelizmente, esse não é seu normal. Ele é um dos que mais interagem com a plateia, mas isso o expõe a deslizes de impulso, como puxar coro fora do tempo em uma canção ou mandar as pessoas tirarem o pé do chão no refrão de Epitáfio, um instante em que elas enxugam as lágrimas e só devem querer mesmo um abraço. Oposto a isso, Miklos tem um palco perfeito, procura as câmeras, fala sem clichês e canta absurdamente bem até nas alturas de Bichos Escrotos. O som do baixo de Nando Reis não vinha com qualidade e sua voz não parecia ter a mesma pressão de outros tempos. Sem os Titãs ele se agiganta. No grupo, apesar de Família e Marvin serem deliciosas e Igreja e Nome aos Bois serem cortantes, não parece ter o mesmo tamanho.

Arnaldo Antunes tem magnetismo infinito e, vê-lo ali, o primeiro a sair do grupo para tentar vida própria, talvez provoque o efeito mais redentor. Houve um tempo em que falar sobre Titãs com ele era quase proibido. “Isso é pergunta de jornalista que não tem pergunta”, respondeu uma vez. Hoje, parece divertir-se muito e continua eletrocutando-se com Lugar Nenhum, Comida e Televisão. Sua presença é forte, mas algo parece dizer também passageira – uma espécie de garantia moral de que esta não será uma turnê sem fim.

Mas é Branco Mello a síntese de toda essa história. Ele mesmo conta para a plateia sobre o câncer que o fez ser submetido a uma grande cirurgia na garganta. É evidente que não seja o mesmo e poucos sabem em que estágio seu tratamento se encontra – algo que, ali, não importa mais. Sua voz – um sussurro gritado ou um grito sussurrado, retirado de algum lugar do peito e que talvez não existisse mais em outra pessoa – só pode vir de uma vontade irrefreável de estar vivo. Ele poderia ser poupado de tanto esforço, mas toca contrabaixo e canta uma, duas, três músicas todas as noites, além de fazer todos os backings sem playback, e dança sem parar com as pernas abertas e os braços serpenteados. Como se estivesse entre as 50 mil pessoas da plateia, parece querer justificar algo com urgência enquanto assiste às melhores imagens de sua vida.

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