Seria complicado para um não brasileiro entender o que queria dizer Hermeto Pascoal em suas partituras para big bands. Como, em apenas uma narrativa, ele poderia passar por um maracatu e um baião em meio a pensamentos harmônicos totalmente fora dos padrões? Se os ingleses sofreram para acompanhá-lo, sobretudo pela complexidade rítmica, os brasileiros acabam de fazer o primeiro álbum com esta proposta na carreira do músico alagoano.
Idealizado pelo pianista Tiago Gomes, Hermeto Pascoal e Big Band deve ser lançado em outubro e traz a experiência inédita do músico de 81 anos ao lado de uma big band, com mais de 20 integrantes. “De alguma forma, Hermeto volta às origens”, explica Tiago. “Poucas pessoas se lembram, mas ele fez arranjos para discos de Taiguara e Fagner, além de trilhas sonoras para a televisão.” Um comentário do músico alagoano já indicava que ele queria aproveitar o convite para mostrar uma outra face. “Hermeto disse que não queria muitos solos, que preferia mostrar o lado arranjador e compositor.”
O álbum está sendo patrocinado pelo programa de incentivo musical da empresa Natura e deve contar com apresentações no segundo semestre para oficializar seu lançamento. “Aprendi com ele a colocar sempre a intuição em primeiro lugar”, diz André Marques, seu pianista há mais de 20 anos.
Isso não pode dar certo. As notas se chocam com violência, batem de frente, não fazem sentido segundo os tratados de composição e harmonia da Berklee College of Music. Intervalos sísmicos de segunda menor, notas inatingíveis escritas para sax alto, melodias que correm por fora de tudo o que se entende por campo harmônico. Pode ser a idade, pensam os jovens. A audição já não deve responder aos comandos do cérebro ou o cérebro é que já não responde ao bom senso. Afinal, nem os bruxos estão livres da ação do tempo.
Os instrumentistas passam então a executar o que Hermeto Pascoal havia pedido assim que sentou-se ao piano da grande sala de gravação do Estúdio Arsis, no bairro Praça da Árvore, zona sul de São Paulo. E as estranhezas começam a ganhar outra forma. Algumas notas tortas se encaixam a ritmos desconcertantes e a ideia que não fazia sentido há cinco minutos abre um portal que parece levar a outra dimensão. Era ali que Hermeto queria chegar. Mas não é um erro compor assim? “Erros não existem”, diz Hermeto Pascoal. “O que existe é bom gosto e mau gosto.” Mas a escola não ensina que não se deve usar intervalos com sons tão dissonantes? A escola em geral, para Hermeto, mata a criação quando a coloca em gavetas pré-fabricadas. Ao amaldiçoar o que chamam de erro, instituições de ensino sacralizam uma arte livre e criam o pecado da falha e o medo diante do instrumento. É assim que muitos Hermetos guardam seus instrumentos e vão para casa.
“Isso não pode dar certo.” Hermeto já ouviu a frase algumas vezes na vida, sobretudo quando ainda não tinha sua linguagem da desconstrução criativa reconhecida no mundo jazzístico. “Antes, não havia músicos que tocassem o que eu escrevia. Fico muito feliz que hoje eles existam”, diz, depois de duas sessões de gravação de um álbum que estará em breve em sua história como um ponto fora da curva de sua produção. Entre 22 jovens instrumentistas, Hermeto finaliza um álbum com tudo para virar um “case” no resultado e durante o feitio.
Aos 81 anos completados no último dia 22, Hermeto Pascoal entra pela primeira vez em estúdio para gravar com uma big band. O projeto foi idealizado pelo pianista Tiago Gomes, que viu experiências do músico alagoano à frente de grupos parecidos na Inglaterra. Depois de arregimentar uma formação para um concerto com o músico em Campinas, em 2014, visto por quatro mil pessoas, esteve certo de que chegaria o momento de irem para o estúdio. As gravações foram finalizadas na última semana e o álbum Hermeto Pascoal e Big Band, só com temas autorais de Hermeto, tem previsão de lançamento com shows em outubro.
Ao contrário de outras formações de big bands que abrem naipes para quatro instrumentos cada, Hermeto escreveu arranjos para grupos de cinco. Cinco saxes, cinco trompetes, cinco trombones, além de contrabaixo, piano e bateria. Fazendo assim, usa mais estranhezas e o susto será maior. “Uma das coisas que mais marcaram esse projeto foi a direção do Hermeto dentro do estúdio. Ele fez a direção musical do projeto, totalmente inserido no trabalho, com assistência de direção do filho Fábio Pascoal”, faz justiça o pianista Tiago Gomes, idealizador e diretor geral. A regência da big band ficou com o pianista titular de Hermeto, André Marques.
O repertório terá temas entre regravações e inéditos para big band, dentre eles Jegue, Pulando a Cerca, Pirâmide, Menina Ilza, O Som do Sol, Viva o Gil Evans, Obrigado Mestre, Brasil Universo, Choro Árabe e De Cuba Lanchando. Muitos dos músicos são jovens mas já experientes e muito talentosos, como o trompetista Rubinho Antunes e os saxofonistas Josué dos Santos e Jota P. Tiago Gomes e André Marques dividem-se ao piano e Fábio Pascoal, filho de Hermeto, responde pela percussão.
“Se você vir escrito em alguma escola de música ‘ensinamos a improvisar’, é mentira. Nenhuma escola pode fazer isso”, diz Hermeto. “Eu fui a Berklee, a mais comercial de todas escolas, e disse isso na frente dos diretores.” Há uma revolta mesmo na doçura de Hermeto quando ele fala sobre o assunto. Há graça também, mas foram muitas as situações em que sua música foi diminuída pelo fato de não ser compreendida. “Eu nunca premedito nada.” Tiago Gomes diz que o fluxo criativo do músico é intenso, quase impossível de se acompanhar. Em outro momento dentro do estúdio, Hermeto pediu uma nota tecnicamente inatingível a um sax barítono. “Não consigo tocar essa nota, Hermeto”, respondeu o músico. “Ah, você consegue sim”, desafiou Hermeto. “Essa região é muito aguda para barítono”, devolveu o jovem. Hermeto não queria a nota aguda saindo de um sax alto ou tenor. “Tente que você consegue.” O músico esqueceu por algum tempo o que lhe disseram os professores, concentrou-se e tentou. E a nota saiu, lindamente.