O processo não seguiu como de costume - para gravar um disco, Maria Bethânia gosta de estabelecer uma relação próxima com os músicos e os técnicos, criar uma intimidade entre as pessoas. Com o novo trabalho, porém, Noturno (Biscoito Fino), que será lançado nesta sexta, 30, foi diferente por causa da pandemia. Gravado em dois momentos distintos (em setembro e outubro de 2020 e em maio de 2021), o disco exigiu que a cantora ficasse rodeada por divisórias de acrílico transparente, a fim de permitir uma proximidade mas não contato.
“Foi complicado, mas eu precisava fazer - então, meti a cara”, disse Bethânia ao Estadão, em conversa por telefone. Como de hábito, foi um disco moldado à sua personalidade forte, única. No repertório, canções que tanto homenageiam a memória de grandes intérpretes da MPB (como Bar da Noite) como a própria cantora, em O Sopro do Fole, criação do sobrinho Zeca Veloso, inspirada nela. E, no encerramento, a leitura do trecho do poema Uma Pequena Luz, do português Jorge de Sena, indicação do também poeta Eucanaã Ferraz.
Na conversa, Bethânia orgulha-se do gosto por baladas (“sou baladeira”), ignora as críticas à brancura da capa do novo álbum e, apesar de preocupada com o momento atual, diz: “o Brasil não vai acabar”.
Como foi gravar o disco em condições tão extraordinárias?
Pois é, foi com a dificuldade imposta pela pandemia, que exige da gente uma mudança radical em tudo, até no comportamento. Você se assusta às vezes com um gesto normal - beber um copo d’água já é diferente: o modo de pegar, de respirar. Talvez por isso preferi fazer um disco com voz e piano, voz e acordeão, sem a presença de uma banda. Isso me ajudou e também aos músicos, ao maestro, aos técnicos. Foi complicado, mas eu precisava muito fazer, então meti a cara.
Você teve de gravar cercada por um acrílico?
Sim, porque enquanto ensaiava, precisei ficar na área técnica, onde fizeram uma casinha de acrílico para que eu ficasse distante da mesa, dos técnicos. E os músicos ficaram no salão de gravação com isolamento também.
Fale sobre o título do disco, 'Noturno', que remete a um jogo entre luz e sombra.
A noite é escura, mas cintila, tem nuances. Gosto dessa palavra, é a correta para esse momento. Existe um escuro sobre nós, sobre a humanidade, sobre o planeta. Um escuro, às vezes, sem nenhum reflexo de luz, mas a noite incendeia, aquece, faz vibrar, ela tem vida própria, é ousada. Gosto do título do disco porque se relaciona com o repertório e com meu sentimento - passando pela noite, pelo escuro, e chegando à luz. A noite traz o sentimento romântico da solidão, da paixão perdida e traída, uma afirmação do noturno até que clareia pela dor, pela morte, pela vida.
Você faz referência à primeira canção do disco, 'Bar da Noite', do repertório de Nora Ney...
É uma coisa linda. Aprendi ouvindo música brasileira na minha casa, em Santo Amaro, porque o rádio era o grande evento na cidade, nas casas. Sou a caçula de oito irmãos, então aprendi com o gosto de cada um até formar o meu. Foi um aprendizado, uma escola ótima. Minha mãe, Dona Canô, cantava óperas e todos ouvíamos a Rádio Nacional com Carmen Miranda, Nelson Gonçalves, Silvio Caldas, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, a Nora, minha querida Aracy de Almeida. O modo melhor de estudar sem ser obrigada e aprendendo tudo.
Agora fale sobre 'O Sopro do Fole', composição do Zeca Veloso.
Pois é. Meu sobrinho. Acho deslumbrante essa música, porque tem um escuro noturno dentro dela, uma força que se agiganta no ser humano. Quando me mostrou a música, Zeca não me pediu para gravar, era apenas para eu saber que ele se inspirou em mim. Só disse isso. Mas, quando ele começou a cantar, notei que, no primeiro verso, tem a palavra vento. Tenho uma ligação muito forte com essa palavra, pois tem relação com meu orixá. Já fico louca quando se fala em vento, me aproximo. Fui ouvindo e achando cada verso mais bonito que outro. E fiquei muito encantada em ver o Zeca, que é tão urbano, tão carioca, fazer uma canção regional, do sertão. É um vislumbre, uma sensibilidade. E eu ter inspirado esse pensamento, esse passeio por essa área, me alegra muito porque é uma área deslumbrante, musical, nobre. Acabei fazendo o arranjo, que ganhou força com o acordeão do Toninho Ferragutti, que atendeu ao meu pedido: quero frases entre as palavras. Uma conversa paralela porque a letra se refere à amplidão do fole. Não importa que seja ilustrativo, pois acho que me traduz tão lindamente. “Moço, esse vento que vem ali / Tirou meu chapéu, balançou meu cordão” - é muito forte, guerreiro. E se parece comigo. Tanto acredito que pedi para gravar.
Entre as parcerias que você retoma aqui está 'A Flor Encarnada', da Adriana Calcanhotto, uma canção melancólica, pungente.
A música de um amor. Eu tinha pedido uma canção potente, amorosa, bem cantada. Aí veio A Flor Encarnada... Adriana é muito cronista em tudo que escreve. E a canção tem frases difíceis de se dizer: “o amor não gosta mais de mim, nunca mais vi seu clarão”. Não é uma frase boa para se dizer. Já tenho 75 anos e sei que não é fácil. E Adriana se impõe como cronista - ela fala de Ipanema em uma canção e parece uma crônica do Rubem Braga.
Como você chegou ao Jorge de Senna?
Leio muita poesia portuguesa, mas pedi uma indicação ao (poeta) Eucanaã Ferraz. E ele se lembrou do Jorge e me mandou uma série, onde encontrei Uma Pequena Luz. O poema revela essa vontade de ter a luz enquanto está escuro entre nós. É nela que temos de nos agarrar. O final tem o desejo de energia positiva. É teatral, dramático, do meu jeito, do meu estilo. Sem teatro, fico esvaziada. Minhas coisas têm dramaturgia. Um final de disco com minha assinatura.
Por que você colocou dedicatória em cada música?
Me deu vontade. Eu nem sabia que ia ter disco, achei que só gravaríamos as canções. Mas, quando disseram que seriam feitos discos físicos, adorei e coloquei, em cada música, a intenção com que gravei. É bonito saber qual foi o sentimento que levou a cada canção, pensando em quem e como, qual a razão.
Em 'Dois de Junho', você dedica aos indiferentes. É a canção da Calcanhotto que fala sobre o menino Miguel, que caiu de um edifício no Recife.
É leitura com dramaturgia. A música é muito doída, forte, clara, nua, crua. É dilacerante. Traz um berro, um grito. A guitarra do Pedro Sá traz todo os “ais”. Dei sorte com esses músicos, todos embarcaram comigo nesse disco.
Ponto positivo também para os arranjos do Letieres Leite, não?
Sim, ele recupera um sertão nobre, assim como um bolero mexicano na música Prudência, do Tim Bernardes, que é um samba-canção que podia chegar a um bolero. Como diz Caetano, sou muito baladeira, o que muito me orgulha (risos). Adorei quando chegou aquele violão mexicano.
Gosto muito de 'Vidalita'.
É um deslumbrante drama cigano. Canto essa música há mais de 20 anos com a interpretação da Mayte Martín, que é a autora. Sou apaixonada por essa cantora. Ouvi inúmeras gravações do Vidalita e todas são extraordinárias.
A capa inteiramente branca do disco dividiu opiniões - como foi a escolha para um disco chamado 'Noturno'?
Pois é. Branco com noturno, escrito em marinho. Mas não precisa compreender tudo, não. Deixa sem entender. Pode gostar ou não gostar, não tem que ficar explicando tudo. Acho austero. E, como diz meu irmão Caetano, estou imitando os Beatles e seu Álbum Branco. Você vê como sou metida? (risos).
Em dezembro, ao ‘Estadão’, você disse que estava muito desesperançada em relação ao Brasil. E hoje, como se sente?
Não estou esperançosa - estou preocupada com o Brasil. Enquanto isso, a neta de um ministro do Hitler visita nossos governantes. Isso é demais. É preciso ter um limite. Dentro do palácio do governo. Trocando figurinha. Não pode. Olha para o mar, para o céu, olha para as pessoas. É o Brasil. Eu estou preocupada. A vacinação ainda está atrasada. Mas, apesar de toda a tristeza, toda a preocupação e dos riscos na saúde e na política, estamos vivos e somos brasileiros. Caetano me disse: o Brasil não vai acabar. Eu acredito nisso.